Seis Anos De Bethânia

Em 17 de Maio de 2016, escrevi: “Pois, é!… Aconteceu de novo… A Tânia e a Romy se compadeceram de uma doidinha de saudade perdida na região… Uma pediu, a outra a resgatou… Agora, Bethânia parou de chorar, sentada em meu colo… A academia adiada, enquanto descansa de seu sofrimento a nova fêmea da família, pelo menos por um tempo…”.

Hoje, a Bethânia cresceu, mas nem tanto. Gosta de agir como se fosse uma gata e, apesar de suas perninhas curtas, salta a mais de um metro de altura, subindo em muretas, telhados, pias e, eventualmente, em mesas. Destruiu praticamente sozinha um conjunto de sofás e vez ou outra acusa travesseiros e almofadas de atacá-la, os rasgando. Sofre bastante com o frio, odeia roupinhas e prefere ficar debaixo das cobertas nas camas que a aceitar. Quando a Romy foi resgatá-la perguntou para uma senhora que estava próxima se era dela. A resposta que ouviu foi: “ninguém quer isso daí, não!”.

Nós quisemos “isso daí”, bicho ciumento que ganhou um capítulo no meu primeiro livro pela Scenarium Livros ArtesanaisREALidade – por essa característica. Teimosa, late sem parar normalmente quando a Lívia está em reunião no Home Office. Complexa,  é difícil explicar a personalidade forte dessa “pessoa”…

As Pedras

“Com as pedras do caminho, construirei a minha casa” ou “com as pedras que me atirarem, construirei o meu castelo”. Acho mais pertinente a primeira frase, mais afeita à minha personalidade. A segunda, pretenciosa, ainda que demonstre fortaleza de propósito.

No entanto, não creio que para a Maria Bethânia Ortega, nada disso importe. A Tânia, para cercar a nossa mangueira, em substituição à grama, pisoteada e arrancada pelos cães, decidiu colocar pedras brancas de jardim. Esse visual limpo, parecia ser solução para evitar que a terra fosse escavada pela comunidade canina. Bethânia, simplesmente ficou fascinada por elas. Começamos a encontrá-las dispersas nos mais diversos pontos da área da casa, carregadas pela pequena boca da artista — na cama do casal, na sua própria caminha, no corredor dos quartos, em cima do sofá ou espalhadas pelo quintal.

A Lívia disse que numa das ocasiões, encontrou um desenho triangular, como se fosse uma obra artística ou disposição cabalística. Numa dessas, encontrei três pedras colocadas do mesmo lado, a cada dois degraus. Intencional ou não, de início, eu a admoestava por agir dessa maneira, mas ao perceber que a atração pelas pedras era mais forte do que ela, deixei de falar num tom acusador. Hoje, ao chegar de um compromisso, ela me recebeu com uma pedra na boca. Pensei até que fosse um presente pessoal, mas permaneceu com ela até deixar numa das casinhas.

Pela Internet, cheguei a ver vários vídeos de cães de aparências similares, variações da raça dachshund, que praticam os mesmos atos com objetos diferentes, desde arcos a bichos de pelúcia. Antes, outras coisas sumiam e quando as encontrávamos, estava ou na caminha dela ou dentro dos vasos das plantas, enterrados. De certa forma, talvez esse fascínio pela pedras brancas evite que não suma outras tantas coisas que só venhamos a descobrir tempos depois.

Outra curiosidade é que ela tenha preferência pelo mesmo formato de pedra, mais plana. Se bem que as arredondadas, como são em maior número, também compareçam ao acervo artístico da Bethânia. Essa minha filha já compareceu como tema em meu primeiro livro — REALidade, pela Scenarium — pelo ciúme expresso por latidos sentidos quando acaricio as suas pares da família. Tem um olhar expressivo, uma inteligência incrível, uma postura que comunica os seus desejos de maneira clara e, aparentemente apresenta pendores artísticos e místicos. Ágil, é uma acrobata que anda pelas muretas como se fosse uma gata.

Dada a crença que sejam espíritos em evolução, é bem possível que, assim como outras criaturas da sua espécie, eu volte a encontrá-la em forma humana e possamos interagir com conversas que faria com que a conhecesse mais profundamente. Porque eu não alcanço toda a sua complexidade, mas sei que ela me entende completamente…

Missivas De Primavera / Só, Entre Dois Mundos

Lunna ed io…

Lunna,

nesta manhã de domingo de ressaca – no meu caso, por ficar horas insone – a Primavera mostrou sua faceta inconstante. Saí para ir a pé ao supermercado próximo e tomei pela cara agulhadas do ar frio invernal, digna da estação que acabou de morrer. Voltei com o Sol a banhar-me de luz quente. Suando, estava a escrever na cabeça a missiva que lhe envio. Agora que passo para a tela do computador, sinto o ar refrescar demais. 18ºC. Lembrei o quanto não gosta do calor excessivo e talvez nem do frio extremado. Não é incomum imaginá-la com um cachecol em volta do pescoço. Nem sei se usava um quando da primeira vez que a vi, mas na minha idealização, sim. Abri a porta para alguém que não parecia a nenhuma outra que conhecera antes. Impressão que perdura até hoje. Apesar de anos de convivência, ainda é um enigma difícil de decifrar. Não que queira. Sou daqueles que acredita que mistérios existem para serem vividos, não explicados. Dá ensejo que passeemos sobre “possibilidades impossíveis” e clareiem contradições que não são poucas, nos ajudando na criação.

Desde aquele longínquo de 2015, a sua influência na minha vida foi direta e desejada. Como em qualquer relação íntima, você me conhece por minhas palavras enviesadas – mentiras verdadeiras que me denunciam. Há variações de humor e choques de opiniões. No último texto que lhe enviei, o que eu supus ser um conto, perguntou o que havia acontecido comigo: “não é um conto, não uma narrativa, nem mesmo uma história. O que houve?”. Respondi que era um texto antigo, de 2014 (antes da sua intervenção, portanto), o qual não havia alterado, apenas limpado. Queria que fosse seco. Rindo, só pude dizer que se não era uma coisa, nem outra, poderia ser uma receita de bolo. Fiquei a imaginá-la vociferando mentalmente contra o seu autor “rebelde”. A minha reação com você nunca é equilibrada. Fico desconcertado com a sua franqueza, mas não deixo de louvá-la. Estranhamente, me sinto distinguido. Como daquela vez que, ligado no “piloto automático”, eu enviava textos-padrão e perguntou “cadê o meu autor?”, me instigando a buscar desafiar-me, o que acabei por fazê-lo. Outro dia, cheguei a dizer que escrevia, em última instância, para você. Sinal de extrema confiança.

O que surge diante de mim é o de uma mulher em constante mutação, ainda que apresente uma identidade reconhecível de menina pelo olhar sapeca e humor afiado de sagitariana. Tendo dois terços da minha idade, já deve ter lido o dobro ou mais do que eu. Colecionadora de livros que vez ou outra doa, coleciona palavras que joga ao mundo através de páginas costuradas e escritores que põe de lado se não quiser mantê-los no elenco da Scenarium. Quando me perguntam se escrevo livros ou compareço com textos para as edições especiais – Plural ou coletâneas – por algum motivo especial, respondo que escrevo para me tornar o melhor escritor possível dentro das minhas limitações. Nesse momento é que a Lunna editora comparece para me pressionar para expandir meus horizontes literários, buscar soluções inéditas, soltar os meus demônios.

Eu já disse antes que nós, humanos, somos sós. Em última instância, diante do mundo, estamos isolados. Você é uma daquelas pessoas que viveu entre dois continentes e realidades durante algum tempo e ouso dizer que continua a viver. Qualquer ser que especula sobre o mundo, sente-se dividido entre dentro e fora de si. Sente-se abrigado em ambientes seguros e em outros inóspitos. Está no Presente e no Passado ou um dentro do outro. Oriundos de vários países e “oriundi” formaram a nação brasileira. Você, um deles. São Paulo, carrega todas as nações desta nação. E aqui você encontrou uma identificação que demonstra a sua pluralidade. Enquanto descerra o véu que expõe aspectos que a torna mais misteriosa, contradizendo a ideia de que o conhecimento se dá á luz à do olhar.

Eu espero que continuemos a nossa interação por muito tempo. Sob sua condução, buscarei fazer jus à sua atenção e estímulo. Eu me sinto como que escolhido para aceitar devassar as minhas incoerências e inspirar-me a prosseguir neste caminho estranho e belo da criação da palavra perfeita, da frase sonora, do parágrafo instigante. Sono grato di far parte del mondo lunare per tutto il tempo che voglio…

Bacio, bambina!

                                                                                                     Obdulio

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Suzana Martins

Missivas De Primavera / O Coração Apaixonado Pelas Paisagens Naturais

Mariana Gouveia, deste e d’O Outro Lado

Mariana,

se há alguém que observa as paisagens com o lado de dentro do coração, é você. O melhor é que partilha com quem a acompanha, o seu olhar. Não basta estar em meio a uma Natureza exuberante se o seu coração não falasse mais alto. Não duvido que ao vê-la passar, a beleza se ofereça a você para fotografá-la. É uma relação de amor que se consubstancia na amizade com um beija-flor. Chiquinho sente que você o ama e, através dele e seu bater de asas, os sons naturais, as cores exuberantes, a doçura da força da vida que explore em flores, plantas e seus segredos.

O calor que marca o lugar em que vive surge apenas cálido em nossas visões permeadas por suas imagens. As paisagens são particularizadas em detalhes porque sabe que um mundo se esconde nos cantos e recantos. A mesma luz do Sol que produz o subproduto humano da seca, ilumina a real fantasia. Mas é por suas palavras escolhidas que percebemos o poder do que nos é dado ver. Tudo ganha uma dimensão tanto espacial quanto mental que não desvendaríamos se não fosse a sua mão a nos conduzir. Mulher que consegue ser outras mulheres ao interpretá-las com a sua escrita – ou sendo essas mulheres a se expressarem – Marianas parece surgirem a cada leitura, ainda mais quando passeiam pela paisagem inóspita dos homens em sociedade. Criação nada mais que antinatural.

Que este domingo esteja a evidenciar mais e mais revelações para quem observa além do imediato, o que para os incautos são aparições muitas vezes indesejadas. Que a chuva se faça presente para dar de beber a todos os seres e expressões de vida. Que o abraço seja a sua medida mínima de contenção. Que a sua mente viaje pelo mundo até que nos alcance em nosso Scenarium. Que chegue o momento que testemunhemos as paisagens que enxerga na presença de seus olhos diante de nossos olhos. Por este momento, desejo que esteja bem entre os seus familiares, amigos, companheiros de outras espécies e outros reinos.

Abraço natural, ainda que distante!

                                                                                                                                 Obdulio

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso

Missivas De Primavera / Receituário De Uma Quinta Infinda

Roseli Pedroso

Companheira,

se fosse fazer uma brincadeira, dessas de criança, perguntando: “o que é que é, um ponto prateado num Centro cinza” – sem pestanejar, responderia – Roseli! Pois você se destacaria com a sua cabeça de prata em meio a multidão que caminha pelas ruas centrais da Vila Buarque. Assim como o Buarque de Holanda, também escreve e poetiza a realidade com as suas crônicas que falam de tudo e de todos – da vida e da morte, do azar e da boa sorte, de si e do outro. Como o compositor, compõe crônicas ora com a alegria de viver, ora com a decepção de saber, ora com a oportunidade perdida, ora com a batalha vencida.

Senhora de si e do verbo, escreve Quinta das Especiarias, remetendo ao passado de sabores, odores e amores que a formaram. Como também narra as vidas de mulheres que viveram as agruras de expectativas não realizadas, alienação e sofrimento de umas e revoltas construtivas de outras, em Equação Infinda. Em Receituário de Uma Expectadora, vemos mais do que alguém que espreita o movimento, mas intervém na Realidade, imprimindo com a sua análise a marca de ironia fina. Contadora de histórias e defensora do conhecimento, quase a imagino um ser mitológico, uma espécie de Atena, que após o fim do mundo como o conhecemos, a encontraria guardiã de uma imensa biblioteca para o bem do novo alvorecer.

E é aí que nos encontramos, passeando para além do cenário amado do Centrão, ainda que nunca tivéssemos trombado por aí. Porque talvez os forasteiros não saibam, mas São Paulo é uma província, apesar de tanta gente viver por aqui. É o teatro onde buscamos personagens e lugares, falas e situações que nos enredam e nos trazem enredos com os quais enveredamos por testemunhos e textos. Quase a imagino um ser mitológico, uma espécie de Atena, que após o fim do mundo como o conhecemos, seria guardiã de uma imensa biblioteca para o bem do novo alvorecer.

Com eles, contribuímos para a boca de cena da Scenarium. Lugar de amálgama, síntese e solvências, esta cidade é a seara onde plantamos palavras que geram escritos, ainda que seja um campo endurecido de asfalto e concreto. Como sabemos, nada é por acaso. Se uma italiana se perdeu / se encontrou em Sampa e, através dela estes paulistanos se encontraram, alguém objetaria dizer que não foram pelas mãos de divindades celtas? Promotora de misturas alquímicas, realizou cerimônias ritualistas a qual chamou de Saraus, a nos colocar sempre fora de prumo, pela luz da Lua minguante.

Querida, espero nos reencontrarmos num desses rituais promovidos pela sacerdotisa-mor ou antes, por um desses acasos de tempo e lugar. Por enquanto, envio esta missiva, com muito carinho, já antevendo o seu imenso sorriso que nos remete à eterna menina que é.

Um abraço cenográfico!

                                                                                                                                Obdulio

Participam: Lunna Guedes / Suzana Martins / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso