Sobre Assaltos E Assaltos*

Modelo de celular de 2013

Frequentemente, captamos no ar a perplexidade de brasileiros que se sentem melhor, mais confortáveis fora do país do que nele. É como a situação daquele garoto que se sente mais aceito na casa do vizinho do que na da sua família. A reação que temos com relação aos fatos do cotidiano pode nos levar a querer abandonar o barco, já que a nítida sensação é de que ele esteja afundando.

Com o passar do tempo, e às vezes por conta de características pessoais, alguns tem a tendência de olhar o que nos rodeia de uma forma mais abrangente. Acrescentando de que o nosso país foi “fundado” por colonizadores europeus que fizeram aqui o que em seus países nunca ousariam, observo que criou-se a máxima de que “não existe pecado abaixo da Linha do Equador” para justificar certas ações. A frase, de meados do Século XVII: “Ultra aequinoxialem non peccari”, em 1973 ganhou o gingado de um frevo tendo como autores Chico Buarque e Ruy Guerra, feita para a trilha sonora da peça Calabar – Elogio à Traição.

Somos um país jovem, um pouco mais de 500 anos, em comparação a outros que contam com 2.000, pelo menos, para ficarmos apenas na Europa. Isso não impediu que até há pouco (em termos históricos, 70 anos é muito recente), os europeus vivessem uma guerra sanguinária que dizimou milhões de pessoas. Nós, brasileiros, temos uma tarefa enorme pela frente na construção da boa cidadania e, enquanto isso, temos certos preços a pagar, ainda que sejam relativizados, não devem ser esquecidos e sim, resolvidos.

Ter isso em mente, talvez ajude, mas não impede que nos revoltemos com o dia a dia de violência em todos os níveis da sociedade – político, econômico, social, pessoal, etc – que vivemos em “nossa” casa. Hoje mesmo, agora de manhã, a minha filha mais nova, Lívia, foi assaltada no ônibus com o qual ia para a escola e levaram o seu celular, que comprei de presente para o seu aniversário e que ainda estou pagando. Pessoalmente, isso tem um custo, mas não é tão alto quanto o custo social causado pelo desvio de verbas da Saúde e da Educação por alguns bandidos eleitos por nós. De certa forma, o “modus operandi” dos dois tipos de assaltantes seja similar, mudando apenas o nível e amplitude dos operadores da ação.

No caso do celular, bloqueamos o chip e o aparelho, o que é apenas uma espécie de pequena “vingança”, já que os ladrões não conseguirão utilizar a grandíssima gama de dispositivos dele. No caso dos ladrões do erário público, pegos no ato, a aplicação de leis que já existem, bastaria para que houvesse uma verdadeira revolução, de alto a baixo em nossa sociedade. Exemplos maiores teriam o efeito de criar uma atmosfera de equanimidade. Não é vingança, é justiça! Mas, cadê a vontade política para isso? Aliás, se são esses servidores públicos que fazem as leis, porque teriam a hombridade de fazer o que é certo, mas que iria contra seus interesses pessoais?

*Texto de Novembro de 2013

Língua E Dedo

O assunto é um tanto espinhoso. Transita pela linha fina que existe entre aceitarmos a força que o Patriarcado exerce sobre nós — provocando efeitos dos mais perniciosos — e de como não o reforçar em nossas falas e comportamento social. Volta e meia caímos em armadilhas. Mesmo quem sempre tentou se desvencilhar das amarras machistas como eu, me pego diversas vezes em contradição. Desde muito cedo percebi que o que era incensado como privilégio masculino, joga sobre nós consequências que prejudicam a todos. Tornamo-nos meio-homens enquanto tentamos rebaixar as mulheres ao nível de nossas precárias medidas.

Todos nós — de gêneros, personalidades, preferências e identidades diferentes — claudicamos na compreensão do processo que engendrou a construção de nossa Sociedade e vivemos a reproduzir as suas deficiências. Entre eles, o sexo está no centro de vários desvios que acabam por desenvolver personalidades que não conseguem escapar ao vórtice que o coloca não como uma força criativa e energética, mas como estigma e, em sua égide, termina por suscitar o mal ao semelhante com ofensas, humilhações, ataques físicos e até assassinatos.

A sexualidade — ação, formação e ciência — força original humana, carnal, mas não menos vibracional e espiritual, permeia as relações sociais dos adultos de tal maneira que mal percebemos quando está presente em algum assunto, por mais prosaico que seja. Após certa idade, dificilmente alguém escapa à sua influência. As religiões, com as suas interdições, que a tudo proíbem, contribuem para que ocorra o inevitável choque traumático, tornando o conhecimento saudável do corpo e seus processos vitais desde o surgimento da puberdade e antes, quase impossível.

O prazer e a vivência benéfica da libido são transformados em pecado e findam por ser imputados como transgressões. Chefes religiosos conclamam a orações e pagamentos de penitências para alcançarmos a redenção, enquanto ocultamos o nosso desejo tão profundamente que quando irrompe o faz feito um vulcão, jorrando lava quente ao seu redor. Alguém sempre acaba magoado-queimado. Ou quase todos nós. Sou daqueles que entende o sexo como um elemento de transcendência. Apesar da química — em uma interpretação elástica — interferir nos encontros entre os corpos, a dimensão venerável do sexo para mim é evidente.

Contudo, não serei eu a erigir uma base filosófica que resolva as contradições ou instaure uma nova forma de ver o mundo. Seria uma embromação. Tudo já foi dito sobre o sexo no decorrer de milhares de anos de civilizações e culturas. Porém, são escolhidas justamente as regras que cerceiam essa pulsão vital. Filosoficamente, busco analisar certas questões relacionadas ao nosso comportamento sexual tentando destrinchar o que há por trás de certos “mandamentos” repetidos desde tratados até em rodas de amigos. Como exemplo, discorro sobre uma frase que inicialmente demonstraria um aspecto machista, mas que busquei outra forma de contemplá-la.

Um amigo antigo vivia a dizer, enquanto a passagem do tempo impedia que vivenciasse as proezas sexuais que protagonizou na juventude: “enquanto eu tiver língua e dedo, nenhuma mulher me mete medo”. Durante muito tempo o teor um tanto chulo da frase suprimia outra vertente ao qual cotejei indícios menos evidentes do que aparentava.

Primeiro, trata-se de um homem e uma mulher numa relação sexual. No entanto, poderíamos ampliar essas ações para outros agentes de diferentes identidades — o uso de artifícios e apetrechos que ultrapassam a simplicidade do contato entre as genitálias. Quando o sujeito revela que usaria língua e dedo para ajudar uma mulher a chegar ao orgasmo, compreende que na falta de um pênis inflado, ainda que simbolicamente representasse a sua masculinidade, ele não temerá o encontro.  

O que nos leva a questão — o homem teme à mulher ou à opinião que tenha sobre ele? Por amar a uma mulher, um homem se propõe a satisfazê-la, levá-la ao máximo do prazer, ainda que não possa ter uma ereção. Receia que a bem-amada entenda isso como falta de desejo. Teme que seja ridicularizado por não ficar de “pau duro” para ela. Uma mulher magoada, ao querer humilhar um homem, poderia vir chamá-lo de broxa. Nesse caso, ela se serve de uma ofensa de fundo machista, por mais que o Machismo seja a origem de inúmeros casos de abusos sofridos por ela. E será por causa do Machismo que o homem sofrerá quando não vier a responder às demandas e falhas intrínsecas à sua humanidade.

A formulação da frase mostra um homem frágil que busca sobreviver ao temor de broxar e ser atacado por isso. Em um filme de AlmodóvarCarne Trêmula — o marido paraplégico age exatamente dentro desse contexto para dar prazer à sua esposa até que eventualmente isso não seja suficiente para ela. Porém, entram tantos outros fatores alheios ao relacionamento sexual que não será apenas por esse olhar que as relações caminham para um desfecho explosivo.

Eu comecei a minha vida sexual tarde. Relativamente pouco tempo depois, casado, com duas filhas e uma terceira a caminho, a minha esposa aventou a possibilidade de que eu fizesse vasectomia. Ela penou nas gestações e nos dois partos anteriores e não queria mais passar por isso novamente. Ao mesmo tempo, tinha receio que o uso de contraceptivos bagunçasse ainda mais seu equilíbrio hormonal um tanto precário. Também se lembrava que a falta de uso da camisinha em um momento de ardor resultou na gestação de nossa terceira filha. No parto da caçula, decidiu fazer a laqueadura.

Eu acompanhava com empatia os enjoos, os vômitos, o mal-estar, o sono entrecortado, mas por mais que me sensibilizasse, não sofria o que ela sofria. Contrapus que o padecimento pelas gestações era primordialmente dela e que tão jovem eu não tinha condições psicológicas de me tornar infértil. Concordamos nisso na época e até este momento que isso tenha sido o melhor a fazer. Confesso que mesmo que não passasse pela minha cabeça ter outros filhos consanguíneos, a ideia de não mais tê-los me angustiava. Especulo se a postura de manter a fertilidade não seriam ecos do Machismo a reverberarem em minha psique — a do macho que se apraz de ainda poder fecundar uma fêmea…

Pecado Original*

PECADO ORIGINAL
Os originais de Pecado…

Como seria o diálogo entre Adão e Eva, diante do próprio assombro por terem descoberto o amor? De inocentes a pecadores em um átimo, os dois, tais quais quaisquer adolescentes, talvez até se revoltassem contra quem os criou…

Eva,
disseram que cometemos
um grande pecado…
Não vejo qual…
Não vejo onde…
Não vejo como…
Não vejo quando…
E, no entanto,
Nos acusam que nos foi dado a ver…

Adão,
pode ser que seja esse o nosso
grande pecado — que ao nos percebermos
tão expostos,
quiséssemos resguardar a nossa paixão
de olhares alheios,
assim como todos que encontram
algo precioso…

Eva,
se não for esse o pecado,
qual seria?…
O de nos conhecermos intimamente
a si mesmos e um ao outro?
Quem nos criou, nesse caso, talvez fosse o grande Pecador!
Pois todos percebem que fomos feitos
um para o outro!

Adão,
talvez o grande pecado
fosse tornar o nosso amor
tão original
a ponto de contrariar as regras
deste país edílico e passivo…
Mais do que isso, a minha intuição
me leva saber que cometemos
o pecado de amarmos
de modo diferente,
de modo mais completo,
amarmos além…

Eva,
ouvi dizer que nos colocarão
para fora de casa…
Por termos amado demais!…
Que nos farão sofrer…
Porque se conhecemos o prazer,
devemos conhecer a dor!
Que viveremos por nossa conta
e risco…que nos lançarão à vida!
Que, da inocência, deveremos
alcançar a maturidade…
Para um dia voltarmos,
finalmente, ao nosso lar…

Adão,
falam do nosso prazer
como se já o conhecêssemos…
Como se antes pudéssemos
diferenciá-lo da dor…
Desde que nos apaixonamos,
percebi que esse seria o nosso
caminho: saber o que é sofrer
para conhecermos o completo prazer!

*Pecado Original foi escrito há algum tempo. Há 35 anos ou mais… não sei ao certo. A Tânia estava fazendo uma limpeza e encontrou papéis com textos antigos, junto a outros mais recentes. Gostei do tema e, portanto, achei interessante expô-lo a público, naturalmente, editado, mas muito menos do que eu poderia imaginar.