Corria o ano de 1986 e uma canção da banda inglesa The Smiths começou a tocar seguidamente no rádio. Depois, o videoclipe tornou-se hegemônico e, apesar de simples, o amei desde o início. O título assaltou-me feito um ladrão – The Boy With Torn In His Side. O arranjo com a guitarra de Johnny Mars me carregou, a melodia me envolveu e a voz de Morrissey se tornou a minha voz. Eu era um adolescente com a idade física de 24 anos, bastante imaturo em termos emocionais. A letra da canção, ainda que mal traduzida por meu inglês claudicante, revelava meus sentimentos mais profundos. Às lacunas incompreensíveis, preenchia com termos pessoais.
O rapaz imberbe e virgem sentia realmente como se um espinho o atravessasse de fora a fora, se bem que a tradução literal poderia ser substituída por “atormentado” ou “que carrega um fardo”. Porém, a imagem de algo a lhe causar dor a cada movimento se adaptava muito bem à minha condição. Eu estava decididamente sem rumo e pronto para empreender qualquer coisa que me salvasse de mim.
Eu tinha medo de amar. Tinha medo que o meu amor não me amasse. Como um mediano jogador de xadrez, antecipava as jogadas até certo ponto, sem conseguir mover as peças em direção à vitória. No meio do caminho, perdia a vontade de jogar ao saber que, para vencer, deveria matar o rei. E eu ainda não tinha desistido dele, como fiz anos mais tarde.
Dali a dois anos, minha vida mudaria para sempre. Encontraria o caminho para amar de uma maneira que seguiu um roteiro estranhamente conhecido, como se fosse um texto que tivesse lido na adolescência, quando era um adulto e imaginei seguir as linhas do enredo da maioria – namorar, casar, ter filhas (o argumento original previa que seriam três), casa: família.
Tal qual o garoto de Marr & Morrissey, que cria que seus olhos diriam tudo – que por trás do ódio havia um intenso desejo de amar e se entregar – que ao dissimular seus passos, deixava rastros, esperei encontrar alguém que fizesse com que me movesse em direção à grande aventura de amar. Encontrei mais gente pela trilha, como as minhas crias, que são mais e melhores do que eu. Recuperei a conexão familiar original, excetuando-se a com meu pai, que foi se deteriorando cada vez mais. Se o amor ganhou significado, sinto ser incompleto em sua abrangência. O que talvez seja inato para alguns, para mim é um andejar em direção a algo que ainda estou a aprender a viver… Ainda que tenha matado o rei, sei que não venci a partida…
*Texto de 2015