21 / 08 / 2025 / BEDA / Dupla Personalidade

Eu tenho pés com duas personalidades entre si. Certamente há diferença entre as partes do nosso corpo, principalmente entre os membros e suas terminações — braços, mãos, dedos, pernas e pés. Quando era adolescente, naquela fase de desenvolvimento em que tudo está descontrolado, desde o crescimento dos membros, a definição do feitio do rosto, o aparecimento dos primeiros pelos, além das emoções em ebulição e os sentimentos conflitantes, o desejo sexual, os primeiros amores, normalmente platônicos, o que era comum para mim e assim permaneci durante quase a metade da minha vida, bati a cabeça algumas vezes, metafórica e literalmente, cultivando cicatrizes que surgiam a toda vez que raspava a cabeça. O que eu fazia de vez em quando para mudar o visual. Aos 17, quando me tornei vegetariano, emagreci bastante. Adepto das filosofias orientais, comecei direto a raspar a cabeça e assim deixá-la. Vivíamos os anos do advento do AIDS. Muita gente começou a achar que estava com essa síndrome, o virgem.

Antes dessa época eu tinha muito cabelo e o deixava se expressar da maneira que quisesse. Se bem sendo fã de música negra, cheguei a lavá-lo com sabão de coco — o que o deixava endurecido — e o penteava com garfo de metal, daqueles especiais para cabelos crespos. Logo, eles baixavam, o que me deixava chateado. Mas consegui pelo menos uma vez tirar uma foto que se perdeu no tempo, mas talvez esteja nas caixas de fotos da minha mãe que estão com a minha irmã. Mas voltando ao título deste texto, como gostava de jogar bola, enfrentava todos os terrenos onde havia um grupo de meninos correndo atrás de uma bola.

Em certa ocasião provavelmente quebrei o dedão esquerdo numa dividida. Continuei a jogar mesmo com dor. Com o tempo, os dedões foram se tornando diferentes um do outro. Como prova de solidariedade, ambos tem as unhas encravadas. Eu os trato diuturnamente. A Milena, minha podóloga, garante que fiquem domados. No mais, os dois pés pelo menos caminham lado a lado, graças a Deus!

19 / 04 / 2025 / BEDA / Estrada

Por algum motivo obscuro, as minhas quartas-feiras caíram no vácuo. Na semana passada, esqueci que estava agendada a minha terapia, às 10h. Dormi até tarde, já que havia deitado às 5h. Nesta quarta, a mesma coisa – esqueci da sessão, novamente às 10h. Não percebo nenhuma correlação, mas talvez haja. Só que desta feita dormi às 2h e acordei às 6h30. Havia agendado com a minha podóloga às 8h. Costumo utilizar essas visitas para caminhar. São 6,5Km de onde eu moro até o Limão, onde fica a clínica. Demoro uma hora e quinze minutos para completá-la. Com a Milena, trato das minhas unhas encravadas uma vez por mês.

Na caminhada até a clínica, entre subidas e descidas, encontrei pessoas que de alguma forma me impressionaram. Passei por uma senhora de belos cabelos brancos que se sentara numa mureta para descansar, ladeada por seu cão tão velho quanto ela. Eu sorri quando o vi e ao olhar para ela, sorriu para mim porque eu sorri para ele. Comecei o meu dia com um momento de aproximação com pessoas (incluindo o cão) que talvez nunca mais voltasse a ver, mas registrado o sentimento de união, viverão para “sempre”. Considerando que “sempre” nunca é para sempre. Mais adiante, um rapaz com uma camiseta de futebol com o nome de Vinni Jr. no costado, jazia semiconsciente numa esquina à espera da abertura do bar. Reflexos da derrota brasileira em terras argentinas no dia anterior?

Hoje mesmo, botando o papo em dia numa intimidade que três ou quatro anos de tratamento construiu, disse à Milena que a doma das minhas recalcitrantes unhas dos dedões do pé, me levaram à conclusão há algum tempo que ao vivermos um estado de equilíbrio saudável, esquecemos com facilidade que um dia sofremos alguma dor ou ela deixou de ter relevância. Ao me falar sobre seu filho, Pedro, que estava fazendo terapia, lembrei que tinha a minha, mais tarde. Abdicaria da volta à pé, como era a minha intenção.

Com a Milena, gosto de conversar sobre o moço que vive a fase da adolescência de uma maneira que me é familiar. Talvez todos os adolescentes sejam iguais, mas há aqueles que são mais iguais do que outros. E com o Pedro, me identifico. As mesmas impressões, experiências (ou a falta delas com relação às meninas, por exemplo), as mesmas dúvidas aterrorizantes de quem está naquela fase de ebulição constante, vítima dos tais hormônios que nos regem o sofrimento de sermos meio meninos, meio moços, num mundo de homens adultos que estão a perder o rumo. É uma estrada tortuosa, cheia de atalhos que mal tomados pode significar muitos desprazeres.

Desses sofrimentos me lembro e percebo que de certa maneira ainda repercutem em mim. Eu fico compadecido daquele garoto que fui, tão confuso, ao mesmo tempo que carregava todas as certezas do mundo. Já, então, havia decidido escrever como o primordial meio de expressão. Há momentos que prefiro apenas escrever porque quando falo é comum não ser compreendido. O que pode ocorrer também ao ser lido. Mas verbalizar intimamente o que se passa comigo, faz com que eu me reconcilie com a minha trajetória e descortine o rumo que estou a tomar. Estabeleço uma linguagem cifrada que me vale de alguma coisa. No mais, percebo que repiso paisagens pelas quais encontro como se fossem déjà-vu, mas com o peso de novo acontecimento. É quando percebo que estou como a andar em círculos e especular: seria esse o meu destino para os dias que se seguem?

Foto por eberhard grossgasteiger em Pexels.com