BEDA / Bacurau Contra A Quadrilha Pé De Chinelo Cravejado De Diamantes

Uma das Últimas cenas de Bacurau, filme de 2019.

“Os moradores de Bacurau, um pequeno povoado do sertão brasileiro, descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa. Aos poucos, eles percebem algo estranho na região: enquanto drones passeiam pelos céus, estrangeiros chegam à cidade. Quando carros são baleados e cadáveres começam a aparecer, Teresa, Domingas, Acácio, Plínio, Lunga e outros habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Agora, o grupo precisa identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa” — sinopse do filme Bacurau, lançado em 2019.

Há alguns dias, revi esse filme que, com o passar do tempo, ganhou em dimensão. Já impactado quando o vi pela primeira vez em seu ano de lançamento, no início do último quadriênio, as pequenas, mas abjetas práticas do desgoverno federal já antecipava os previsíveis desastres seguidos, incluindo a péssima administração da Pandemia de Covid-19, uma espécie de bônus negativo no tenebroso vácuo de bom senso que havia possibilitado a eleição do Ignominioso Miliciano.

No centro da cena, um sujeito que resultado de uma amálgama de fatores que geraram o estabelecimento de quadrilheiros como políticos profissionais no Rio de Janeiro, chegou ao plano nacional não mais como Deputado, mas como Presidente. Divulgado no primeiro cargo como piada, acabou influenciando uma parte da população que o via como um tipo antissistema. Ao contrário, ele justamente representava a faceta espúria do povo brasileiro herdeira do sistema escravagista que regeu esta nação por 400 anos. O grupo do qual fazia parte talvez não tivesse a garantia de que chegariam ao poder, caso desse certo o conluio de procuradores e juízes que viciaram o processo da eleição. Optaram por agirem localmente, aplacando seus opositores violentamente.

Marielle Franco, principalmente, que começava a atrapalhar o projeto de ampliação do poder da Milícia caiu vitimada, junto a seu motorista, Anderson Gomes. Além disso, a jovem vereadora tinha um futuro pleno de possibilidades a longo prazo, o que poderia interferir no quadro de dominação do reduto eleitoral miliciano. Atualmente, não duvido de que várias operações de “combate ao tráfico” por parte da Polícia carioca, tenha por objetivo essa mesma “política” de ampliação das áreas de influência desse poder paralelo que já abarca boa parte da antiga capital brasileira. O alto número de mortos em “confronto” assemelha-se a execuções de líderes opositores.

Em nível nacional, após o afastamento do candidato mais forte à Esquerda, em 2017, que poderia obstar o avanço da Direita retrógrada na administração do País, iniciou-se o processo de desmonte da estrutura governamental já estabelecida. Seguiu-se a “orientação” dada pela barafunda de preceitos de Olavo de Carvalho — íntimo do presidente eleito & filhos —, um místico da pior qualidade, metido a filósofo, bem afeito aos falsos profetas que as redes sociais digitais propagam como praga.

Fascinado pelo macho-alfa do Norte, o Ignominioso Miliciano fazia de tudo para imitá-lo. Pode parecer perverso, mas o imaginava chupando o pauzinho do Mister Carrot em todos os encontros que tiveram. Metaforicamente, era o que fazia — incluindo um “I love you” publicamente expressado. Quase chega a parecer justiça poética atualmente os verem correndo o risco de serem condenados não pelos piores crimes que cometeram, como desmonte do Obama Care, nos Estados Unidos e pela não opção da vacinação em massa no Brasil, quando o tal teve a oportunidade de implementá-la. Ainda mais que surgiu a informação que o “nosso desgovernante” tenha intencionalmente ignorado cerca de mil estudos sobre a letalidade da Covid-19. Eu me lembro que chegou a dizer que “apenas velhos e pessoas com comorbidade” poderiam vir a falecer. Como se isso não fosse suficiente… A possibilidade é de que tenha chegado a duas centenas de milhares de vítimas fatais a não adoção da política preventiva.

Com o caso das joias — relógios, pulseiras, canetas, braceletes, colares e outros artefatos — ganhando espaço no noticiário político, não parece inviável que a compra de uma vacina indiana sem comprovação de eficácia e prazo de entrega por um preço exorbitante, além de pagamento adiantado para uma conta criada às pressas, é um indício de que faça parte de uma tentativa de desvio do erário público da gangue instalada no Palácio do Planalto. Afinal, avançar sobre áreas públicas para erguerem prédios sem fiscalização, dominar a distribuição de gás e pontos de TV À Cabo e Internet clandestina não daria tanto dinheiro. Talvez, a venda de drogas… e a compra de vacinas superfaturadas, descobriram. Não custava nada tentar. Qualquer coisa, desmentiriam, com os fanáticos bem alimentados de grama dizendo amém.

Em Bacurau, um político “vende” os moradores da cidade de mesmo nome para um grupo de caçadores esportivos americanos. Em vez de animais, os alvos são aquelas pessoas “dispensáveis” — os brasileiros típicos de algum lugar do Nordeste — o Brasil autêntico no que ele tem de mais interessante: criativo, delirante, sofisticadamente simples, exuberante, apaixonado e violento, quando provocado. Um povo cordial, portanto passional. Os assassinos não esperavam resistência. Para tornar o jogo mais excitante, utilizavam armamento antigo, mas igualmente mortal. A ação contra os habitantes da vila, seria como pescar peixes numa bacia. A excitação que a expectativa das execuções causavam era orgástica. Ganhavam pontos a cada execução — velhos e crianças, inclusive.

A passagem que achei mais emblemática se dá quando um casal de brasileiros se mete na matança, tirando a chance de duas mortes do jogo ianque. Estavam lá para dar apoio logístico, apenas, não para participarem diretamente. Na mesa de reunião, ocorre uma discussão sobre a condição racial. Ainda que tivessem a tez branca, não poderiam ser chamados de brancos. Os americanos decidiram que eles em não fazendo parte do grupo, os executaram. Afinal, eram apenas latinos. Para a maioria deles, somos todos “cucarachas” — baratas nojentas — a serem pisadas pelas botas que calçavam.

A elite rastaquera daqui se sente superior, mas sofre igualmente preconceito dos seus pares do Norte. A única semelhança é acabar por se igualarem na mais baixa condição de ser humano — insensível, repressor, ignorante e indigno — assim como os assassinos de Bacurau. Apenas não contavam com o poder de resistência de quem desprezavam…

Texto participante do BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins Cláudia Leonardi

BEDA / Plugado

Plugado

Somos separados e unidos por nossas referências. Indicações de tempo, lugares, experiências e maneira como crescemos, por variados tipos de famílias, além de amizades, nacionalidades, condição socioeconômica, formação cultural e raça – quando isso se torna identificação coletiva e/ou pessoal a ser notada. Como tendemos a sermos gregários, buscamos nos reunir em tribos, tanto quanto antes na história da formação dos grupos humanos, então, para sobrevivermos; agora, através de traços comuns que nos conectam.

Lobos solitários sempre hão de existir e eu mesmo, durante parte da minha vida, fui um deles. Misantropo, tinha ojeriza a grupos, sentimento herdado de todos meus ascendentes que viajaram pelo espaço, sós, antes de mim. Por sorte, o futebol, pelo qual sentia grande paixão, fez com que me reunisse com os meus pares da escola, ruas e bairro para jogar onde tivesse espaço e oportunidade. Fora dele, os meus amigos mais próximos sempre foram esquisitos (me perdoem àqueles que me leem, mas nós éramos).

Passado o tempo de isolamento, porém, em algum momento, tive que me salvar de mim mesmo, e optei por conhecer as pessoas que viviam ao meu redor. Até que disfarçava bem a minha inépcia para isso, bem como a dor por não conseguir vencer as distâncias que separam a todos nós em ilhas físicas e mentais. As minhas referências eram, em sua maior parte, literárias, com praticidade quase zero para a referência de realidade que vivia. Os meus temas de conversação eram inadequados, as minhas projeções psicológicas, inverossímeis. Os choques entre as diferentes dimensões eram evidentes. Depois de tanto tempo, com muito esforço, posso até declarar que me tornei uma pessoa sociável. Cheguei a formar famílias – descendentes e amigos – que me puxam de dentro do buraco negro.

Atualmente, o fenômeno de auto isolamento é perceptível e se apresenta como padrão de comportamento coletivo. Estamos, socialmente, a nos separar uns dos outros por sistemas artificiais de conexão. Ao passarmos por praças com serviço de sinal aberto de Internet, veremos raros namorados a se beijarem ou pessoas a conversarem entre si. O mais comum será presenciarmos seres fisicamente acoplados aos seus aparelhos celulares, com as suas mentes a milhas distantes dali, a formarem tribos de pessoas sós.

Em alguns restaurantes já há anúncios que expressam os seguintes dizeres: “Senha de Wi-Fi só depois de 30 minutos de conversa”. Outros, aboliram ou pensam em abolir o fornecimento das senhas, pura e simplesmente. O proprietário de um local no qual trabalhei em um evento me disse que está a pensar em deixar de oferecer sinal porque, além da comida, o que ele gostaria de fornecer eram momentos de congraçamento em torno das mesas, um ambiente de interação para os frequentadores e demonstração de alegria por estarem na companhia de pessoas afins.

Quanto ao aspecto referencial, a realidade virtual tem se tornado tão mais atrativa pelo poder que apresenta de deslocamento de onde estamos e de quem somos, somado ao crescente desejo de fuga da realidade, que venho a crer que novas manifestações de alheamento público se tornarão cada vez mais progressivas, a vista da instituição de tecnologias que farão referências das referências das referências. A realidade será tão somente uma tênue base de sustentação, algo de quase improvável existência, uma intangível ficção. Seremos conduzidos pela ideia de que há algo para além do que experimentamos, um universo paralelo, uma espécie de paraíso perdido que, em um tempo passado, chegamos a chamar de vida.

Ao mesmo tempo que me sinto plugado às circunstâncias, percebo o quão é instável seu estado fugidio. Sem saber ao certo qual seria a base sobre a qual se sustenta, especulo que sem nos viabilizarmos como seres ligados a algo permanente, nos sentiremos morrer a cada instante. No entanto, ainda que soframos com nossa finitude, eu a concebo ser apenas aparente. Ainda que esteja enganado, essa possível ilusão me alimenta. Na soma de tudo, chamo a isso de “viver”, condição que experimento, no meu caso, em constante estado de assombro.