25 De Janeiros Passados Presentes

Sobre Os Jesuítas (2019)

Este painel se encontra à esquerda do saguão de entrada da Casa de Portugal, na Avenida Liberdade. Mostra o jesuíta português Manoel da Nóbrega entre os gentios da terra, em postura de força impositiva, apesar de apresentar, humildemente, os pés descalços. Se visitarmos um estabelecimento oficial espanhol em São Paulo, lá encontraremos a figura do espanhol José de Anchieta, a catequizar os nativos dos Campos de Piratininga. Oficialmente, os dois jesuítas, pertencentes à Companhia de Jesus, foram os responsáveis pela fundação desta cidade que hoje completa 465 anos de nascimento, dada a inauguração da choupana que serviria de escola e moradia. Por uma confluência de fatores, São PauloSampa, para os íntimos — tornou-se o que é. Qualquer definição que se dê a ela, em pouco tempo deixa de ter sentido, pois a metamorfose permanente é seu único traço definitivo e definidor. Em São Paulo nasci, vivo e espero morrer, a saber que já fui muitos e serei outros tantos até o fim — quando dispersarei meus átomos por esta terra que me formou.

463 Anos (2017)

Nesta imagem, homenageio a minha cidade. Eu a produzi às 6h da manhã do horário de verão, ao passar pela Ponte da Freguesia do Ó. Quis captar a Lua, em sua fase crescente. Quase não conseguimos percebê-la. As luzes das Marginais roubaram a cena, separadas pela escuridão do leito do Rio Tietê. De forma indireta, é uma maneira de reunir símbolos importantes desta metrópole — um rio morto pela poluição, vias de locomoção que estão normalmente congestionadas, luzes que nos confundem em vez de revelar, a beleza dos astros, esmaecida pela fumaça. Contudo, não viveria em outro lugar…

Feliz aniversário, São Paulo! Pena que o nosso coreto esteja bagunçado… (2014)
Foto feita em movimento sobre a Ponte Pompéia — paisagem hoje alterada — de 2012

Como um paulistano típico pode homenagear a sua cidade? Talvez trabalhando, como estou fazendo hoje. Nesta imagem, feita dois meses antes, podemos ver o casarão da família e duas das chaminés que compuseram o complexo das Indústrias Reunidas Matarazzo, na Barra Funda, na avenida que leva o nome do seu patrono — Francisco Matarazzo — símbolo da riqueza que levou São Paulo a ser, para o bem e para o mal, esta cidade que amamos e odiamos, como ocorre em toda relação de paixão.

Sou Argentina Desde Criancinha

No final dos Anos 60, Dona Madalena e seus três filhos – entre eles, eu – fomos parar em Posadas, capital da Província de Missiones, Argentina. Lá, morava a minha avó paterna, Dona Dora Parodi, que abrigava o meu pai, ativista refugiado do Partido Comunista Paraguaio. No Brasil, estávamos em plena atividade da Operação Condor, que reunia os países dominados por ditaduras de Direita que, coordenados pelo Governo dos Estados Unidos da América, perseguiam, prendiam, torturavam e/ou matavam os seus opositores.

Eu tinha 5 para 6 anos e fui jogado com meus irmãos dois e quatro anos ao meio de uma realidade da qual guardo várias lembranças. Em São Paulo, apesar de pobres, tínhamos uma estrutura razoável. Em Missiones, no norte do país platino, no contexto da região da Tríplice Fronteira – também formado por Paraguai e Uruguai – começamos a utilizar expedientes que nos acostumaríamos mais tarde, quando voltamos para o Brasil: tomar banho de canequinha, usar água guardada em bacias, restrição alimentar. Mas isso é outra história…

Tive muito contato com os filhos de uma moça de origem indígena, assim como o meu pai. A passagem mais marcante ocorreu num Natal em que recebi um cofrinho de plástico em forma de Papai Noel. Hoje, eu sei que foi algo dado com muito carinho. Afinal, aquele pessoal mal tinha dinheiro para comer. Mas eu era uma criança e lá percebei o quanto el pibes eram muito valorizados. Mesmo as famílias mais humildes faziam festinhas para comemorarem os aniversários de seus filhos.

Ficamos cerca de oito meses por lá. Estudando, me dei conta que a nossa volta para cá coincidiu com o golpe militar na Argentina, em 1966, que instaurou um regime de exceção aos moldes do brasileiro, porém mais violento, em um estado de sítio permanente. Retornamos quando se iniciava a minha idade escolar. Na escola, falava espanhol, usava poncho como vestimenta no Inverno e me sentia olhado com desconfiada curiosidade pelos coleguinhas, como se fosse um bicho estranho. Mesmo novo, tinha adotado os cabelos compridos como marca. Ou seja, eu era um pequeno argentino em Sampa.

Esse laço com a Argentina foi se estreitando ao longo das viagens que fazia para visitar a minha avó, até seu falecimento. Inclusive, acabamos, minha irmã e eu, por sermos escolhidos como padriños de nuestro hijado, Luís Sosa, filho de uma amiga da família. Eu, jovem rapaz, caminhava pelas ruas de Posadas e me admirava ao ver en la calles, los niño jugando fútbol. Impressionado com o estilo de toques e deslocamentos rápidos do “toca y mi voy”, percebi a razão da dificuldade do meu São Paulo em vencer os times argentinos na Libertadores da América.

O País Argentina, institucional, tem os seus problemas, mas ao conhecer o povo, sei que merece um alívio no seu sofrimento. Assim como os brasileiros, açoitados pela péssima escolha de um governante que surfou na onda do Negacionismo e de medidas que demonstraram que boa parte de sua população possui uma postura elitista, totalmente avessa à nossa formação multicultural e multirracial. É como se quiséssemos fugir de nossa gênese. Ao mesmo tempo que chamamos de “Menino” o maior ídolo no futebol, nota-se a nossa tendência em absolvê-lo por sua conduta ética dúbia. Enquanto Messi demonstra garra e vontade aos 35 anos, o outro, aos 30 se sente exaurido. Na minha ótica, isso tem mais a ver certa frustração vaidosa. A mesma que um garoto adota ao não querer mais brincar quando não consegue ganhar dos adversários.

Messi deixou de vencer quatro Copas do Mundo. Isso o impediu de tentar novamente? Não! Com certeza, as decepções o tornaram mais aguerrido. Deixar de torcer pelo time do país vizinho de nuestros hermanos argentinos, demonstraria apenas que somos um povo ressentido que, ao não vencer, prefere que o irmão também perca.

Do outro lado, enfrentará um time oriundo de um país com tradição colonial, mas que incorporou ao seu time jogadores de origens diversas, como o craque Mbappé, filho de um camaronês e uma argelina – africanos – o que ajudou a dinamizar o futebol francês. É como se houvesse um processo que aliou a técnica de atletas de origem imigrante com o apuro tático europeu.  Aliás, mais da metade da equipe francesa era composta por descendentes de países colonizados ao final do jogo contra Marrocos. Eu acredito imensamente na assimilação cultural como saída para a convivência entre os povos. Seja pelo Esporte, pela Arte, pela criatividade, enfim.

Ainda que na Argentina o perfil racial seja menos ou quase nada misturado, como um ou outro de origem originária, torcerei pela agremiação sul-americana. Porém, como aconteceu quando a seleção brasileira jogou, não investirei minha emoção fátua na vitória de qualquer um dos dois. Serei um privilegiado expectador do drama. Ao final de tudo, tudo é uma questão de mérito prático – quem fizer mais gols, vencerá – e a minha vida não mudará por causa disso.

Missivas De Primavera / Receituário De Uma Quinta Infinda

Roseli Pedroso

Companheira,

se fosse fazer uma brincadeira, dessas de criança, perguntando: “o que é que é, um ponto prateado num Centro cinza” – sem pestanejar, responderia – Roseli! Pois você se destacaria com a sua cabeça de prata em meio a multidão que caminha pelas ruas centrais da Vila Buarque. Assim como o Buarque de Holanda, também escreve e poetiza a realidade com as suas crônicas que falam de tudo e de todos – da vida e da morte, do azar e da boa sorte, de si e do outro. Como o compositor, compõe crônicas ora com a alegria de viver, ora com a decepção de saber, ora com a oportunidade perdida, ora com a batalha vencida.

Senhora de si e do verbo, escreve Quinta das Especiarias, remetendo ao passado de sabores, odores e amores que a formaram. Como também narra as vidas de mulheres que viveram as agruras de expectativas não realizadas, alienação e sofrimento de umas e revoltas construtivas de outras, em Equação Infinda. Em Receituário de Uma Expectadora, vemos mais do que alguém que espreita o movimento, mas intervém na Realidade, imprimindo com a sua análise a marca de ironia fina. Contadora de histórias e defensora do conhecimento, quase a imagino um ser mitológico, uma espécie de Atena, que após o fim do mundo como o conhecemos, a encontraria guardiã de uma imensa biblioteca para o bem do novo alvorecer.

E é aí que nos encontramos, passeando para além do cenário amado do Centrão, ainda que nunca tivéssemos trombado por aí. Porque talvez os forasteiros não saibam, mas São Paulo é uma província, apesar de tanta gente viver por aqui. É o teatro onde buscamos personagens e lugares, falas e situações que nos enredam e nos trazem enredos com os quais enveredamos por testemunhos e textos. Quase a imagino um ser mitológico, uma espécie de Atena, que após o fim do mundo como o conhecemos, seria guardiã de uma imensa biblioteca para o bem do novo alvorecer.

Com eles, contribuímos para a boca de cena da Scenarium. Lugar de amálgama, síntese e solvências, esta cidade é a seara onde plantamos palavras que geram escritos, ainda que seja um campo endurecido de asfalto e concreto. Como sabemos, nada é por acaso. Se uma italiana se perdeu / se encontrou em Sampa e, através dela estes paulistanos se encontraram, alguém objetaria dizer que não foram pelas mãos de divindades celtas? Promotora de misturas alquímicas, realizou cerimônias ritualistas a qual chamou de Saraus, a nos colocar sempre fora de prumo, pela luz da Lua minguante.

Querida, espero nos reencontrarmos num desses rituais promovidos pela sacerdotisa-mor ou antes, por um desses acasos de tempo e lugar. Por enquanto, envio esta missiva, com muito carinho, já antevendo o seu imenso sorriso que nos remete à eterna menina que é.

Um abraço cenográfico!

                                                                                                                                Obdulio

Participam: Lunna Guedes / Suzana Martins / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso

BEDA / Os Leoninos

Caetano & Romy – leoninos…

Segunda-feira para terça, um dia depois do aniversário de 80 anos de Caetano, estava na cozinha quando a leonina da casa, a Romy, chegou me dizendo que estava se sentindo menos culpada por não ler o que eu escrevo, a confirmar para mim o velho ditado que pronuncia que “santo de casa não faz milagre”. Perguntei a razão e ela respondeu que acabara de ver a entrevista do Caetano com Pedro Bial na qual os filhos, questionados sobre a obra do pai, disseram não a conhecer por inteiro, talvez bem menos do que vários fãs.

Os da minha geração, que acompanham o magnífico compositor e intérprete neste último meio século, temos as suas canções entranhadas em nossa memória afetiva. Quantas vezes suas letras não disseram tudo o que devíamos ouvir, no momento exato ou, mais ainda, quantas vezes elas não se tornaram necessárias para preencher lacunas de ideias, emoções ou sentimentos insuspeitos, aclarados pela voz apalavrada do baiano de Santo Amaro da Purificação?

O filho de Dona Canô, também mãe da imensa Maria Bethânia, tão querida por mim que nomeia a minha filha de quatro patas, em determinada época provocou uma situação inusitada – levantaram a hipótese de que os irmãos fossem a mesma pessoa. Parecidos, os cabelos expandidos de Caetano, feito a juba de Leão que era, fazia-o semelhante à irmã mais nova que, aliás, deve seu nome a ele, originário do título de uma linda canção que conheci na voz eterna de Nelson Gonçalves.

O cabelo era simbólico de sua atitude em que as aparências eram determinantes para estabelecer critérios discricionários pelos padrões vigentes. Sua postura andrógina, tanto quanto de Maria Bethânia causavam estranhamento ao rígido Patriarcado. Dançava com a molemolência e a delicadeza exuberante de alguém que não se enquadrava ao Sistema. Acabou preso, também por isso. Além de pensar rompendo os limites pequenos das cercas ideológicas, surgia como péssima influência para os jovens. Creio que isso não ocorreu apenas à Direita. Meu pai, atuante personagem da Esquerda, a ponto de ter sido preso e torturado pelo Regime Ditatorial, recriminava os mesmos cabelos feito juba que eu usava e ficou enfurecido depois que passei a usar brincos.

A Romy citou também passagens em que Caetano mostrava o seu lado leonino, ao dizer que era bonito, sim, que não tinha a falsa modéstia de não demonstrar que não sabia disso. Obviamente, se identificou plenamente com o criador de Sampa. Nessa canção, ele revela que achou feia a cidade que “ergue e destrói coisas belas”, porque “Narciso acha feio o que não é espelho”. Essa auto aceitação vaidosa é, para mim, fantástica. Principalmente porque eu me considero sempre “culpado”, como se o Pecado Original não tivesse sido perdoado pelo batismo. Do qual não me lembro, mas que não faria a menor diferença, já que fui ao longo das idades acumulando “culpas” por circunstâncias normalmente incontroláveis.

Os leoninos, tanto Caetano quanto a Romy, assim como outros aos quais fui conhecendo em minha jornada, carregam o poder de levarem o Sol a cada lugar que chegam, como já versei em poemas. Chamam (ou fazem por onde chamarem) a atenção sobre si. Resilientes, seguram firme a carga pesada de serem o que são. Apesar de “saberem” que o mundo gira em torno deles, conseguem se solidarizar com os desvalidos, com os oprimidos, os que são atacados por serem frágeis ou diferentes.

Para deixar a minha cria menos compungida disse à Romy que não precisaria se preocupar em me ler, por enquanto. Chegará o dia que terá essa necessidade. Por hora, sei que está tentando se equilibrar entre as dores físicas e as mentais que sente por viver em um mundo tão poluído de caráteres aviltantes. O que escrevo se insere na mesma dinâmica. É uma necessidade premente de saber de mim e dos outros, tentando freneticamente me reconhecer como um ser humano que pertence ao topo da cadeia alimentar, vítima de abuso perpetrado por outros homens, mas igualmente um destruidor do planeta pelo estilo de vida que refuto, mas vivo.

Quanto a Caetano, chorei com ele pela emoção aflorada por cantar Terra, uma das suas canções que resume magnificamente o poder de se conectar com o Todo, mesmo quando se “encontrava preso na cela de uma cadeia” e ver “pela primeira vez as tais fotografias, em que apareces inteira, porém lá não estava nua e sim coberta de nuvens – Terra, Terra…”. Assim como quando lembrou de quando alguém lhe falou no exílio forçado sobre o lugar de origem, “onde o azul do céu é mais azul”. Fiquei preso nessa frase dita à visão de seus olhos marejados e me senti quase absolvido por amar leoninos de graça.

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso / Darlene Regina

BEDA / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Arte Rueira

Arte feita na rua, para quem frequenta as ruas – à pé ou motorizado – aqui temos. Há já alguns anos, as artes plásticas – arquitetura, escultura, artesanato e pintura – tem ocupado mais espaços públicos. Aliás, as esculturas foram perdendo status e viabilidade. Estátuas – monumentos, bustos, altos-relevos – tem deixado a cena porque talvez os artistas que tenham essa especialidade não sejam tantos e porque, a depender do material, como um metal nobre, é depredado ou roubado.

A arte do grafite tem crescido em interesse e dimensão, tanto em tamanho quanto penetração midiática. Artistas especializados têm-se distinguido em projeção pela qualidade artística. Desde a ascensão de grafiteiros como Aryz, Kurt Wenner, “Os Gêmeos” Otávio & Gustavo, Kobra e o icônico Banksy. Mas a arte de rua também pode ser representada por estátuas vivas, músicos, malabaristas, palhaços, teatralizações, pintura mural e intervenções urbanas, coletivas ou individuais. Porém me basearei no movimento grafiteiro para mostrar a arte rueira.

Não apenas paredes podem servir de “telas” para as ideias expressas por artistas anônimos ou que, ao assinarem seus trabalhos, empenham seus nomes na construção de suas iconografias. Nesta imagem, a banca de jornais foi perfeita para dar informações que apostam na imaginação. Acima, na parede, uma intervenção que poderia ser interpretada como uma arte “menor” – a pichação.

Ao falar em pichação, que transformou-se em “pixação” e “pixar” em verbo, esta intervenção expressa de forma clara o quanto os julgamentos de valor são equivocados a depender da “posição” social que ocupa ou visão artística que professa de quem os fazem.

A “Galeria do Minhocão“, como eu chamo, abriga várias expressões em que as cores explodem em afirmações de vida e dramaticidade.

Há grafites em preto e branco igualmente expressivas, muito pelas ideias e variação de temas. Como esta em que mostra “a vida acontecendo” por trás das paredes externas.

A arquitetura encontra nas antigas construções paulistanas, de várias vertentes e linguagens urbanísticas, obras que destoam da monotonia retilínea dos edifícios mais modernos. Nesta imagem, o prédio de esquina em forma circular encimada por linhas retas, como a representar muretas acastelares é uma composição de tendências díspares. A beleza ganha graça adicional pela presença de grafites comerciais embaixo e um pequeno em cima, em que surge uma provocativa Monalisa.

Esta composição urbana é maravilhosa, para mim. Os elementos que a compõe apresenta dados como os postes de luminárias antigas, a utilização do espaço possível em um desgastado prédio de esquina, as árvores “intrusas” em meio ao cimento, as cores nos semáforos, a guarda do maior de todos em Sampa, o Mirante do Vale. No grafite, o rosto tranquilo entre feixes de cores estranhamente estar à vontade em meio a balbúrdia da Metrópole.

Participam do BEDA / 6 On 6: Mariana Gouveia / Darlene Regina / Cláudia Leonardi / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Isabelle Brum