Tentei me lembrar do dia seguinte em que pela primeira vez estive com uma mulher, a própria mulher com a qual vim me casar. Ocorreu há 38 anos antes e estava a dois meses de completar 27 anos. Certamente sou um caso raro de homem que se preservou até encontrar alguém com quem quisesse ficar. A história por trás de ter deixado de ter experiências sexuais anteriores é plena de oportunidades que evitei que acontecesse. Os motivos foram tantos quanto subjetivos, alguns que até esqueci, mas o maior era o medo que eu tinha de me envolver e envolver outra pessoa com todas as minhas idiossincrasias, devidamente consideradas fora do comum. No dia seguinte estava frustrado com o meu desempenho na ação propriamente dita. O que buscaria resolver com uma maior assiduidade na prática. Claro que isso acabou por desencadear na notícia da gravidez da Tânia. Usávamos a chamada Tabelinha, que deu certo por três meses.
A minha expressão pessoal era avessa à realidade imediata das pessoas com as quais convivia. Tinha comportamentos esquisitos, ouvia músicas incomuns como Jazz ou instrumental clássico e menos fora do comum como a MPB de Caetano, Chico, Gil, Jards Macalé, Ivan Lins, Djavan e outros tantos alijados da realidade da Periferia. Tinha o hábito da leitura compulsiva. Fazia o Curso de História, na USP, mas planejava passar para o de Português já de olho na possibilidade de me tornar escritor. Certamente seria Professor, mas ao mesmo tempo vivia em choque com o Sistema que impõe um “jogo de cartas marcadas” no qual que não queria ingressar. Mas como já disse Vinícius: “a vida tem sempre razão”.
Em três meses, a minha vida tomou um rumo diverso do que havia imaginado, mas que hoje abençoo. Aliás, se há uma postura que não adoto é do jogo do “Se“. Se isso ou aquilo tivesse acontecido deixo apenas para as histórias que crio como escritor, somente como expediente no desenvolvimento de temas mais intricados, dadas as “realidades” possíveis. Cheguei a este quadrante satisfeito com o rumo que acabou por encetar a minha vida.
dois ônibus ir dois voltar atravessar cidade universidade mãe orgulhosa pai exultante dizia para amigos meu filho uspiano afastado não ajudava madalena sozinha pagava transporte quatro passes por dia dinheirinho lanchar xerocar saía cedo voltava noite quinze minutos de atraso multiplicado tempo por quatro trabalhos feitos nas coxas papel caneta trepidação asfalto irregular letra estranha hieroglifo pessoal egiptologia primeiro desafio professora boa severa o tema é este se virem biblioteca lugar preferido mudei maneira exposição regrei pensamento conheci colegas artistas ratos de porão ira! piscina plataforma dez metros saltos prova de coragem futebol campo oficial médio volante que batia corridas cem metros diversão um dia fiquei preso trânsito parado dormi meia hora acordei mesmo lugar preferi hora mais ficar entre livros no retorno augusta noturna mulheres lindas altas curvilíneas especiais volumosas homens quis cantar no coral rejeitado maestrinho novo filho de maestrão cargo indicado o vaidoso queria distinção contrário anúncio não precisava saber cantar feliz ano velho figurante de filme pensei ser ator colega cabelos dourados desfilava pelos corredores guardava o sol na cabeça iluminava meu olhar seu sorriso outra noiva que desejava convite bicicleta Ibirapuera timidez atroz medo escapei outro amor do colégio estudava nutrição invadi sala entreguei cartas declaração admiração paixão recolhida encontro noite estranha eu não conseguia falar o que desejava ela disse você não pertence a sua família mãe irmãos dissemelhantes como se fosse adotado aumentou sensação de alienígena quando a busquei de novo comportamento muito ruim passei limites me senti diferente de mim mas era eu mesmo assim dissociação perigosa inescrupulosa um dos meus avessos quis ser frei franciscano quase três anos caminho visita seminário agudos santo antônio frei luiz não quis mais um ano sabia frei não seria de história entrei curso português sonhava ser escritor mudei opinião conheceria mulher tingi cabelo amarelo trabalhar carnaval encontrei namorada que veio de longe rasguei peito abri coração perdi virgindade transei primeira vez mudei curso rumo caminho história 27 anos engravidei casei a vida acontece apesar da vida.
Professor acordou naquele sábado ainda com a angustiante lembrança de sua morte. Em sonho. Era tão forte a sensação que teve certeza que ocorreria no correr das próximas horas. Tomou o café da manhã com a filha, sem coragem para lhe falar que passaria desta para melhor. Sem muita certeza que a passagem fosse assim tão boa como se dizia — talvez algo dito para a consolação dos que ficavam. Homem culto, professor de Português em escola pública, conhecia inúmeros textos da morte versada em todas as suas possibilidades e expressões, em todos os tempos. Pouco religioso, preferia citar às mitologias egípcia e grega — Osíris, Hypnos e Morfeu — a santos que viessem a lhe dar alento.
Saber que morreria lhe trouxe certa paz e tranquilidade, sentimentos pouco comuns nos últimos anos. Na manhã invernal que se anunciava tépida, pediu para a filha um pouco de dinheiro. Disse que desejava comprar algumas frutas. O salário que recebia da pensão deixava todo para a sábia Sophia administrar, que fazia jus ao nome dado. Viúvo, ela era a luz de sua vida. Sentia-se responsável por ela nunca ter se casado. Intuía que fosse por sua causa, alcoólatra que não bebia há dez anos, mas que antes disso era motivo de preocupação. Uma diversão de final de semana — beber com amigos no Bar do Chico — tornou-se programa diário após a aposentadoria. Decidiu parar quando, embriagado e desconexo, caiu na frente dos ex-alunos em um evento comemorativo de uma antiga turma que o elegera como patrono.
De ProfessorCarlos, passou a ser chamado somente pelo título. Dos tempos que os alunos se levantavam quando entrava, sua força expressiva impunha esse ritual mesmo depois de cair em desuso nas escolas de relações modernizadas. Aposentado, homem esguio e elegante, preto de cabelo branquíssimo, sua figura lhe fazia parecer uma entidade. Ajudava a aumentar a fantasia em torno de si o uso da bengala, devido ao joelho vago e o chapéu branco — marca registrada dos tempos da escola — mesmo quando moço.
Ciente que morreria, Professor decidiu beber a isso. Ao contrário de tantas vezes em que apenas saudava aos frequentadores do Bar do Chico, quando passava em frente. Dessa vez, tornou seu corpo à esquerda e invadiu o espaço sagrado do balcão de madeira antigo e liso por milhares de passadas de mãos, braços e copos.
Chico, surpreso, o saudou incrédulo. Alguns de seus antigos companheiros de copo presentes tampouco criam que Professor estava sentado junto a eles. Incluindo os três jogadores de dominó na mesa de metal em sempiternas partidas. Chegaram a paralisar por instantes as suas jogadas. Como se há apenas uma semana antes bebesse entre eles, Chico perguntou:
— O de sempre?
— Sim, o de sempre!
Habilmente, Chico preparou em um copo especial — guardado há dez anos — privativo do Professor, a mistura com 50 ml de cachaça, 25 ml de vermute tinto, 25 ml de Cynar, com um twist de limão Taiti. Serviu com reverência ao professor de seus três filhos, homens de bem que o amavam como a um segundo pai. Sua luz desviou vários alunos do caminho do crime, tão comum na Periferia.
Após várias horas de rabos-de-galo, risadas e causos que sabia contar como ninguém — versões adaptadas por ele de histórias da Mitologia greco-romana e de Guimarães Rosa — Professor anunciou que era hora de partir. Desacostumado a sentir tanto prazer, embriagado de alegria, sentiu-se preparado para morrer. Ao puxar da carteira, Chico pediu para que a guardasse. Ressaltou que era um prazer servi-lo.
Ergueu-se como se não tivesse bebido nada, o que surpreendeu a todos. Tomou um último gole e deixou um restinho para o santo. Caminhou para a rua pela última vez, com o Sol declinante de agosto no horizonte a lhe conferir tons de âmbar na pele brilhante. Desapareceu no lusco-fusco sem deixar pistas.
“… E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação.
Desisto, e terei sido a pessoa humana – é só no pior de minha condição que esta é assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono.”
Esses são alguns dos exemplares e imensos parágrafos que encontramos em “A Paixão Segundo G.H.“, de Clarice Lispector. Ontem, quando fui buscar “AS Ondas“, de Virginia Woolf, encontrei o magro livro que contém excertos de contos de Clarice Lispector. Eu tenho uma sessão de livros escritos por mulheres, além das autoras da Scenarium, expostas juntas aos seus pares de selo em outra prateleira. Tinha várias outras opções para escolher, mas um pouco mais cedo vi e ouvi a maravilhosa Fernando Montenegro interpretando uma passagem de “Um Sopro De Vida“, me impactando de tal maneira que quis “claricear” o dia nublado e frio de outono. Produzido em 1981, pela Editora Abril Educação como suporte de estudos à realização de vestibulares, foi muito bem estruturado com Sumário, Biografia, Cronologia Biográfica, uma lista com Obras da Autora e textos selecionados de “Perto Do Coração Selvagem“, “Laços De Família“, “A Legião Estrangeira“, “A Paixão Segundo G.H.“, “Uma Aprendizagem Ou O Livro Dos Prazeres“, “Felicidade Clandestina“, “Onde Estivestes à Noite?” e “A Hora Da Estrela“.
A edição apresenta um panorama das várias épocas em que foram produzidas, ainda que a obra de Clarice seja atemporal (Do Estado Novo ao Novo Estado, à espera de um mundo melhor); uma cronologia-histórico-literária; características da autora (Em busca do selvagem coração da vida); verificação dos conteúdos; exercícios de de fixação; atividades de criação; livros para consultas e bibliografia consultada. Ou seja, um estudo completo que ganha autonomia para além da imersão nos escritos. Elaborada por Samira Youssef Campedelli e Benjamin Abdala Jr., na época em que fiz o vestibular para a Faculdade de História da USP, poderia tê-lo utilizado se o tivesse em minhas mãos. Mas não me lembro dela. A capa está marcada por caneta. Por dentro, está rabiscado à lápis de cor com nomes em letra de forma, como quando alguém aprende a escrever. Não duvido que eu a tenha recolhido de algum lugar por aí, em missão de salvamento.
Entre as suas páginas, encontrei uma folha com indicações de grandes autores brasileiros com resumos de obras de cada um intitulada “Resumos Especiais” — “Reunião“, de Drummond de Andrade; “Iracema“, de José de Alencar“; “Memórias Póstumas…“, de Machado de Assis; “Sagarana“, de Guimarães Rosa e “São Bernardo“, Graciliano Ramos. Produzida pelo Curso de Vestibulares MED, me recordei que eu não tinha condições financeiras de fazer esse ou qualquer outro dos “cursinhos” que naqueles tempos floresceram à sombra da deficiência que as escolas começaram a apresentar já nos anos 70 com a reestruturação da Educação promovida pela Ditadura. Um projeto contínuo de controle ideológico da didática do ensino, impedimento da discussão sobre a produção do conhecimento, da análise dos problemas sociais brasileiros e da censura sobre as áreas criativas e culturais.
Não precisei dos cursinhos para entrar na USP, mas o dano causado à Educação pelo projeto militar, acabou por tornar gerações inteiras imunes à grandiosa beleza da obra produzida por Clarice Lispector. Uma das maiores escritoras do mundo que, nascida na Ucrânia, preferiu escrever em Português, enriquecendo a Língua e a Literatura brasileira.
Carla entendeu que aquele seria o melhor horário para morrer — 7 horas da manhã. Quando Francisca chegasse, dali a uma hora, a encontraria em “boas” condições físicas, apesar do processo de autólise que se iniciaria assim que o coração parasse de funcionar. Naquela altura, seu corpo daria chance para que a vida explodisse em novas formas, habitado por moradores invisíveis. Ao pensar sobre isso, veio a perceber que o tempo não era o mais importante, mas a afirmação da vida, ainda que ínfima na duração e diminuto, o habitat. Começou a se sentir importante em se tornar o mundo de colônias de bactérias em um complexo ecossistema que se alimentaria dela até estarem exauridas as suas fontes de energia — ela mesma, Carla.
Estaria morta a médica de 40 anos, bonita e desejada que, no entanto, não conseguia ultrapassar as barreiras dos relacionamentos com pessoas — homens e mulheres — que escolhia a dedo para feri-la. Ou talvez fosse ela, tão sensível desde a infância, que chorava por qualquer coisa. Pelas irmãs, era chamada de chorona e ranheta. Os namorados e namoradas, se afastavam assim que percebiam que não conseguiriam lidar com tamanha delicadeza em prantos, apesar da beleza física clássica. Vaidosa, para não ser encontrada mole pela podridão em paulatino avanço, não quis se matar à tarde, quando bateu a dor mais profunda por estar viva. Passara mais um dia a cuidar de pessoas que, estranhamente para ela, se agarravam à vida de maneira absurda. A contaminação pela Covid-19 voltara a aumentar. Dessa vez, os pacientes eram mais jovens que, como característica básica, se consideravam imortais. Mas para alguns, a doença se assenhorava do corpo como fosse uma casa abandonada invadida. Os estragos fisiológicos, caso sobrevivessem, seriam inevitáveis.
A falta de empatia ou, de outra forma, certa inveja por não ser contaminada pelo vírus, a deixava com raiva de si mesma. Carla se lembrava do quanto se importava com as pessoas e o desejo desde nova em se tornar médica. O curso, logo de início, foi a deixando cada vez longe do ser humano solidário para torná-la um ser de emoções amorfas. Ter sido estuprada por um grupo de colegas depois de uma aula de Anatomia, praticamente a matou por dentro. Até o presente dia, não se conformava por não ter delatado a corja, hoje, médicos renomados, de lindas famílias de comercial de margarina. Tinha pesadelos recorrentes sobre como a usaram para “estudar” os nomes das partes da sua estrutura físico-biológica viva — detalhes da cabeça, passando pelo tronco e membros — e seus sinônimos funcionais, no léxico popular e no médico. Oito mãos intrusas e quatro órgãos genitais usurpadores passearam sobre sua derme sem obedecerem aos seus recessos ou às recusas veementes, abafadas por estarem em um lugar isolado. Percebeu que o local onde se deu a “aula” de Anatomia fora escolhido a dedo e a ação, planejada.
Para nunca mais os ver, evitou se candidatar para trabalhar nos maiores hospitais de São Paulo, para onde foram. Jamais quis participar de festas de congraçamento pelo Dia do Médico ou de reuniões festivas da Turma de 2002 de Medicina da USP. Ao procurar atender na Periferia, sua atitude foi confundida com benemerência, o que lhe angariava simpatia e admiração. Morar em Santana a deixava perto dos hospitais da Zona Norte nos quais atendia como Dermatologista. Aquela casinha a lembrava de sua morada na vila da Zona Leste onde cresceu, o que lhe dava certo conforto mental pela evocação da lembrança dos pais amorosos. Afora isso, não conhecia os vizinhos das casas de fachadas iguais e muros baixos à direita e à esquerda. Não tinha tempo e, para ser sincera, não queria.
Um pouco antes de ligar o gás, Carla ouviu a campainha tocar. Pensou em não atender, mas decidiu ver pela janelinha quem era. Um sujeito mascarado estava junto ao portão. Usava roupas largas, uma camisa colorida tingida. A máscara não conseguia esconder uma espessa barba. Os cabelos, um tanto desgrenhados, a lembrou de um rapaz que conheceu na Mooca do qual gostara muito, mas sempre à distância. Era uma figura que parecia ter acabado de chegar diretamente dos Anos 70, pelo que já vira em filmes. Curiosa, abriu a porta e postada debaixo do batente, perguntou o que ele queria.
— Oi, vizinha! O meu nome é Raul! Moro aqui do lado, na casa do meio. Queria lhe desejar um bom dia!
O tom de voz era sereno e o timbre profundo, de barítono. Antes que ela pudesse responder algo, o tal de Raul se dirigiu a dois portões à esquerda e tocou a campainha. Pouco depois, apareceu um homem preto que perguntou exatamente o que ele perguntara antes, como se fosse uma fala ensaiada. O sujeito repetiu a mesma linha:
Oi, vizinho! O meu nome é Raul! Moro aqui do lado, na casa do meio. Queria lhe desejar um bom dia!
O vizinho da esquerda foi mais ágil do que Carla e retrucou o cumprimento:
— Bom dia, vizinho!
Curiosa, Carla acompanhou os passos decididos de Raul até a esquina com a Dr. César. Intrigada e absorta em saber porque um vizinho que nunca vira antes, a fez descer a terra de maneira suave, como se fosse uma alienígena recém chegada. Assim como ela, o outro vizinho acompanhou o percurso de Raul até virar a esquina, à esquerda do Si, Señor! Quando voltou a cabeça, viu Carla e lhe desejou um bom dia, ao qual ela respondeu em tom surpreendentemente descontraído. Após o que, se apresentaram — “Carla, prazer! Prazer, Fábio!”. Durante vinte minutos conversaram como se fossem velhos amigos. O assunto, naturalmente, foi Raul. Nenhum dos dois sequer sabia que ele morava na casa do centro. Era como se tivesse saído de uma fresta dimensional.
Quando deu por si, Carla viu Francisca chegar mais cedo que o normal. Teria que esperar mais uma semana para realizar o seu plano suicida. Não se mataria antes que ela saísse, para que seu corpo fosse encontrado apenas sete dias depois, quando voltaria para fazer a faxina da sua casa. Nem era tanto serviço assim. Usava pouco a casa, já que trabalhava todos os dias e passava os finais de semana dormindo como se fora uma refugiada. Isso, quando não fazia plantões pontuais. Não recebia ninguém. Não cultivava amigos. As irmãs não sabiam do seu endereço. Os pais, estavam mortos. Francisca e seus doentes eram as pessoas com quem mantinha um contato mais íntimo. Com os colegas de trabalho apenas trocava informações profissionais, sem maiores proximidades. Até que Raul lhe deu bom dia e invadiu seus pensamentos…
Na Voluntários da Pátria, Raul comprou flores. De lá, se dirigiu ao corpo de bombeiros, na Braz Leme. Em frente à corporação, perguntou a um soldado pelo comandante. Informado que estava na sala de comando, pediu para entrar e lhe entregou um belo buquê de flores. Uma variação aceitável da letra original de “Telegrama”. Quando garoto, Raul até pensou em ser bombeiro. O importante é que o comandante, pego de surpresa, sorriu desmascarado de qualquer rejeição. Ele não perguntou em nome de quem entregava as flores, Raul não disse nada ao ofertá-la. Um momento mágico entre dois homens. Acenos de cabeça e saída do entregador como se flutuasse.
Caminhando pela mesma Braz Leme, Raul foi em direção da Casa de Pães. Uma das coisas que lhe dava maior prazer físico, além do sexo, era comer pães. Gostava de quase todos os tipos, mas os italianos eram os seus preferidos. Conhecia o proprietário e se alguém merecia um beijo, esse era o padeiro. Ser padeiro, não lhe desgostaria tornar-se um. Estava como que caminhando sob o comando de seus desejos adolescentes ao fazer o trajeto de centenas de metros entre um ponto e outro. Uma vida toda em que abraçou o humanismo como profissão de fé, a atividade da espécie no planeta como sentido que buscou compreender e empreender. Em que momento tudo se tornou demais? Em que ocasião ser humano não representava mais nada? O asfalto duro, a calçada esburacada, as árvores na ilha central, as pessoas caminhando para algum lugar… o que significava, realmente? Sentiu reacender a chama pela busca pelos significados, uma curiosidade por si mesmo e pelo mundo. Sua divagação foi cortada por uma frase dita espontaneamente por si em voz alta:
— Que linda mulher, a minha vizinha…
Porém, naquele momento, ele mantinha apenas um propósito: beijar o português da padaria.