Uma das constatações advindas pelos efeitos da Pandemia de SARS-COV-2, é de como os vários níveis de compreensão da vida se entrechocam, o que é perfeitamente normal em sabendo que não somos máquinas fabricadas em série. A Sociedade brasileira acabou por se dividir em preferências abaixo da racionalidade básica e mesmo pessoas alegadamente inteligentes, bem formadas e articuladas professam ideias que vão contra a dignidade humana.
Uma das questões, afora a desconfiança quanto a Ciência, a mesma que proporcionou que possam propagar ideologias espúrias por modernas máquinas de comunicação criadas por técnicas científicas, é quanto ao Politicamente Correto. Quem está acostumado ao comportamento engendrado pelo sistema de dominação desde a chegada dos portugueses ao Brasil — pelo extrativismo, colonialismo, tráfico humano, escravidão, monoculturas, servilismo, segregação econômica, apartheid racial escamoteado — se sente atingido.
Com o crescimento da conscientização das classes sociais alijadas das benesses do desenvolvimento econômico com a consequente falta de ensino de qualidade para si e seus filhos, o aumento exponencial de subempregos (bicos), a desregulamentação das leis de proteção ao trabalho, retirada de direitos sociais e várias outras medidas que visam a impedir que a Sociedade possa minimamente respirar um ambiente mais arejado, tem tornado cada vez mais distante a possibilidade da busca por equanimidade na nação brasileira como um todo.
Antes, ingenuamente eu cria que as novas gerações, na presunção de que apresentassem uma cabeça mais libertária, tivessem uma visão mais avançada da sociedade no terceiro milênio, sob a égide da democracia racial. Porém, aos poucos pude perceber que alguns ditos populares refletem a sabedoria do tempo: “os frutos não caem longe da árvore”. A saber que seja compreensível a contestação dos pais pelos filhos, é mais comum que os descendentes reproduzam o comportamento dos ascendentes.
Nesse caso, quase todos os preconceitos de origem pregressa passam para o ideário das novas gerações. Preceitos de séculos antes, desde a gênese da formação do povo brasileiro surgem como matriz do comportamento dos mais jovens. Além disso, ao longo dos séculos incorporamos tendências chegadas de fora, contrapondo às nossas características básicas, como a intensa miscigenação e a riqueza cultural daí advinda.
Outra ingenuidade da minha parte, esfacelada pelos “novos” tempos, foi a de que a classe artística como um todo estivesse unida contra a ideologia sombria que não é apenas conservadora, mas retrógrada, repressiva a antagônicos, que não admite que haja um mínimo sinal de igualdade social e muito menos protagonismo. Como disse um amigo, são apenas “tocadores de instrumentos” (trabalho preferencialmente com música) que não desenvolveram uma sensibilidade especial quanto à natureza humana.
Quando esses “novos conservadores” demonstram descreditar da perspectiva do politicamente correto, a defesa de suas posturas agridem os despossuídos, os diferentes, os mais pobres, os de identidade não conformista. Não adoto mais o termo “minoria” para a parcela da população marginalizada, já que devido à concentração de poder econômico e consequentemente político, a minoria (em quantidade) é composta por quem tem ditado desde sempre as normas práticas sob as quais vivemos, acima da lei constitucional.
O texto abaixo, foi reproduzido por um cantor e músico, bonachão, engraçado e “inteligente”, pelo que me era dado conhecer. Dado o fato do tema girar em torno dum boneco de neve através da qual é construída uma narrativa “conservadora”, que acaba por se denotar reacionária, provavelmente foi importada de uma matriz desse viés, alhures.
Ao músico, como vários outros, deixei de seguir e, por fim, cortei a “amizade” na rede social, em vez de responder na sua página. Não é porque queira criar uma bolha de aceitação às minhas ideias. Apenas não tenho tido estômago para certos posicionamentos. Cresceu a percepção, após sofrer contestações que passavam da argumentação a ataques pessoais, começam por desmerecer a minha fala por eu pertencer a tal ou qual partido, sem saberem que minhas análises não são partidárias, mas políticas, entendidas no padrão da Antiga Grécia — de que a Política é arte da convivência — percebi o quanto são recalcitrantes. Não mudarão com argumentos, por mais equilibrados que sejam, aliás, muitas vezes por causa disso mesmo. A seguir, a análise do referido texto.
“Nevou noite passada (se estivesse em Santa Catarina…).
8:00 — Eu fiz um boneco de neve (boneco é boneco, assexuado).
8:10 — Uma feminista passou e me perguntou por que eu não fiz uma mulher de neve (os bonecos de neve normalmente apresentam uma figura sem conotações sexuais, arredondadas. Teria acrescentado um pênis para identificá-lo?).
8:15 — Então, fiz uma mulher de neve.
8:17 — Minha vizinha feminista reclamou do peito volumoso da mulher de neve dizendo que ela tinha sido feita com olhar masculino (aqui pressupõe que uma defensora dos direitos da mulher odeie a forma do corpo feminino, à priori).
8:20 — O casal gay que morava nas proximidades deu chilique dizendo que eu deveria ter feito dois homens de neve (‘chilique’ é um termo depreciativo. Quem é libertário, normalmente não se prende a esses detalhes, suponho. No máximo, talvez fizesse outro boneco de neve para acompanhar o primeiro, mesmo que já não fosse mais um “homem”, mas “mulher”, lembram? Deixa pra lá, o ato falho serve ao propósito do argumento ao qual se quer chegar).
8:22 — Um homem-mulher-trans perguntou: por que não fez apenas uma pessoa de neve com partes destacáveis? (mais uma vez, trabalha com a ideia de sexualizar as identidades como se elas se conformassem apenas aos órgãos específicos do corpo. Será por isso que falam tanto em cu?).
8:25 — Uns veganos reclamaram do nariz de cenoura, alegando que vegetais são alimentos e não decoração (eu, quando fui vegetariano, no começo era um porre, mas nunca criticaria um detalhe pequeno como esse. Seria mais fácil, como eu adoro cenoura, comê-la).
8:28 — Fui chamado de racista porque o casal de neve é branco (acho que, em se tratando de neve, isso não tem cabimento, mas serve ao discurso que se apega ao irracionalismo. No entanto, como normalmente essa turma é contra o desenvolvimento limpo e sustentável, uma neve com alto teor de poluição talvez ocorresse).
8:31 — O muçulmano do outro lado da rua exigia que a mulher de neve fosse coberta (voltou a ser mulher).
8:40 — A polícia chegou dizendo que alguém se sentiu oprimido por meu discurso de ódio (a Polícia como padrão trabalha a favor do status quo. Nem se daria ao trabalho de atender a essa ‘denúncia’ em relação a um simples boneco de neve).
8:42 — A vizinha feminista reclamou novamente que a vassoura da mulher da neve precisava ser retirada porque representava as mulheres em um papel doméstico (sou homem e adoro varrer. Para mim, é um exercício relaxante. Como originalmente era um homem de neve, eu me sentiria representado, não atacado).
8:43 — O oficial de justiça me intimou por fascismo (infelizmente, o Fascismo está entranhado em nossa sociedade, a ponto de eleger um representante majoritário e dizer que movimentos antifascistas são contra seu governo militarista e genocida).
8:45 — A Globo me entrevistou. Perguntou se eu sabia a diferença entre homens de neve e mulheres de neve. Respondi: ‘bolas de neve’ — e agora sou chamado de sexista (identificar detalhes anatômicos não prefigura sexismo, mas dizer que homens são naturalmente superiores às mulheres e que devem agir para mantê-las em seus devidos lugares de subserviência).
9:00 — Apareci no noticiário como fascista, racista, homofóbico, sexista, machista, xenófobo, trans fóbico (ao final, resulta que vestirá a carapuça, verão).
9:10 — Me perguntaram se tenho algum cúmplice. Meus filhos foram levados pelo Conselho Tutelar (esse extremismo preconizado pelos que se auto intitulam “conservadores” é o medo de verem suas posturas tornadas criminosas por si só. Ainda não são e talvez nunca o sejam, tristemente).
9:29 — Manifestantes de esquerda, ofendidos por tudo, marcharam pela rua exigindo que eu fosse preso (estar ofendido ‘por tudo’ da maneira que está é o meu sentimento atual. Indignação pela situação pelo qual passa o País é, no mínimo, o que deveria ser sentido e ser demonstrado por todos).
Ao meio-dia, tudo derretia… (menos o preconceito arraigado).
Moral: não há moral para essa história. Isso é o que nos tornamos com a imbecilidade do politicamente correto pelo que, em breve, respirar ofenderá a alguém (se ‘respirar’ for para continuar a perpetrar o mal, a aumentar as mazelas, a aviltar a humanidade, a apelar para a violência, a matar os diferentes por serem diferentes, como os Nazistas fizeram, instaurar o preconceito como prática, então é ofensivo à causa da ‘paz entre os homens de boa vontade’, como está no Livro que dizem defender. Que derretam naturalmente, sob a luz da construção de uma sociedade realmente solidária).”
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