ronco de motores rodovia movimentada motoqueiro fantasma sem capacete deve ser parado pária da sociedade calção chinelos camiseta pobre desce do cavalo se posiciona com respeito aqui é autoridade autoritarismo práticas de tempos passados por chefes no poder incensados não reclama não fala se cala continua sem voz além das muitas na sua cabeça tomo remédio olha as cartelas não queremos saber você é fora da lei eu só quero respeito não cometi crime nenhum está sem capacete nós estamos protegidos com os nossos somos senhores da vida e da morte você deve aprender e quem nos observa também fica assolado no chão nossas botas na sua canga vamos aplicar a nossa sentença culpado por ser brasileiro sem rumo sem ganho sem profissão para ganhar o pão um verme como tantos outros porque essa tortura? queria voltar para a casa vai para a nossa casa ambulante receberá a lição estamos em guerra contra quem nos interpõe representamos o topo do poder nunca mais repetirá a ousadia de contestar mataram mais de vinte no Rio um a mais ou a menos não sou bandido sou trabalhador tenho família filhos pai mãe primos todos tem ratos que se multiplicam olha a nossa viatura a chamamos de carro de dedetização eliminamos pragas as degustamos com pimenta me tirem daqui me desamarrem abram a caçamba não sou lixo sequer indigente sou gente ah! meus filhos mulher não estou aguentando me perdoem não consigo respirar estou deixando a escuridão vou para um lugar sem luz e sem resposta mesmo sendo de Santos Jesus até quando?
Umbaúba, Sergipe, em 26 de Maio de 2022 – dois anos depois da morte George Floyd em outro Hemisfério e outro “não consigo respirar”…
*Poema produzido em 2022, sob os auspícios de tempos obscuros.
Quem disse que plantas não falam? Decerto não articulam as palavras que entendemos como fala, mas enviam sinais inequívocos. Dessa forma, falam sim, e muito, quando estamos abertos e temos ouvidos de ouvir. Nesta manhã, colhi mangas que caíram do pé pela ação da chuva e do vento da noite anterior. São tantas que, mesmo já tendo distribuído duas porções para vizinhos, ainda sobrou um cesto cheio. E é só o começo da colheita. O que diz a mangueira para nós? Pessoalmente, me diz: “Agradeço! Agradeço a você por não ter me cortado quando construiu a sua moradia. Agradeço a você a me olhar com respeito, como um ser vivo, que também sou. Retribuo com os meus frutos, com a minha sombra, com a aceitação do meu corpo como moradia de pássaros e outros seres que lhe fazem companhia e que lhe alegra o dia. Agradeço por você me amar!”…
Hoje, aniversario. Completo 59 anos desde que vim à luz do Sol. Não queria sair do conforto do mundo em que vivia — quente líquido em que me banhava e me alimentava de amor. Estava invertido, brincando de percorrer o meu espaço. Após ao procedimento da fórceps, fiquei em uma incubadora por alguns dias. Bem cedo, o menino que fui preferia ficar a um canto desenhando ou vendo TV. Após me alfabetizar, “perdia” horas lendo qualquer coisa que caía em minhas mãos. O futebol era a única coisa que me salvava de ficar parado-isolado. Por essas e por outras, por anos a fio, o meu pai dizia que eu era tão preguiçoso que até nascera sentado. Homem de natural talento manual, ele não compreendia a minha incapacidade nesse campo, excetuando desenhar e fazer pequenas esculturas em barro. Dizia que prendia as coisas com barbante e colava com cuspe. Se fui assim tão sarcástico com vocês, minhas filhas, me perdoem.
Até os 12 anos, eu era impetuoso e brigão. Na dura vida de menino que não era muito grande, nos entreveros com os outros garotos, batia primeiro e perguntava depois. Quando mudei de escola e de iniciei novos relacionamentos pessoais, decidi mudar a minha atitude de impor respeito pela violência, herança indireta do Sr. Ortega na minha criação. Comecei a tentar empreender o caminho inverso. Se quisesse ganhar o respeito de alguém, não seria pela força. Ao mesmo tempo, iniciei um processo de internalização quase irreversível. Quase que paralelamente, fui ficando cada vez mais míope e a minha personalidade ganhou óculos.
Ainda que tenha sido batizado e feito a Primeira Comunhão, não abracei o catolicismo. Após uma fase ateísta, me tornei franciscano. Sei que São Francisco me permitiria essa rebeldia. Ele mesmo se rebelou contra o que era imposto como regramentos que o impediam de vivenciar o que o seu coração mandava. Homem do mundo, foi transformado pelas experiências do mundo. A violência, a fome, a precariedade da vida, todas essas facetas vividas enquanto servia em uma das guerras de ocasião, o transformaram. O herdeiro de família rica, começou a se conectar consigo mesmo, a se abrir para as coisas tangíveis e intangíveis, a ouvir vozes interiores e exteriores — expressões para quais normalmente fechamos os sentidos d’alma, ainda mais quando estamos embotados pela materialidade. Francisco teve coragem para empreender a viagem mais árdua, àquela que quando se inicia, não há volta — ser pequeno.
Um dia, pensei em seguir o seu caminho. Desejei seguir os mandamentos da Igreja para tal percurso. Fiquei dois anos sob orientação. Cheguei a visitar um seminário franciscano que me influenciou de maneira decisiva. Gostei do ambiente, dos estudantes, dos objetivos propostos, mas… ainda mantinha dúvidas sobre qual sentido seguir. Lá mesmo, em um canto dos muitos corredores do prédio, estava uma maquete que mostrava os vários caminhos para chegar a Deus. Um desses caminhos era a formação de família.
Eu tinha 26 anos e desde os 16 havia enveredado por uma profunda religiosidade, que não respeitava limites doutrinários. Estudei o Cristianismo, o Maometismo, o Hinduísmo, o Budismo, as demais filosofias orientais, as crenças africanas e tudo mais que dissesse respeito à transcendência do corpo e proeminência do espírito. Constituí uma amálgama de crenças que só fazia sentido para mim. O que fizesse o meu coração bater mais forte, a isso eu me identificava. Percebi que a Verdade tem muitas facetas, tal qual um diamante que reflete uma luz diferente a depender da forma que a luz o toca.
Naquela altura da minha vida, eu estava dividido entre a vida monástica e o conhecimento do mundo que havia rejeitado até então — a familiar. Sabia que enfrentaria grandes obstáculos para manter o controle sobre a minha sanidade ao escolher tanto um quanto outro caminho. Hoje, depois de estabelecer uma profissão, conhecer a minha companheira, Tânia; conceber as minhas três filhas — Romy, Ingrid e Lívia — construir uma casa, cuidar de cães, passarinhos e plantas – formei um lar.
É um desafio constante manter o equilíbrio entre tantas demandas pessoais, profissionais e a paixão pela escrita, mas creio que tenho caminhado cada vez mais para dentro de mim na senda do autoconhecimento e para fora do meu próprio corpo, agregando pessoas em meu entorno. É como voltar da guerra todos os dias e me metamorfosear. Sei que sou, fundamentalmente, um franciscano em meu procedimento. Desde que ouvi o chamado de Francisco de Assis, nunca deixei de ser, idealmente, um frade menor sem hábito…