09 / 10 / 2025 / Librinando

Os registros que aqui aparecem foram feitos ontem, na Cidade Ocian, Praia Grande, hoje considerado o segundo maior município da Baixada Paulista que, devido à influência da cidade de Santos, é mais conhecida como Baixada Santista. Fazia 17ºC e chovia intermitentemente. Ora com um chuvisco, ora mais intensamente, a tamborilar uma canção fora de ritmo. Saí de bicicleta mesmo assim, como fazia quando mais novo. Recebia a água no rosto como se fosse uma benção natural de quem estava livre de qualquer julgamento na cidade de pouco movimento que se escondia do frio úmido. A faixa de areia estava vazia e o Mar me convidava a visitá-lo mais tarde. E assim o faria.

Vestido com a minha sunga escura, naquele tempo chuvoso, devia causar um certo assombro em quem me olhava passando descalço. Como estava sem óculos, apenas imaginava que assim fosse. Aliás, a minha rua estava vazia de pedestres e um carro ou outro passava para acessar a avenida junto a praia. Cheguei à faixa de areia que umedecida, guardava o registro de estrelinhas feitas pelos pés de pombos solitários, além de pegadas de cães vadios que passearam antes que eu chegasse. Pensei que fosse o único a estar por ali, mas um grupo de adolescentes marcavam a sua presença festiva, brincando na chuva enquanto outros quatro estavam no mar brincando nas ondas, assim como eu faria dali a pouco. Mais alguns metros mergulhei na minha infância. O Mar estava agitado, com ondas a configurar desenhos diversos, que se faziam e se desfaziam em segundos. Mesmo nos dias em que o Sol se mostrou abertamente, não havia me divertido tanto. Por quarenta minutos, me senti pleno. Estar ali foi o meu presente que levaria dentro de mim.

A minha intenção era ficar hoje também por lá, sozinho. Comemorar o meu aniversário comigo mesmo, além do mar, ondulando, mergulhando, trocando confidências com Iemanjá. Estar na água me recompõe a mente, me ilumina a alma. Naquele dia nublado, úmido e frio eu me senti aquecido e quase adiei a minha volta à São Paulo. Mas decidi estar com a minha família, dando a sexagésima quarta volta em torno do Sol, completado às 2h da manhã. Tenho ouvido muito um antigo compositor cearense que dizia que nada é divino, nada é maravilhoso. Mas a sua franqueza negativa apenas mostra o avesso da realidade múltipla da vida. A cada mergulho, lavo o nosso presente em minha pele e reconstruo o meu passado. Chego aos 64 ainda curioso sobre o que a existência tem a me apresentar.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Anatomia Dos Passos

De supetão, a Lunna proclamou: haverá “6 On 6”! Mal acreditei que já estaríamos no sexto dia de Novembro, sendo que não faz muito tempo, era 6 de de Janeiro. O que fiz foi produzir os passos de um só dia, o de hoje mesmo, uma segunda-feira em que estou no Litoral Paulista (que a maioria chama de Baixada Santista) para cuidar da casa que frequentamos há, pelo menos, 50 anos. Este é um lugar que me remete a um período importante para mim.

Passando pela antiga região do Ipiranga, vejo que as velhas casas estão dando lugar a empreendimentos residenciais em forma espigões — símbolo da anatomia retilínea e sem graça de uma cidade-monstro-transmutante — que usou uma fórmula de cientista louco. A vetusta chaminé, símbolo do antigo progresso que antigamente até parecia feia, mas atualmente ganha contornos de saudade.

Indo em sentido do Litoral pela Rodovia dos Imigrantes, nome mais do que perfeito, passa-se por Riacho Grande, tão grande que parece um imenso lago. Quando eu o vejo, já sinto um frisson com a perspectiva de encontrar muito mais água logo mais — a do mar de amor de menino.

Logo, descendo pela Imigrantes, os contorlitoral

nos da Serra do Mar nos invade a visão e o espanto devocional a desbravadores que a transpuseram para chegar ao alto do Planalto Ocidental Paulista no qual a cidade de São Paulo (nunca) adormece em berço esplêndido, a 725 metros de altitude. Ainda bela e com o mesmo aspecto que os habitantes originais da terra frequentavam quando eram senhores de toda ela, me emociono pelo simbolismo que apresenta.

Após as curvas que abraçam as laterais do promontório, antes dos tuneis longos que adentram a Serra do Mar vislumbro as linhas das cidades litorâneas ao oceano. O Sol como testemunha. Na sequência, por túneis sinto me intrometer no corpo de um ser mitológico. A Muralha silenciosa ecoa o som dos carros que a atravessam sem a minha reverência que me faz pedir perdão por aquela invasão.

Assim que a série de túneis termina, na entrada que tomamos em direção à Praia Grande, à direita vê-se um pequeno conjunto de casas que formam uma tríade de perfeito sonho de lugar. Marca uma visão idílica, uma imagem para onde fugir a imaginação e ficar.

Na casa da praia volto a ser menino, tiro a camisa, decomponho o ser austero, voltado para as tarefas sérias em série que surgem como se fossem minas plantadas para explodirem aos meus pés. Com o celular deixado de lado, vou ao mar, esqueço de mim e de todos em mim. Converso com as ondas e me remodelo ao som de seus rugidos. Hoje, as águas estavam especialmente revoltas, puxando o meu corpo para mais para dentro, me expulsando como se eu fosse um brinquedo jogado por uma criança birrenta. Entendo a sua força, deslizo a favor da espuma ondulante, branquidade em forma de felicidade.

Participam: Lunna Guedes

BEDA / Abertura

você diz que quer fazer a minha mente se perder
a cada palavra expressa do seu desejo
partes de mim respondem excitadas
atinge o meu peito que arfa em comoção
aguardada mas nunca esperada de tão rara
abre um sorriso na minha cara
e isso é mais do que sorte
gosto de beijar como pelas ondas a areia
e de ser beijado como pelo vento o mar
em fluxo e refluxo
de entrar e sair
de me deixar e me encontrar
seguir pela estrada aberta
até aquela praia deserta
onde nos deitaremos no arenoso manto
o sal a nos santificar
o sol a nos invadir em calor e luz
nós mesmos a nos devassarmos
a nos preenchermos
de silêncio ofegante
banhados de suor
e alegria por estarmos vivos
enfim serenos e plenos
em nome da paixão
do gozo
e do corpo santo
amém…

Foto por Asad Photo Maldives em Pexels.com

Participante do BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins / Cláudia Leonardi

Verões

Meu pai, Sr. Ortega, meus irmãos Marisol e Humberto, além de mim, chupando picolé… por volta de 1973.

Na imagem acima, retirada de um registro que estava em um pequeno binóculo desses que não existem mais, estou com cerca de 12 anos. Portanto, há 50 anos antes. Estava na mesma localização que estou agora, junto ao mar que tanto amo. Naquela época, a Praia Grande era a praia dos farofeiros, com as ruas tomadas por ônibus de excursão. Hoje, é uma cidade pujante, cheia de novos empreendimentos imobiliários. A rua da casa onde estou desemboca de frente para o mar. Fica entre a estátua de Yemanjá e Netuno (ou Poseidon), na Cidade Ocian. A depender do gosto pessoal, agradando de romanos a gregos e baianos, as entidades estão bem representadas. Mais novo, era fascinado pelos dois totens, mas enquanto Netuno me atraía, Yemanjá me causava certo receio de me aproximar. Talvez porque não conhecesse profundamente a sua história, talvez porque a fascinação pelas mulheres estivesse associada ao temor em mergulhar no meu amor por elas.

Passado meio século, em meio às águas marinhas, repito os gestos do garoto da mesma forma, mais pesado, mas nem tanto que as ondas não consigam relativizar através de seu poder em igualar a todos. Como não estou usando lentes de contato (já perdi uma no embate com as vagas), míope, em determinado momento comecei a me aprofundar na sensação de voltar às águas passadas, fazendo mover o moinho dos pensamentos que começaram a atravessar a minha mente sem que conseguisse apreender quase nenhum por muito tempo.

Relaxei e consegui vivenciar um sentido de permanência calma em meio ao mar revolto, mas quente. Eram as mesmas ondas da mocidade, como se experimentasse a eternidade. Não foi nova essa experiência de viagem pelos tempos. Cheguei a criar um conto numa dessas oportunidades — Curumim. O importante para é conseguir ter essa integração-acolhimento com o meio aquoso. Em outra ocasião, mais recentemente, escrevi um livro inteiro de crônicas — Curso de Rio, Caminho do Mar — pela Scenarium, em que a interação com o mar me salvou de uma séria crise de ansiedade.

Enfim, ainda sou o garoto que ao caminhar para a praia, ouvia os sapos a coaxarem no mangue hoje ocupado por uma fieira de edifícios. As calçadas em que piso são marcadas com os meus pés descalços com o desenho dos dedos. O Sol é o personagem constante e a sua luz explosiva me alimenta de radiação. Eu preciso disso para continuar a viver os dias asfaltados em São Paulo, com as minhas atribuições profissionais. Voltarei todas as semanas do Verão de 2023. É um compromisso que estabeleci comigo e que espero cumprir. Estou em falta e preciso reparar isso com o garoto e o velho vestidos de calção e maiô vermelhos.

O velho, em janeiro de 2023…