Recordações Materiais

Em matéria de tempo, como podemos mensurá-lo — por marcações mecânicas, decerto —, mas também de outras maneiras, como por imagens. Mas apenas a imagem por si só pode não conseguir demonstrar tudo sobre o que carrega de valor expressivo. Sentenças coordenadas, indicações de tempo e lugar auxiliam para traduzir toda a complexidade de uma representação imagética — um retrato total.

CINE (2015)

Eu me recordo que ali fora mais um cinema, dos muitos que perfilavam na famosa Avenida São João. Frequentei muitos deles, ainda antes de se mudarem para os shoppings centers ou se tornarem centros de “diversão para adultos” ou estacionamentos ou de simplesmente fecharem. O que sempre me chamou a atenção neste prédio é a sua temática “saudade do futuro” dos anos 60, em que se sobressai a construção de uma espécie de antena estilizada, sem nenhuma função aparente a não ser de entreter a minha imaginação.

GUARAPIRANGA (2016)

Suei um pouco, mas consegui chegar junto à beira da Represa de Guarapiranga. Ouvir o barulho do movimento da água, ver o voo dos pássaros, confrontar os azuis na linha do horizonte, sentir o vento no rosto, enquanto o sol já quase se veste de Outono, perceber a energia natural… O meu presente de hoje…

OS MANOS…

… E AS MINAS (AVENIDA DO ESTADO — 2013)

MARÇO MORTAL (2021)

Último dia do Verão 2020/21, aquele do março mais mortal do século que se inicia. Concorrem para isso os vírus naturalmente mortais, intencionalmente fora de controle e os anormalmente imorais da vontade de matar. Triste é ver que muitos aceitem, por pulsão de morte ou interesse ideológico, matar e morrer através de um comportamento predatório. Infelizmente, as águas de março que fecham o Verão, não serão suficientes para lavar a nossa alma. 

LUZ & TREVAS (2016)

A eterna luta entre a luz e as trevas… E cada vez mais me convenço que só damos valor a uma quando em confronto com a outra… Compete a nós distinguirmos quando e quanto desejamos mais uma coisa do que a outra, principalmente quando ficamos mais atraídos pelas nuances…

Imortal

sei que sou mortal morrerei um dia
mas há coisas que são imortais
enquanto vivos viveremos de saudade
e desejos de alcançar e perseverar
passeios no vazio nos encontros
e eventuais reencontros
ainda que nunca tenhamos nos ausentado
as lembranças sem nunca serem olvidadas
vontade de retornar aos âmagos animados
há momentos que não morrerão
imagino que gravados na consciência universal
um repertório infinito de dores e amores
vivências de alegrias e tristezas
grandiosidades e miudezas
sonhos
tudo recolhido e espargido pelas galáxias
mundos e sistemas solares
milhões de vezes reproduzidas em quem ama
submergido nos genes das humanidades universais
nesta terra que se desfigura em cada estação
em cada canto esquinas bares casas
casebres mansões peitos corações
em cada canto dolorido doloroso
em cada nota das flores que emitem mensagens sonoras
inaudíveis apenas para os insensíveis
o que tenho certeza é que o amor sobreviverá
marcado pelos átomos dispersos do planeta destruído
abarcado pela explosão do sol daqui a muitas idades
caminhantes pelos universos
embalados pela saudade…

Foto por Pixabay em Pexels.com

#Blogvember / Aviso Prévio

… as palavras fogem sem prévio aviso (Nirlei Oliveira)

Foto por Tima Miroshnichenko em Pexels.com

Lidamos com as palavras, nós, escritores, com um amor surgido desde cedo. No entanto, há momentos em que as palavras fogem sem prévio aviso. Como pássaros arredios, batem asas e fogem de nossas gaiolas em formato Times New Roman. Nossas mentes não conseguem as seduzir com comidinhas de letras apetitosas e água fresca de linhas retas. Desdenham de nosso apreço, tripudiam de nosso desejo em revelá-las belas e faceiras para serem lidas com prazer para o descobrimento de mundos e personagens.

Isso, quando não nos enviam a requisição de uma Carta de Aviso Prévio, se demitindo de nossa empresa de montagem de histórias, depois de greves em que fazem paralizações sem reivindicações precisas, apenas para nos atrapalhar, como se não gostassem de nossa gestão. Querem nos confundir. Dão sinais de acordo, mas desistem de diálogos cara a cara na mesa de negociações. São veículos de expressão tiranas. Sabem da importância que têm para quem precisa delas como um náufrago de numa ilha deserta precisa de um barco para voltar à civilização.

O que sei é que um dia elas também sentirão saudade de quem as ama. Voltarão sôfregas por serem utilizadas no afazer de romances, poemas, narrações, prosas, descrições, enfim serem escritas. Pousadas na tela ou no papel, baterão asas apenas na imaginação. Migrarão para livros e computadores, páginas. Gerarão emoções, inflaram sentimentos, provocarão efeitos desejados e insuspeitos em quem vier as ler. Palavras são difíceis de lhe dar, mas quem sofre por elas em bem dizê-las, as bendirão durante toda a sua existência…

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Suzana Martins / Lunna Guedes

#Blogvember / Nenhum Recado

… pequenas partículas penetram em propriedades particulares (Rozana Gastaldi Cominal)

Roberto, trocando um dos pneus que furou em uma das nossas jornadas. Na imagem, também o meu irmão e sócio na Ortega Luz & Som, Humberto.

Ainda garoto, eu gostava de assistir filmes que normalmente outros da minha idade não assistiam. Não primavam por explosões e perseguições, mostravam diálogos demais e ainda que fossem coloridos, na nossa TV Bandeirantes 14”, tudo se apresentava em PB. Aliás, acho que sonhava também em preto e branco. Os filmes da minha preferência eram europeus, nos quais pude conhecer mulheres pelas quais me apaixonei, como Romy, Ingrid e Liv, que acabaram por nomear as minhas três filhas.

A primeira foi Ingrid Bergman. Há um filme em que me lembro dela narrar a leitura de uma carta, entremeada por sua imagem que me embevecia de tal maneira que sentia o coração quase saltar do peito. Seria o caso de conhecer também a dubladora que emprestava à imagem o poder de sedução.

Romy Schneider entrou em minha vida através de Sissi, mas foi após conhecê-la em atuações nos seus filmes posteriores que entrou por minha retina como uma mulher linda e atormentada, em dimensões desconhecidas para além do belo sorriso e olhos faiscantes.

Liv Ulmann surgiu para mim em 40 Quilates, mas foram os filmes realizados por Ingmar Bergman que a translucidez de seu olhar me invadiu a alma. Sua postura de mulher calada, que exalava poder apenas por direcionar o seu olhar em minha direção me atordoava. Foi um amor mais maduro, de um homem que compreendia o seu silêncio em Persona.

O fluxo de meu pensamento é errante, de certa forma, tento não o controlar. Como se temesse que eu perca algo da magia que muitas vezes vejo acontecer em meu entorno. Neste texto, a minha intenção era versar sobre a linguagem do Cinema e como ela me direcionou no meu entendimento e atuação no mundo. Mas durante a preparação do tema, recebi a notícia do passamento de um amigo que compartilhou comigo e meu irmão uma vivência próxima.

O Roberto foi o motorista de nossa pequena empresa nos primeiros tempos de atividade. Percorremos várias cidades, além de São Paulo, por milhares de quilômetros e muitas horas/dias/semanas/meses/anos.

Eu o apresentei a vários contratantes que passaram a chamá-lo por seu profissionalismo e eficiência. Isso, quando o caminhão ajudava. Muitas vezes, demorávamos mais tempo para chegar ao destino, mas acabávamos por cumprir o compromisso. Essa instabilidade não impediu que crescêssemos em nossas afazeres.

Com a proibição da entrada de caminhões em vários pontos da cidade em horários específicos – justamente nos quais tínhamos que fazer a montagem dos eventos – adquirimos um transporte menor próprio, que nós mesmos conduzíamos. Porém, vez ou outra ainda contamos com a colaboração do Roberto para a realização de nosso trabalho.

Após tanto tempo de esforço, aparentemente seria hora dele diminuir a sua atividade, mas mais do que necessidade financeira, creio que não conseguia parar de trabalhar por gostar disso… pequenas partículas penetram em propriedades particulares, como a poeira do tempo. Assim como outras imensas – a saudade que pousará como cobertura de sua casa construída depois de muito labutar.

Tanto tempo de estrada, tantos momentos difíceis como a ocasião do roubo da carga que transportava, incluindo seu sequestro e de seu ajudante, também nosso amigo, levado a cárcere privado, além de acidentes graves eventuais – tudo superado. No entanto, um incidente doméstico, um corte na perna já prejudicada por outros dois acidentes anteriores, fez com que perdesse muito sangue e uma embolia pulmonar o levou repentinamente, ainda que estivesse falando com o pessoal do atendimento.

Esse episódio me fez lembrar um dos filmes que assisti nos anos 70. No Brasil, foi chamado de “A Morte Não Manda Recado”. Corria os primeiros anos do século passado. Um sujeito não muito afeito ao trabalho, quase um pária, topa com uma fonte d’água no deserto. Monta um ponto de parada que começa lhe trazer lucro e uma fase financeira mais tranquila. Com sua companheira, começa a compartilhar uma boa vida após tanto perrengue. Até que o automóvel que comprou, uma novidade para a época, passa por cima de sua barriga ao descer um pequeno declive. Morreu assim, ainda consciente, conversando. Fim.

Foi um filme que me marcou porque concorria com as histórias que via acontecer no meu cotidiano periférico. Fatos e situações que não tinham consistência dramática, se analisadas friamente. Como se um escritor maluco ou drogado criasse um roteiro com situações fatais sem pé, nem cabeça. Assim como aconteceu com o Roberto… sem nenhuma pista ou recado…

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Suzana Martins / Lunna Guedes

#Blogvember / Promessa Cumprida

“À beira das palavras… um gole de café… (Suzana Martins)

Foto por John-Mark Smith em Pexels.com

Querida,
antes de nos separarmos, com aquele abraço que relutei em dar porque talvez não quisesse me desvencilhar dele, eu sabia que seria difícil não pensar em você nos momentos em que meus olhos pousassem no vazio que se alargou a minha frente depois dele. Para não perceber que sinto a sua falta, não paro para nada. Continuo a fazer e a refazer tarefas que apenas me distraem um pouco.

Notícias da antiga guerra perderam protagonismo, apesar das mortes continuarem em escala pontual. A nova guerra, tão velha quanto é o mundo civilizado, é mais poderosa em referências, ocupando o espaço entre uma lembrança e outra de nossos momentos de entrega, prazer e dor, que se apequenam, envergonhados do imenso sofrimento em terras distantes e mais próximas.

Porém, quando amansa as horas do dia e olho para o Sol a perder-se no horizonte me perco viagens para o centro da Terra. Foram dez anos mesmo ou toda a eternidade? Tudo me faz recordar dos nossos encontros. São tantos os marcos por onde passeamos o nosso desejo de consumação impertinente que fica difícil não sorrir para depois morder os lábios na tentativa de me vingar da boca que me trai o sentimento de saudade.

Você cumpriu a sua promessa, quando lhe pedi: “me deixe ao menos lhe ver passar” – como cantou Roberto. Torço tanto por você encontrar a paz de espírito que buscava. Quis que não me odiasse por você me considerar um dos motivos de sua constante e incongruente desarmonia emocional, enquanto seu belo corpo bailava a beleza de ser artista no rosto luminoso. Como imaginava que também desejasse não mais me desejar, concordei com o fim…

Seremos velhos que, feito carvão encerraremos todo o amor em brasa que nos queimou durante a última década. Ou desfilaremos a nossa imaturidade de amantes perdidos em nós para todos verem, sem fugas e sem segredos, pelas esquinas da cidade? Frequentaremos restaurantes e cafeterias, à beira das palavras… um gole de café e um afago nas faces experientes? Acordo, sei que é apenas um sonho.

Cumprimos um ciclo – forte e tempestuoso. Tantos em sorrisos quanto em lágrimas. Agora apenas caberá nos deitarmos na rede das lembranças, descansarmos os nossos corpos alquebrados em novo ciclo, em que cada minuto será de gozo doloroso por não mais estarmos juntos, em peles encanecidas conflagradas na peleja do prazer…

Participam: Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Suzana Martins / Roseli Pedroso