BEDA / Menino*

mãe e três filhos desterrados
12 horas de viagem rumo à tríplice fronteira
foz do iguaçu
mais 6 para chegar ao marido
fugitivo exilado
posadas missiones argentina
estava na casa sua mãe nossa vó dora
ex-trabalhadora-do-sexo
que deixava o pequeno na parte de fora
não diga que sou sua mãe 
o filho do filho
outro menino de cinco anos se lembra
de altas palmeiras
caminhos de terra
mate quente amargo
riram quando pediu açucarado
convivência com o companheiro da avó
militar aposentado
homem de chapéu e bigode
severo e reto
noites estreladas
sol forte
minha mãe começando a fumar cigarro
o amigo que nunca mais a abandonou
ao contrário do homem com seus desmandos
que a deixou só entre estranhos
observando a nós
crianças simples pobres alegres
nadando nas águas do paraná
ao lado frigorífico da cidade
cheiro forte carne putrefata
carcaças boiando na correnteza
banhos de canequinha no quarto
em tinas d’água morna esquentada com lenha
melhor acostumar
nosso banho seria assim por anos
um dia voltamos todos
sete anos entrei no grupo escolar
falando espanhol
usando poncho no inverno
outros meninos rindo do esquisitinho
chamado de orelhudo nunca esqueci
meio do ano mudei de bairro de escola
escrevi antes que me ensinassem
li dois livros antes que a professora pedisse
puxava água do poço
cortava bofe que fedia
comida para os muitos cães
moía milho fazia quirela
fiz xixi na cama até os oito
pai vivia sumido
perdia a paciência quando voltava
briga entre irmãos por besteira
chamar a atenção do senhor
me jogou na parede tirou válvula
da tv ninguém assiste nada
planeta dos macacos nunca vi completo
eu era o oitavo homem
me sentia experimento cientista maluco
desafiava a morte em duelos de florete
fazia o z do zorro na cabeceira da cama
homem aranha pendurado na beira da laje
dormia no corredor
acordávamos cedo 4 horas da manhã
entrávamos por trás ônibus lotado
ficava no motor olhando o motorista
uniformizado quepe sapato lustrado
mãos destras no câmbio longo
com certeza seria motorista
hoje nem sei ligar um carro
passamos fome vendíamos
seres a duras penas
à espera das poedeiras
ofertarem ovos para comer
gostava de abacate com açúcar
pãozinho cortado foguete para render
bananas das bananeiras
goiabas da goiabeira
carregada de maribondos
amava priscila nossa porquinha cor-de-rosa
um dia sumiu
por um tempo comemos melhor
saído da prisão o senhor da casa nunca voltou
para o leito da senhora minha mãe
preferiu dormir no galpão do lixo
dos objetos dispensados recolhidos nos jardins
papéis metais plásticos
nossa primeira bicicleta sem pneus
um pé de patins aprendi a andar
livros eu guardava
dava prejuízo lia não trabalhava
juntava discos comecei a ouvir bach
na velha vitrola o patrão senhor meu pai
brigava mas deixava o menino quieto
que considerava inepto
que amarrava suportes
com barbante colava com cuspe
no parque infantil mário de andrade
eu macunaíma sem caráter formado
até os doze na barra funda
escola de viver amigos brigas esportes
natação futebol um dia se matou
professor querido na sala da diretoria
depois de atirar na amante servidora
que se salvou a culpei
criança idiota se metendo em caso de adultos
saí de lá para outra história
viver meu bairro outra escola
chance de mudar meu comportamento
minhas violentas certezas
outras companhias influências
nasci pela segunda vez
aos 13 cabeça cheia de tramas e visões
através de meus quatro olhos recém adquiridos
escrever
minha dor preferida.

Imagem: Foto por Orlando Vera em Pexels.com

*Poema de 2021

Participam: Alê Helga / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Cláudia Leonardi Suzana Martins Dose de Poesia / Lucas Armelin / Danielle SV

BEDA / A Carretilha

CARRETILHA

O Humberto, meu irmão, me enviou uma foto recém-tirada de um objeto tão simples quanto icônico de nosso passado – uma carretilha de poço. Perguntou se lembrava dela. Como esquecer? Ou melhor: como não vincular aquele instrumento a tudo que experimentamos no início de nossas vidas na zona praticamente rural em que fomos morar quando crianças? O ano – 1969.

Era o mesmo bairro em que hoje vivemos. Formado apenas por um conglomerado de ruas de terra, com lotes demarcados por números. Havia poucas construções, uma delas, a nossa. Casa simples, com um quarto, cozinha, um largo corredor, que fazíamos de quarto com camas de molas desmontáveis, e banheiro. Duas janelas maiores e uma pequena, do banheiro, uma única e grande porta, que dava para o corredor.

No início, por falta de dinheiro, madeiras faziam as vezes de porta e janelas. Logo depois, substituídas por outras de ferro, que se tornaram permanentes. Nosso terreno ficava junto a um córrego e era cercado por cercas com trepadeiras de buchas – aquelas usadas para banho.

A ideia de nos mudarmos para a casa inacabada foi tomada por meu pai. Durante a construção, em uma das visitas, encontrou um sujeito pernoitando em nossa futura residência. Temendo que fosse invadida, tomou a decisão de estabelecer a posse. Dessa maneira, lá fomos nós nos mudarmos de um local com luz, água encanada e esgoto para outro com restrição dessas e outras comodidades.

As paredes eram de cimento caiado; o chão, de vermelhão. Havia privada – possuíamos fossa séptica – mas não chuveiro. Com a água retirada de baldes com uma canequinha, tomávamos banho dentro de bacias para impedir que molhássemos o banheiro. A água, esquentávamos ao sol, no verão; por lenha, no inverno. Homem de Ferro. A carretilha surge na história nesse momento, ou melhor dizendo, um tempo depois…

No começo, retirávamos água nos apoiando na beira do poço, com as pernas entreabertas para não cairmos. Quando fizemos um puxadinho – uma futura lavanderia – a carretilha foi pendurada no teto da laje, presa a arames. Então, através de uma corda, retirar água do poço artesiano tornou-se uma tarefa divertida para mim. Gostava da atividade. Minha imaginação voava, enquanto pouco a pouco puxava a corda. Oitavo Homem. Percebi que tarefas repetitivas, como também varrer o chão ou lavar louça, me abstraíam.

O poço ficava no meio do espaço da lavanderia – dois tanques – entre a janela do banheiro e a porta principal da casa. Perto da casa, ficava o galinheiro, uma horta e plantas frutíferas no quintal. Em certa ocasião, quando estava aberto, nosso galo caiu nele. Fui buscá-lo, descendo pela escadinha de ferro. Iluminada por uma lanterna, pude perceber a parede construída por tijolos engenhosamente perfilados.

Com o galo agarrado-assustado-molhado debaixo do braço, desliguei a lanterna, a enfiei no bolso do calção e ascendi a escuridão, divisando a boca de luz cinco metros acima. Batman. Mais uma aventura que enfrentei com destemor de quem achava natural trepar em árvores, escalar paredes – Homem-Aranha – se pendurar em beiradas de lajes, saltar sobre valetas e pequenas corredeiras d’água. Super-Homem.

Apesar das dificuldades, sob a luz de velas sempre prontas para serem acesas diante da constante falta de luz, pontuada pela fumacinha de espirais para combater pernilongos queimando seu cheiro penetrante em nossos pulmões, expulsar os cavalos que comiam as buchas, caminhar sem destino a explorar os morros e as matas próximas me trouxe a sensação de que podia abraçar o mundo. Eu me sentia especial. National Kid. Percebi que toda criança, em liberdade, é um super-herói. E que uma simples carretilha tem o poder mágico de puxar tantas lembranças liquidas do poço das memórias…