Desejo

Cedo, percebi a dependência de nosso comportamento amoroso a flertar com a nossa precariedade. Aliás, não somente quanto a relacionamentos pessoais, mas em todas as estâncias da vida. Agimos como dependentes da droga do desejo e suas consequências, numa eterna retroalimentação.

Sair desse ciclo é quase como morrer. Mas talvez não haja algo maior do que o desejo de morrer, ainda que muitos não reconheçam esse viés. Preferem negar a morte em vida, como se não existisse. Namoram a possibilidade de Eternidade ao abraçarem religiões que prometem a vida eterna.

Chegam a estipular condutas que garantam esse futuro num lugar edílico e com benefícios atraentes que só fazem sentido para seres encarnados. Como as húris, seres antropomórficos semelhantes às mulheres virgens, prometidas aos homens islâmicos bem-aventurados, a servi-los como gratidão por suas boas ações na Terra. É como se fossem condenados ao desejo permanente para empreender a eterna tarefa de alcançar a satisfação.

Aparentemente apenas os homens são premiados no Paraíso do Islã. Assim como aqueles outros que, valorosos em sua vida terrena, se sentam à direita de Deus-Pai na Eternidade, a fruir benesses, as quais compreendo que não iriam além de permanecer na benção da ignorância sobre todas as coisas. Ser curioso que sou, com insaciável sede de conhecimento, para mim, seria o Inferno. Atualmente, longe no distância, mas não dos nossos olhos, as duas versões religiosas mais influentes se digladiam à base de explosões de corpos, não sem antes aviltá-los.

O desejo é pessoal e intransferível. Os desejantes juntam-se para saciá-los, mas a consequência é aumentar o desejo mútuo. Por algum tempo, essa interação é satisfatória. Mas se uma relação é mesmo profícua, gerará motivação para a criação de novos desejos, muitos alheios aos dinamizadores desse processo.

Se estamos no mundo, devemos saber gerenciar essas circunstâncias que nos colocam muitas vezes contra as nossas orientações comportamentais. Abrir mão de novas experiências requer autocontrole. E não é contrário à “razão”, porque é comum replicarmos as mesmas ações nas novas relações com outros indivíduos.

A não ser que haja encaixe. Entrelaçamento de vivências, ainda que díspares. Aprofundamento de recíprocas experiências, mesmo que alternativas. Alternância de posições para a busca da satisfação comum. Desejável, não? Bem, somos bons em desejar…

Feliz Dia de São João!

#Blogvember / Viciada Em Dor

Caminhei até a porta e saí para sempre (Nirlei Oliveira)

Foto por ALTEREDSNAPS em Pexels.com

Antes do movimento final, em que caminhei até a porta e saí para sempre, várias outras caminhadas as caminhei errante, batendo a cabeça pelas paredes que insistiam em serem sólidas. Era como se não quisesse aceitar que tudo havia terminado. Mas a dor de me sentir menosprezada me fez acordar. Sabia que não devia recuar quando finalmente me desvencilhasse de sua influência, o vício de seu poder, como se fosse a luz da minha vida.

Quanto mais lhe recebia em meu corpo, quanto mais você incendiava a minha mente, mais o desejava. Deixava, de fato ansiava que me possuísse da forma que lhe aprouvesse. Onde poderia ver humilhação, eu encontrava redenção. Onde sentisse dor, eu buscava satisfação. Onde talvez me repugnasse em me ver banhada de suor e esperma, eu abençoava como se fossem água benta e oferta à santidade da foda.

Até que percebi que para você eu era apenas mais uma peça de seu jogo de dominação. Não apenas a mim você ofereceu o seu abuso desmesurado. O meu sentimento foi o de se ver revelado exatamente o acontecia – eu era um objeto de prazer fátuo – não de envolvimento profundo. Para você, marcação de pontos. Para mim, sensação de poder em realizá-lo, como se eu fosse oferta de libação religiosa ao meu deus.

Sofrerei o tempo que deva sofrer, até eu quelar seus efeitos perniciosos. Viciada na depravação de meu ser, terei que trabalhar a minha mente para que expulse de minhas veias e artérias os efeitos da droga que me guiava os passos – desejá-lo. Sei que sou melhor do que um objeto de uso e usufruto. Sei que esta mulher sairá melhor do que entrou pela porta do calabouço e altar de celebração.

Sei que lembrarei das suas mãos, dedos, seu corpo, línguas (pareciam ser dezenas), membros inferiores e seu pau. Suas ações e rituais de dominação. Mas se prisioneiros de campos de concentração conseguiram tocar as suas vidas em frente depois de tudo o que passaram, também alcançarei o livramento para além da liberdade, até que a nossa história seja mais uma como tantas, de vidas passadas e superadas.

Renascerei.

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Suzana Martins / Lunna Guedes

O Pensador

sentado num dos degraus da escada
com a cabeça pensa
apoio o meu queixo no punho fechado
cotovelo encostado no joelho
posição famosa de quem pensa –
o pensador –
que pensa a vida pensa o amor pensa a falta
pensa o vazio o amor
de tanto pensar me pesa
o nada a expectativa o encontro desencontrado
o desencanto percorre o descaminho
tão invertebrado quanto a minha espinha
cravada de espinhos que a sustentam
pensar me ensina que nada sei
cada dado a conhecer
busca encontrar seu corresponde saber
enquanto sou açoitado pelo querer
porque quem vive
vive a desejar
matemática e imprecisamente  
o que precisa desejar
e não desejar
quando me sinto bem quero me magoar
quando sofro necessito encontrar
satisfação e regozijo na dor
como se fosse a consequência inevitável e querida
para dar o fim perfeito ao prazer ocasional
ao pensamento sazonal
ao sentimento casual  
a nova tendência da estação
aquela que nunca sai de moda –
buscar ser feliz –
enquanto penso a dor…

Imagem: O Pensador, original, Na Porta do Inferno (Wikipédia)

BEDA / Diálogo Com Um Sujeito Desconhecido

Houve um tempo, no início de minha jornada como escritor, que escrever era apenas uma maneira de dialogar comigo mesmo. Os meus textos, não os mostrava a ninguém. Exceto ao meu irmão menor, logo no início, que versava sobre o fantástico. E quando era convocado pelos professores a fazer redações sobre assuntos que nem passavam perto da minha vida cotidiana – as férias escolares com viagens feitas; os filmes assistidos no cinema; peças de teatro vistos; parques de diversões frequentados. Nada disso pertencia à minha realidade. Ou melhor, era algo raro, mas que acontecia em momentos que não coincidiam com as férias. Eram fugas do cotidiano normal realizadas em finais de semana. Na maior parte do tempo realizava incursões para dentro de mim. Por lá-aqui conversava com um sujeito desconhecido que poderia ser eu mesmo ou parecido comigo. Que se distanciava dos temas que relatariam excursões externas. Desconfortável, nem sei se cheguei a inventar histórias que nunca ocorreram. É possível, a minha imaginação sempre foi fértil e as notas que tirava eram boas.

Não deixei de ir à praia de vez em quando. De me deslocar para cidades próximas ou um pouco mais distantes onde moravam parentes, já que a minha mãe era ciosa de manter contato com a grande família dos irmãos de oito filhos dos Nuñez Y Nuñez. Mas o “melhor” da viagem era o próprio translado, geralmente por trens desconfortáveis, lotados ou ônibus que normalmente me enjoavam. Os vômitos faziam parte da rotina. Chegado aos destinos, eu me separava dos grupos, mal conversava com os primos, preferia ir jogar bola ou fazer incursões pelo mato. Não que não gostasse das pessoas. Eu sempre me senti muito bem em estar com todos, muito porque respeitavam a minha postura tímida. No máximo, brincavam com essa característica que me emprestava um certo charme. No fundo, sentia pavor em me envolver afetivamente com parentes que pouco veria. Uma bobagem de alguém com sérios problemas de adaptação às regras de relacionamento. Nunca fui bom nisso.

Os diálogos com o sujeito desconhecido fizeram com que aos poucos aprendesse a reconhecê-lo como autônomo de minha personalidade ou, por outra, como um apêndice da pessoalidade original de meu ego. Parece confuso, porque é.  Ainda que seja falso, me acostumei com a dinâmica que me impulsiona a elaborar textos que hoje busca identificação externa. Não produzo textos apenas para a minha satisfação pessoal – que é muito importante –, mas para criar situações que sejam assimiladas por outras pessoas tenham identificação. As sagas das vidas “criadas” por mim as baseio em minha vivência íntima, referências externas captadas ao sabor dos ventos virtuais e situações que as próprias personagens desenvolvem entre si. O que parece ser estranho, mas acontece frequentemente.

A travessia entre o autor ensimesmado e este outro que quer se comunicar com quem o lê não é fácil. Ser lido é ainda algo de incontrolável mensuração. Não quer dizer que ainda que os olhos que percorram as frases, sentenças, parágrafos que escrevo signifique que o texto tenha sido lido da maneira que gostaria. Muito por incapacidade pessoal em se fazer “ouvir” e ser entendido, as minhas criações talvez não repercutam no leitor de forma nenhuma. Ou, por outro lado, não é incomum que o que escrevemos mostre algo além do que propusemos mostrar. É a magia da arte, ainda que involuntária. Arranjar espaço na minha agenda para realizar a simples tarefa de escrever tem sido o principal empecilho, ao qual luto para superar. As madrugadas que o digam, pelas quais transito entre a satisfação e a dependência dolorosa em escrever…

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

Qual O Preço Do Amor?*

Nesta época do ano, em que se fala muito do amor universal, talvez seja o momento em que o desejo de estar junto a alguém nos assalta em todos os sentidos, incluindo os sentidos físicos. Carentes por um carinho, o procuramos de diversas maneiras. Esta parede fazia parte de um conjunto de pequenos prédios com cortiços, casas de prostituição e pequenos comércios que foram demolidos para dar lugar a um projeto cultural, na região da Avenida Duque de Caxias, perto da Sala São Paulo. Mais tarde descartado, atualmente a área é ocupada por um conjunto habitacional — uma ilha cercada por adictos da Cracolândia por todos os lados.

Fico a imaginar o ambiente da qual essa construção fazia parte, imerso à meia-luz, em que homens buscavam o amor oferecido de forma tão direta. Apesar de tosca (ou por isso mesmo), gosto muito da pintura. O braço da moça, de fisionomia tristonha, de cabelos longos encaracolados e peito pequeno, indica o caminho para a satisfação dos desejos mundanos de quem necessitasse de um simulacro de amor, ainda que pago…

*Texto de 2014, atualizado em 2021, à respeito de uma foto de 2011.