O (In)Discreto Charme Da Burguesia

Burgueses
Homenagem Aos Burgueses De Calais – Museu Rodin

Na minha lista de filmes que deveria assistir, assim como tenho a de discos que gostaria de ouvir, assim como a de livros que me programei para ler, “O Discreto Charme Da Burguesia”, de Luis Buñuel, ficou pelo caminho e está à espera de ser visto. Portanto, o título serve de tema, mas não de inspiração para discorrer sobre o fascínio que a Burguesia e seu estilo de vida exercem sobre a maioria das pessoas. Ao cursar História, tive a oportunidade de estudar a formação dos burgos, seus moradores, atividades funcionais e desenvolvimento dos modos de produção que desencadearam no Capitalismo, sistema intrinsecamente ligado aos burgueses.

Advindo da Europa, o estilo de vida burguês instaurou a tradição – hábitos, costumes, atitudes, comportamentos – que marcou a personalidade da quase totalidade dos seres humanos que tenha nascido neste planeta nos últimos dois séculos, visto que a expansão do Mercantilismo atingiu civilizações em todas as latitudes dos dois hemisférios. Sobre o termo “burguês” recai tantas concepções, geralmente aleivosas, que fica praticamente impossível determinar o que seja esse tipo humano sem ser interpretado como nocivo e, ainda mais, que venha a apresentar algum charme. Pelo menos para os mais libertários. O restante, que perfaz a maioria, tem a burguesia como meta a ser alcançada.

O sistema de troca de mercadorias, iniciado há milhares de anos, por terra e mar, inicialmente entre ilhas e, depois continentes, foi tornando o mundo menor. Há indícios que, na Antiguidade, bravos navegantes chegaram a distâncias insuspeitas – vikings na América do Norte; fenícios, no norte da América do Sul. A diferença entre eles e aqueles que invadiram terras desconhecidas além-mar a partir dos Séculos XIV e XV é que os últimos trouxeram consigo a ideia de supremacia civilizatória, abençoada por Deus, com a imposição de ritos e rituais, modos de ser, hierarquia vertical, estilos de agrupamentos e conceitos de cidades – invasão de mundos sobre outros.

Os habitantes das terras assenhoradas foram sujeitados pela imposição da maior letalidade das armas que os invasores carregavam. Manchada de sangue, a expressão burguesa passou a dominar corpos e mentes, sem dar oportunidade a desvios, então punidos severamente com degredo, tortura e morte. Imposição, pelo terror, de um paradigma histórico-fatalista que preconizava uma maneira como o ser humano evoluído deveria agir, instaurando a civilização “ideal”, concebendo o conceito-arcabouço de dominação que escravizou-exterminou povos inteiros, arrancando a cutelo suas raízes culturais. Dominados os autóctones, suas terras passaram a servir de entrepostos das riquezas encontradas – vegetais e minerais. Alguns locais, não evoluíram de patamar até os dias atuais e permanecem como fornecedores de produtos primários.

Patrocinada pela Igreja, a formação da Burguesia seguiu os cânones judaico-cristãos baseados na formação de um núcleo familiar – pai, mãe, filhos – modelo de organização protótipo a serviço dos desígnios divinos do Evangelho – replicador do modelo de assunção ao Céu na Terra. Oficialmente, o impulso sexual devia ser controlado pela procriação sacramentada pelo casamento. Os enlaces eram arranjados, seguindo interesses políticos-comerciais-financeiros. A família do típico burguês normalmente abraçava uma profissão, passada de pai para filho, que chegava a determinar sobrenomes por gerações. As atividades profissionais passaram a ganhar variabilidade com o crescimento das cidades, com o advento da inédita demanda para atender à sofisticação do comércio e apropriação de novos mercados consumidores. Mais aquinhoados, os burgueses se capacitaram para exercê-las, constituindo vanguardas profissionais.

Em algum momento, o sistema burguês criou em seu âmago-matriz as condições para que fosse combatido por dentro. A ideia subjacente, formulada por Marx, era a de que a semente da destruição do Capitalismo – promessa de trazer conforto e bem-estar (para os escolhidos), enquanto se fortalecia com o trabalho de “castas” mais baixas, viria a gerar constantemente movimentos de contestação-rejeição. Alguns estudiosos creem essa seja uma condição sine qua non que o reforça em vez de implodi-lo.

Criando uma aparente instabilidade, os reflexos desses movimentos são encampados-cooptados e relançados com certo verniz de rebeldia para o Mercado – entidade anônima e dominante –, muito atraente para a massa consumidora-ávida por novidades formada por filhos-antípodas ao sistema. Modernamente, a publicidade aproveita-se continuamente desse recurso como um rico material para alavancar seu repertório de vendas de produtos-conceitos entre aqueles que buscam alternativas ao modus operandi burguês – fórmula-antídoto de sucesso. Outro fator importante é que muitos que se supõe participarem das correntes contrárias à burguesia tornam-se aliados dela de modo tácito e efetivo, enquanto são comemorados como arautos da revolução que a derrubará.

O discreto charme da Burguesia assombra os que buscam viesses diferentes para uma existência fora de seu domínio. Quem tenta escapar ao indiscreto ímpeto de cooptação através de sua dinâmica envolvente, a oferecer progresso material e cultural (ainda que vejamos os recursos naturais destruídos e os pensamentos aplainados), recebe em oposição uma saraivada de golpes que apenas os mais conscientemente preparados conseguem se defender sem perder o equilíbrio. Os que constam da lista de vítimas, entram nas estatísticas de efeitos colaterais – facilmente aceitáveis pelos agentes do poder central instalado em torres de vidro e aço nas diversas paragens do mundo.

Atualmente, a questão religiosa não serve mais de esteio aos propósitos expansionistas do capital. Ou, por outra, absorveu seus pressupostos para continuar a atuar no mundo. Aliás, religiões contrárias ao mainstream tem servido de bandeiras para a contestação ao poderio hegemônico de certos países. Para quem acredita que a Burguesia só se desenvolve sob o guarda-chuva da Democracia e proteção religiosa, a atéia China pratica uma espécie de Capitalismo de Estado, além de exímia praticante de jogo duplo – o que a levará se tornar a maior potência econômica da Terra. Lá, a religião é, acintosamente, o dinheiro, sem apresentar a fachada ética que alguns países adotam para se apresentarem diante do concerto internacional como idôneos.

No mais, para além das novas fronteiras conquistadas graças às guerras comerciais, creio que para permanecer sobrelevante, a Burguesia, irmanada-conectada em todos os quadrantes, não deixará de incorporar pequenas e pontuais reivindicações dos que estão à margem de suas benesses ou perfis, apenas para continuar a exercer seu poder de dominação, a exalar seu charme de monstro bonito e cruel, a oferecer migalhas de vida-miragem em um padrão existencial inalcançável pela maioria, mesmo porque, se assim fosse, o planeta se extinguiria…

Solução? Talvez a extinção de seus agentes – quase todos nós…

BEDA | Prazer E Dor

Prazer & Dor
Dúbio e bifurcado…

Houve uma época em minha vida que busquei intensamente escapar da dualidade prazer e dor. Era bastante jovem, de 16 para 17 anos. Ainda que de forma precária, sem tantas informações, avesso em participar de grupos, estudei as soluções orientalistas, com milhares de anos na senda do autoconhecimento. Decidido a me interiorizar cada vez mais, fui me apartando das pessoas ao meu redor. Apenas a paixão pelo futebol – já que para jogar é preciso de companhia – me “salvava” do ostracismo total. O termo salvar é dúbio, obviamente, porque a minha intenção primordial era me salvar de mim mesmo ou, melhor dizendo, de vivenciar a eterna polarização entre prazer e dor, firmemente ligada ao ego.

Ego eu chamava àquele “eu” reconhecível ou que supunha conhecer e que carregava os desejos, sentimentos, emoções e expressões externas de ser o Obdulio. O interessante que focava fortemente na abstenção da sensação de prazer. A dor eu a tinha como condição natural. Talvez até buscada como expiação por possíveis pecados que tivesse cometido. Inclusive, em intenção.

Adolescente em época de efervescência sexual, renunciava ao conhecimento prazer por essa via. Eu me tornei abstêmio de carne em um período que a oferta de alimentos e alternativas vegetarianas não eram tão amplamente difundidas. Fiz um estudo sobre os valores energéticos, proteicos e vitamínicos de folhas, grãos, legumes e frutas. Comecei a evitar o açúcar. O radicalismo me levou a perder mais de 15Kg. Normalmente de cabelo farto, adotei a prática de raspar a cabeça. Decisões coincidentes com o surgimento da Síndrome Imunodeficiência Adquirida, alguns começaram a supor que estivesse doente. Ouvi de uma pessoa que eu parecia um refugiado de campo de concentração.

Concomitantemente, vivia uma relação difícil com os meus pais, principalmente com o Sr. Ortega – o chamava dessa maneira. Com a minha mãe, o amor que eu sentia por ela era obliterado pelo “desejo” de não o expressar – parte de um plano canhestro em demonstrar autocontrole com relação aos sentimentos e às emoções. Ou seja, estava absurdamente confuso. O prazer reservava à escrita, cada vez mais importante. Chegaria o momento que até esse regozijo igualmente deixaria de viver. Mas essa, é outra história.

O certo é que fiquei dependente de minha dor, como se isso significasse que estava no caminho certo para a independência dos atributos mundanos de ser um humano – a busca da felicidade ou prazer (que muitos confundem) como condição ótima de vida. Crescentemente, o desamor por mim mesmo me abasteceu os dias. A auto sabotagem deve ter surgido aqui e ali. Medo de amar, com certeza, por receio de sentir a verdadeira dor. Diante de tantas incongruências, não foi surpresa as diversas vezes que adoeci fisicamente. Mentalmente, já estava. Tanto que suspeitava que sentia prazer em sentir dor.

Consegui sobreviver para poder falar sobre isso. Algumas vezes, sinto saudade daquela pessoa extremamente inocente, ao mesmo tempo que ainda continuo a me pasmar diante de muitas coisas. Tenho “o pasmo essencial”, como Pessoa já o disse. Isso, gosto em mim. Porque, apesar de narcisista, eu não sinto me amar. Portanto, não sou totalmente inocente… ainda.

Participam:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari