“Cheguei em casa do trabalho por volta da meia-noite. Esperei pelo noticiário para tentar entender o que estava acontecendo em nosso País. Corrupção pública e privada, crimes contra as pessoas, instituições falidas. Tentava entender porque a Bolsa, que estava em alta, com o dólar em baixa, no dia anterior, hoje (ontem, amanhã) reverteram as expectativas e os sentidos… Manipulação do mercado financeiro? O povo que se dane?
Dois dos meus sentidos deviam estar me enganando!… Mais e mais, senti o meu corpo afundar no sofá com o peso das informações… Não é caso de desvalidar os veículos de comunicação que as veiculam. Não se trata de matar os mensageiros apenas porque nos dão notícias ruins. Mas sim entender porque nós nos colocamos, como povo, nessa situação sem sentido e, aparentemente, sem uma solução ‘honesta’.
Para qualquer lado que formos, que Deus nos ajude!”
*Neste texto de 2016, se já prefigurava o resultado de um jogo perigoso iniciado dois ou três anos antes em que se estabeleceu a premissa de César, general e imperador romano, milhares de anos antes — dividir para dominar — estimulada por agentes políticos interessados em governar sobre os despojos resultantes. Essa cisão acabou em resultar no atual estado de penúria institucional e ética, somada à uma crise sanitária que nos marcará por gerações ou talvez nem tanto, dada a incapacidade do povo brasileiro de se lembrar sequer o que aconteceu no verão anterior. Isso não é sinal de cura, porém de incúria.
Eu queria falar de amor, mas meu amor foi embora… Depois disso, o meu amor me deixou. Porque o amor morre antes em nós e nossos amores, como flores sem água, ressecam, escurecem e vemos suas pétalas deixarem suas hastes e nossos braços.
Nossos abraços deixam de aquecer o corpo-solo, as nossas mãos não fertilizam mais carinhos, os nossos olhos não vislumbram mais o sol na manhã orvalhada.
Quando isso aconteceu? Foi da noite para o dia? Ou fui sendo envenenado pouco a pouco, minha alma a se desertificar até se tornar terreno pedregoso, ácido e impuro?
O que sei é que quando olhei ao redor só percebi padecimento e ignorância, violência e ódio, morte e desdém. Doenças e falsas crenças, o mal a grassar de graça — desgraça e trapaça — povo contra povo, o tentacular polvo do poder a provocar a confundir, a maldizer, a mentir, a matar…
Antes, eu conseguia proteger o meu jardim… Afastava predadores e pragas, me abrigava de palavras negativas, frequências de indecências em ultrajantes vagas dos corruptores do espírito… Conseguia ultrapassar as nuvens escuras de tenebrosas ameaças e ver a luz. Conseguia pôr a cabeça e respirar para fora do lamaçal — esgoto de merdas, merdinhas e merdaças.
Porém a luta insana me esgotou. Cansado, submergi sob a influência do homem mau — mitológico e orgulhoso representante do Medo e do Mal-feito. O meu amor me deixou e não consigo mais falar de amor — boca que se calou em campo de cultivo inóspito-asfaltado, rumor de lembrança boa, falta que magoa — dor fantasma de membro amputado…
Há momentos que a minha mente, que se pretende poética, cede lugar à escatológica. Só assim para tentar entender como funciona a cabeça do brasileiro, que costuma entremear ações, acontecimentos e procedimentos graves com um quê de humor sacana. Essa postura seria louvável – teria certo teor de leveza – se não fosse trágico. Principalmente quando se trata da administração da coisa pública – a considerar algo que não pertença a ninguém e que sobre ela a ninguém se deva dar satisfação ou prestação de contas.
O humor se dá, em muitas ocasiões, de forma provocativa. Na Assembleia Legislativa do Rio, o local específico onde se dão os acertos nada republicanos para o fatiamento dos saques promovidos pelos piratas em terra firme – também chamados de legisladores – ganhou o epiteto de “Furna da Onça”. “Furna” é uma palavra que pode ser substituída por “toca”, “caverna” ou “antro”. Aos momentos dos acordos evocou-se a expressão “a hora da onça beber água”.
Ao se autodenominarem “onças”, os tais membros do Legislativo estão cientes que estão no topo da cadeia alimentar. O dinheiro auferido pelos impostos pagos pelos cidadãos, além de outros recursos, constitui o alimento que lhes garantirão não apenas a subsistência, como também a criação de uma confortável rede de sustentação-compadrio que abarca milhares de pessoas, em detrimento do resto da população. Esse domínio se dá sobre o corpo e o destino do “amado” povo que os elege – um amor de ocasião com tempo limitado de duração.
Outra maneira de alimentar vereadores, deputados e outros membros eleitos por nós é a chamada “rachadinha”. Aparentemente, trata-se de uma operação tão tradicional nas relações político-partidárias, que se inclui entre as vantagens constituintes de quem é eleito. É o processo de preenchimento de cargos com salários em que metade do montante retorna ao pagador – à figura política-administrativa do nosso representante.
O mais distraído dos cidadãos talvez não perceba que essa nomeação remete ao órgão sexual feminino – objeto de desejo sexual do macho humano. Para esse tipo, a mulher é apenas aquela que carrega a porta de entrada para a satisfação de sua sanha. Ah! Não é simplesmente uma rachada, mas uma “rachadinha” – o diminutivo carrega a ideia de algo desimportante, mesclada à evocação de conteúdo carinhoso e certo viés pedófilo.
A conotação sexual, é uma clara característica do humor nascido no âmago das relações do patriarcado brasileiro. Junta-se ao conceito de algo que é naturalmente aceito como sendo reservado a quem é poderoso – tal qual a figura do pai na tradicional família brasileira. Já disse, em várias ocasiões, que um aspecto do poder “é o poder de poder foder”.
Alguns dirão que apresento um entendimento doentio-pornográfico da situação. Pornográfico é o que acontece diante de nossos olhos, como se estivéssemos assistindo a uma dionisíaca foda tendo como pano de fundo a manipulação da eterna esperança que temos por um país melhor. Mãos, dedos, bocas e línguas atuam diligentemente na escuridão para que milicianos da palavra, à esquerda e à direita da furna, se aproveitem do apagar das luzes morais – no sentido do bom procedimento dos homens nas relações com seus semelhantes – para promover o bacanal onde invariavelmente todos saímos fodidos para o prazer dos abusadores eleitos.
Já ouvimos várias vezes alardeado que nós, brasileiros, temos “complexo de (cachorros) vira-latas” – termo criado por Nelson Rodrigues a se referir sobre a nossa baixa autoestima como povo. Ele versava principalmente sobre o futebol, então (anos 50) acostumado sempre a quase ganhar e que não reconhecia seus grandes predicados para vencer. Superamos o nosso complexo de vira-latas no esporte bretão – fomos 5 vezes campões do mundo no futebol. Porém, ainda não conseguimos superar a nossa antiga condição de vira-latas, se bem que não haja mais latas para receber o lixo que produzimos colocadas fora do portão.
Eu me dei conta disso quando vi um cachorro rasgar sacos de lixos deixados na calçada, na busca de comida. Nunca mais vi, pelo meu bairro ou em qualquer outro, latas ou quaisquer tipos de recipientes particulares para conter os nosso restos. E a causa é simples de explicar – com o tempo, as latas são levadas-roubadas. Eu me lembro quando se deixava vasilhames de leite e pão nas portas das casas e não eram tocados. Éramos, então, um país muito mais pobre economicamente, contudo isso não constituía motivo para que o nosso cotidiano fosse tão incivilizado. Portanto, não é uma questão de baixo autoestima, mas de autoavaliação: atualmente, somos um povo “rasga-sacos de lixo”…
Hoje, Dia das Crianças, estou trabalhando. Mas mesmo que não estivesse na lida, não me faria falta. As minhas crianças cresceram. São adultas e independentes. Por estranho que pareça, apenas recentemente, me dei conta que minhas filhas deixaram de ser crianças. Obviamente que já há alguns anos havia percebido que isso havia acontecido, porém nunca havia admitido intimamente que crianças que possam ser chamadas de “minhas” haviam deixado de caminhar pelos pisos de casa.
Acho que o fato de ter cães em casa transferiram o cuidado que tínhamos com as filhas para esses seres que preenchem nossa convivência de amor “infantil”. O amor “adulto”, proporcionado por relacionamentos em que aquelas pessoinhas totalmente dependentes de nós nos obedeciam quase sempre e, quando não, eram por pirraça, hoje se baseia em outros quesitos. Discutimos assuntos de adultos de igual para igual, nem sempre com a maturidade necessária… de ambas as partes. Não são raras as ocasiões que nos dão “lição de moral”.
Com elas, conversamos sobre a vida, nossa família, amigos e relações interpessoais, que muitas vezes se sobrepõem às de pais e filhos. É normal ocorrerem críticas de parte a parte, que podem vir a desembocar em brigas mais sérias. Caras viradas, olhares desviados que duram o tempo necessário para prevalecer o amor mútuo e a volta da palavra trocada. Como as meninas têm seus assuntos pessoais que prescindem, em sua maior parte, da nossa participação, restam apenas nossa presença na casa vazia que não ecoam as suas vozes a chamar: “pai!… mãe!”…
Mulheres que variam de 23 a 29 anos, minhas filhas não pensam em casar, o que me alivia muito. Não que não quisesse netos. Caso quisessem ter filhos, não me oporia, contudo, casarem já é outra história. Admito até que netos viriam a renovar nossa vida com interesses diferentes, mas estamos tão ocupados com nossos próprios afazeres, que não sei como arranjaríamos tempo para isso. Antes, quem que passou dos cinquenta anos apenas esperava a chegada dos pimpolhos para lhes preencherem a vida. São novas épocas, com questões incabíveis anteriormente, com projetos pessoais a serem buscados pelos avós em potencial, como no nosso caso.
Não ajuda nada o atual panorama que vivemos, em que ter filhos envolve “questões de Estado”. Este Outubro, tem sido intenso. Além de eu estar renovando mais uma Primavera – pela quinquagésima sétima vez – este mês tem sido inédito pela manifestação de uma faceta da nação que já intuía, mas que ganhou clareza nestas eleições. Nosso povo, oriundo de misturas de credos, cores, preferências e origens étnicas, decidiu se orientar por uma bússola que determina um norte magnetizado na direção do latifúndio monocultural, em que expressões “diferentes” das “tradicionais” devem ser repudiadas, como se fossem responsáveis por suas íntimas contradições.
Beijo na boca pode vir a ser considerado crime. Andar de mãos dadas pode ser um ato político. Com grande risco de ver pessoas serem atacadas por preferências que supúnhamos ter superado quanto à liberdade de ação. Nesse estágio, apesar das diferenças pessoais quanto à visão do que consideramos individualmente os projetos mais apropriados para construir o País, temos como medida a Liberdade e a Democracia, acima de tudo. Fico muito feliz em perceber que, como pais, fizemos um excelente trabalho com as nossas crianças. Elas se batem e se colocam a favor das boas causas. Contra a volta de ideologias que fizeram tanto mal no início do século passado. Nossos netos, se vierem a nascer, merecem um mundo melhor…