Tatuei

Um projeto sobre o qual matutava há algum tempo era o de me tatuar. Não via impedimento pela questão da idade, acostumado que estou a vivenciar situações que ocorrem tardiamente em minha vida. O que me impedia antes era que não encontrava a motivação devida para isso. O que me convenceu foi justamente a passagem do tempo que, além das cicatrizes eventuais, tatua seus sinais em nosso corpo a cada tique-taque do relógio. Queria que fossem referências imagéticas de passagens particularmente caras a mim. Passei a última quarta-feira na Freuas Tatoo Mansion sendo tatuado pelo traço delicado de Mônica Kaori.

Uma das tatuagens diz respeito a uma orquídea que demorou dez anos para florescer. A planta foi dada à Tânia por minha mãe. Ela a colocou pendurada na velha mangueira e, ao seu tempo, veio a mostrar toda a sua beleza. Registrei em foto e coloquei a imagem na capa do Facebook. Eu a nomeei de Flor de Madalena. Em uma pesquisa de imagem, encontrei similaridade com exemplares de Cattleya forbesii, talvez um híbrido.

Flor de Madalena, logo após ser tatuada

A segunda foi uma releitura de um tema recorrente de Vincent Van Gogh – os girassóis. A série Sun Flowers foi feita pelo pintor holandês para demonstrar que era possível criar variações de texturas da mesma cor, sem perder a eloquência do tema. Colocou dois desses quadros no quarto de Paul Gauguin, que morou com ele na Casa Amarela. Gauguin, impressionado, os considerou “completamente Vicent”, ficando com uma das cinco edições feitas pelo amigo. Uma delas foi queimada num incêndio na Segunda Guerra.

Vincent é marcante em minha vida porque quando vi as suas reproduções pela primeira vez, fiz um viagem para seu planeta, um que apenas lembrava a Terra. Mas era um outro, mais belo e tocante, ainda que vários de seus personagens fossem trabalhadores apresentados na faina cotidiana de sua realidade imediata. Ou talvez por isso mesmo. O amor por Van Gogh também atingiu a Lívia, minha caçula, que pediu para a mãe comprar uma reprodução de Sun Flowers ainda bem nova. Como referência, tatuou também um girassol na panturrilha da perna direita.

Releitura de Sun Flowers, logo após ser tatuada

No caso das minhas tatuagens, dei liberdade para a Mônica, uma jovem que gosta de desafios, criar em cima das imagens que passei. Com a Flor de Madalena destacou um dos ramos e o fez percorrer o meu antebraço frontal, entre desenhos das veias e o relevo dos promontórios musculares.

Flor de Madalena original

Quanto à reprodução de Vincent, por sua iniciativa a releitura ganhou uma perspectiva a la Piet Mondrian, outro holandês, do movimento neoplasticista, do início do Século XX, caracterizado por figuras geométricas. Acresce-se que sendo em variações de uma única cor – mais escura – a releitura ganha relevância por voltar à ideia central de quando os vasos com doze girassóis foram produzidos.

Reprodução de Sun Flowers

Nesse jogo de referências cruzadas, a série Sun Flowers foi realizada exatamente 100 anos antes do período de maior mudança na minha vida, agosto de 1988 – época em que comecei namorar a Tânia –, e início de 1989, quando nos casamos. À partir daquele mesmo ano, geramos girassóis humanos, que se voltaram para a luz do Sol e se tornaram pessoas luminosas – Romy, Ingrid e Lívia – pioneiras no quesito tatuagens na família. Que, por sinal, tem a minha mãe como um dos pontos de origem, a Madalena da flor. Com o meu olhar um tanto viajador, vejo reproduzir um ciclo de linhas visíveis e invisíveis que desenham o nosso caminho neste planeta…

O Pancadão De Van Gogh*

Sentado numa cadeira na varanda, esperava o entardecer avançar sobre nós. Ansiava que nuvens, que até então não se faziam presentes, viessem a adornar o crepúsculo de final de outono. Sempre a provocar excitantes e variadas formas como pano de fundo que avivam a imaginação. Uma brisa fria me deixava desperto ainda que o Sol intenso me forçasse a fechar as pálpebras-cortinas do palco de 80% da minha percepção sensorial. Sobre elas, a luz dos olhos meus não competia, mas adivinhava o brilho daquela estrela que emprestava o calor gerador da vida na Terra.

Observar o entardecer era um ritual que repetia sempre que estava em casa, mas que consegui exportar para outros lugares sempre que o tempo e o horizonte aberto me permitissem presenciar o efeito da revolução terrestre que cotidiana e silenciosamente ocorre sem que os seres que se dizem inteligentes a sintam. Sapos, tubarões, viúvas negras, borboletas, abelhas, alces e elefantes, golfinhos e beija-flores a sabem por uma questão de sobrevivência. As aves, seres revolucionários, descendentes diretos dos senhores do planeta por milhões de anos os dinossauros a conhecem para poderem migrar de um ponto a outro do hemisfério ou até entre os hemisférios. Baleias, salmões e tartarugas a usam para encontrarem o lugar ancestral para procriarem. Resta a mim, como um mísero animal ignorante dessa sofisticada ciência, aplaudir os ocasos como mapas de percurso.

Como era sábado, outros rituais humanos menos silenciosos que o meu, principiavam. Para além do estímulo visual, a audição ganhava preponderância. O som de gêneros musicais diversos e seus praticantes forrozeiros, sambistas, sertanejos e funkeiros competiam para ver quem venceria uma batalha perdida. Era como se para se deslocarem da vida comum necessitassem de colossais massas sonoras para se transportarem. O Sol, tão distante quanto pode ser um astro-rei, se despregava de seu ponto ilusório até outro. Abstraído-encantado, me ausentava de onde estava, surdo para as brigas de casais, o molejo da morena, as descidas até o chão e arpejos de sanfoneiros verdadeira barafunda de acordes em desacordos.

Mal pude acreditar quando pela chegada discreta da nebulosidade e do vento alto que a dispersava, a visão do entardecer se transformou em obra impressionista, em que fios de cabelos luminosos vangoguiavam a paisagem. Por mais furioso que tivesse o volume sonoro, nada impedia que me sentisse embevecido pela Natureza a reproduzir na tela rota da Periferia de Sampa, pinceladas do triste e belo pintor holandês, ao ritmo do pancadão.

*Blogagem Coletiva 
Tema: o que faz brilhar seus olhos?

Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso