Inundação

Piscinão Guaraú

São Paulo cresceu entre córregos, riachos e rios. Alagamentos fazem parte de sua história antes da invasão dos portugueses a nomearem a esta região, feitos novos Adãos, com o nome do apóstolo mais controverso de Jesus.

Com o tempo, deixamos de ocupar os lugares mais altos e seguros e fomos nos assenhorando das áreas mais próximas das margens de rios e suas várzeas. De tempos em tempos, as águas, alheias ao fato de nos considerarmos seus donos, retoma seus antigos domínios.

Onde moro, já enfrentei muitas enchentes. Com o advento do Piscinão Guaraú, nos últimos 15 anos, o bairro deixou de sofrer com alagamentos. Mas como é uma região com topografia acidentada, com morros e vales, a preocupação se volta para os deslizamentos. Principalmente por causa de ocupações irregulares, em qualquer cantinho que se possa pendurar uma habitação.

Nesta imagem, mostro o Piscinão Guaraú, cheio como nunca vi. A água da chuva que entra pelas “bocas de lobo” (nome incrível) chega aos bueiros passam pelas tubulações até desembocar no piscinão. Até alcançar o limite, os milhões de litros d’água ficam retidos até desaguarem no Córrego Guaraú para, então, chegarem ao Rio Tietê, que despeja seu volume d’água no Rio Paraná até desembocarem no Rio da Prata, na lejana Argentina, os eflúvios pluviais e fluviais no Atlântico Sul.

Só, Num Solitário Domingo*

O solitário no piscinão…

Hoje, eu acordei me sentindo só… Estava igualmente sozinho na cama — a Tânia saiu cedo para o plantão no hospital — e imediatamente percebi que aquele sentimento de solitude seria a minha companhia por boa parte do dia. Registrei o homem só a lavar o rosto, se vestir, passar pelo corredor, abrir a porta do quarto das meninas, observar a filha deitada em sua cama e Lola Maria a lhe abanar o rabo. Descer para tomar café e decidir o que faria naquele solitário domingo… Resolveu experimentar a sua solidão entre outros e ir à academia. Ele trocou a água da Baleia, Cotoco e deixou cenouras para as porquinhas; acarinhou a Penélope, a Domitila, a Frida e a Dorô; deu adeus ao Horário, à Dulce e deixou ração para as calopsitas; saiu para a rua. Assumi o seu corpo.

Eu já havia vivido muitas vezes essa sensação de solitude, não era incomum para mim, mesmo estivesse rodeado de gente por todos os lados. Aliás, diria que fosse uma circunstância cíclica. No entanto, não foi um sentimento eivado de amargor, ao contrário… Nesses momentos, me sentia pleno e arguto. O único senão é que, para onde olhasse, para quaisquer pessoas que encontrasse, eu via refletida nelas a minha condição. Todos se transfiguravam em seres sós no mundo — uma grande comunidade de apartados.

O dia estava convenientemente nublado e abafado. O asfalto esburacado, quase sem nenhum carro a cruzá-lo. Quando algum passava, não via o motorista. Eram apenas máquinas sobre rodas… O invasivo ar quente abraçava a mim, às árvores, aos muros e às casas. Por onde andasse, a solidão se intrometia nas cenas.

Casal de bolivianos. Ela, encostada na grade do Piscinão, de frente para mim, quase a chorar, enquanto ele, de costas, parado-calado, com um cigarro entre os dedos. Mais adiante, um rapaz, de cabeça baixa, sentado à beira do Piscinão, por entre o lixo deixado pela enxurrada. Nesse, senti carregar uma solidão diferente da minha, que me animava, a dele parecia bastante angustiada.

Ao passar em frente ao burburinho da feira, não consegui ver a multidão, somente muita gente só, a reclamar dos preços altos e a carregar o dia seguinte em sacolas plásticas. Perto do Largo do Japonês, um casal de namorados. Ele, sem camisa, sentado em uma cadeira, recebe um beijo na boca, outro no peito e, por fim, na barriga… Ao passar por eles, reconheço os sem-teto que se abrigam em coberturas improvisadas por ali. São dois moços… um deles, se veste dela… Parece que estão juntos para o que der e vier…

Nesse instante, o encanto se quebrou. Não me senti mais tão bem sozinho…

*Texto de 2015

BEDA / Círculo Da Lua

Círculo da Vida
Piscinão Guarau

Na manhã de sábado, quando caminhava junto à avenida esburacada do bairro em direção à academia, observei uma concentração incomum de urubus (pela quantidade, os tenho chamado de “pomburubus”) sobrevoando bem alto a área do Piscinão do Guarau. Talvez tivesse uns quarenta ou mais realizando manobras circulares em torno de um ponto mais claro no céu azul.

Identifiquei, para a minha surpresa, apesar do horário, que se tratava da lua em seu último quarto. Foi um benefício adicional ao meu esforço de voltar à atividade física. No céu da cidade de São Paulo é raro vermos a lua em sua plena expressão, mesmo à noite, já que as luzes artificiais impedem que os nossos olhos alcancem o belo astro para além da prisão luminosa na qual erramos.

Urubus são seres fascinantes. Tom Jobim, quedava igualmente extasiado com as elegantes circunvoluções dessas aves necrófagas. No entanto, o voo alto é uma das maneiras que esses seres utilizam para buscar alimentos. São importantes na limpeza do meio ambiente. Quando ocorre a mortandade de muitos animais por doença, por exemplo, o urubu ajuda a controlar a epidemia ingerindo as suas carcaças.

Possui uma envergadura de 2,40m e peso que oscila de 3 a 5kg, medindo cerca de 85cm de comprimento. Na Natureza, tem poucos predadores naturais, mas, devido à sua baixa capacidade reprodutiva, além da degradação do seu habitat, é uma espécie cada vez mais rara de se observar. O que significa que são os homens os principais responsáveis pela diminuição de sua população. Em suma, seus predadores…

Não foi o caso desse dia, onde a revoada de tantos entes alados fazia lembrar um bom filme B. Naquela área, eu os tenho observado em número cada vez maior. Quando chove mais torrencialmente, o piscinão do Guarau recebe os rios canalizados da região, impedindo que as águas do vale invadam o rio canalizado de mesmo nome, que se estende sob a avenida de fundo de vale Inajar de Souza, até desaguarem no Rio Tietê.

Todo o lixo orgânico e não-orgânico que é jogado ou cai nos esgotos da região se espraia por todo o perímetro do Piscinão Guarau, tornando-o um verdadeiro “fast-junk-food” para os urubus. Ou seja, de uma maneira enviesada, estamos proporcionando um verdadeiro criadouro para os membros da espécie Sarcoramphus papa (L.).

São as voltas que vida dá…