Nós & Eles*

A publicação acima foi extraída do Instagram e mostra uma situação que eu vivenciei de perto. Eu trabalho com eventos. Em muitas ocasiões, “invado” espaços que normalmente não frequentaria pela sofisticação do lugar. Aliás, fugiria deles se fosse me dado a escolher.

Nasci na Maternidade de São Paulo, já demolida, onde várias personalidades da cidade também nasceram, não que me considere uma. Vivi o começo da minha vida na região do Largo do Arouche, mas depois a minha família e eu, fomos caminhando para os extremos da Capital Paulista. Primeiro à Leste, em seguida ao Norte. Onde até hoje vivo, aliás. Em uma casa, em uma rua com outras casas, um sistema antigo e em extinção nesta Sampa da “grana que ergue e destrói coisas belas”. Prevejo um futuro onde todos viveremos encastelados em edifícios cada vez altos.

Mas, voltando ao assunto inicial, a Ortega Luz & Som foi contratada para sonorizar uma banda para o batismo de uma criança, filha do dono de uma universidade particular. Fomos um dia antes e vários operários estavam ainda montando o local onde se daria a cerimônia e, logo após, seria servido o jantar durante o qual a banda se apresentaria para animar/distrair os convidados. Era uma imensa plataforma colocada em cima da piscina, com compartimentos que faria inveja a várias casas — capela com pia batismal, uma sala enorme para a mesa também imensa, banheiros bem equipados, corredores para a passagem de garçons e outros funcionários. Fiquei pensando que aquilo era grande demais pelo valor que havia cobrado.

Montamos o equipamento, testamos, deixando tudo pronto para o dia seguinte. Várias personalidades, entre artistas e poderosos de ocasião, compareceram ao evento e todos pareciam encantados com a suntuosidade do espaço e a pompa da cerimônia de batismo, levada a termo por um padre da moda. Talvez por meu provincianismo ou por ter uma mentalidade crítica urdida no estudo de História, eu achei tudo exagerado. Interpretei (cabe ressalva) que aquilo não foi pela fé do pai e da mãe, mas pelo espetáculo proporcionado. Demonstração de poder. De qualquer forma, também não foi por esse motivo que decidi escrever este texto.

Tudo aconteceu antes. Quando chegamos para a montagem, o rígido sistema de segurança começava pela chegada do veículo que nos transportava, que parou em uma “caixa” onde tivemos os equipamentos vistoriados e nós, revistados por homens armados. Liberados, chegamos junto ao “cenário” da cerimônia para descarregarmos o equipamento e montá-lo. Foi quando aproximaram três grandes carros pretos. Do primeiro e do terceiro desceram vários seguranças que se posicionaram junto à porta do carro do meio. Dele, saiu o gestor da universidade, protegido como se houvesse uma ameaça por perto, entrando rapidamente na residência. Olhei para além dos muros altos e sequer tinha um prédio naquela região do Morumbi, onde poderia se instalar um atirador de elite que pudesse feri-lo.

Foi quando me dei conta. A ameaça éramos nós — prestadores de serviços —, simples mortais e, eventualmente, uma possível ameaça à integridade física de alguém tão importante. Por sermos de uma casta inferior, nossas mãos e ferramentas de trabalho poderiam ser usadas como armas para agredir o plenipotenciário senhor de um negócio que prosperou na ausência de uma política pública de apoio à Educação de qualidade.

Objetivamente, eu não tinha como odiá-lo por ele ser um homem rico financeiramente. Ele era apenas mais um “esperto” que utilizou o vazio proposital deixado pelos mandatários eleitos por nós para que fossem ocupados por agentes do sistema de castas que impera no Brasil desde sempre. Se não fosse ele e os assim como ele, seriam tantos outros que também transitavam pelo salão artificial que, desmontado, daria lugar à exuberante piscina abaixo. Junto à mansão e à grande casa adjacente, ladeada pelo canil onde se “hospedavam” os cães da bela família apartada em seu mundo da constante intimidação do resto da nossa “perigosa” população.

*Texto de 2023

#Blogvember / Tempo Presente

“Enrolo em laços e fitas a linha do tempo presente”, por
Nirlei Maria Oliveira, em palavr(Ar)

Dona Generosa afastou-se um pouco para me ver nos olhos. Estava cada vez mais impressionado com a profundidade de seu olhar. Eu me senti um tanto intimidado, como se ela pudesse ler os meus pensamentos. Voltou a encostar a sua cabeça no meu peito, ouvindo o meu coração acelerado.

Ele ainda está aqui… – disse.

Convidou-me para entrar pela porta de sua casa simples, mas estranhamente majestosa. A cozinha ficava logo na entrada, perfumada de bolo de fubá e café. Ela, ao me ver salivar, perguntou se aceitava um pedaço de um e uma xícara de outra dádiva de vida. Sorri que sim. Desviei o olhar para o lado e vi uma moça que amamentava uma criança sentada num sofá do que parecia ser uma sala contígua. Pedi desculpas, mas a jovem sorriu e disse que não havia problema. Completou que a neném, uma menininha com olhos de jabuticaba, a assaltava de uma em uma hora, gulosa que era.

Ao contrário do que aconteceria antes, mesmo sendo uma moça muito bonita, eu não encarei a cena como algo para além do que era. Ela se comportava de maneira tão natural naquela circunstância, que me identifiquei com aquele ambiente como se tivesse vivido nele a minha vida toda. Agir sem malícia ou segundas intenções, fazia com que eu me sentisse bem comigo mesmo. Passei a ter certeza de que o jovem Geraldo, filho da dona da casa, morto aos 22 anos, era um rapaz muito especial. E que seu coração, que agora batia no meu peito, me tornava uma pessoa melhor. Não completamente, porque chegava a invejá-lo por sua mãe, sua mulher, sua casa e sua filha…

Apenas para confirmar, perguntei a Dona Generosa se sabia quem eu era.

– Eu estive no hospital ao saber que você receberia o coração do Geraldo. Pelo menos, isso… Orei durante toda a intervenção cirúrgica. Quando soube que tinha dado tudo certo, fui embora.

Mais uma situação que me fez perceber a natureza ímpar daquele ser iluminado. Olhei de lado, enquanto a moça recolhia uma das mamas intumescidas de leite que acabara de alimentar a pequenina neta da anfitriã. Perguntei o seu nome.

– Meu nome é Sarah. E esta é Viola… – apontando para o pequeno ser humano que agora dormia profundamente.

– Tem seis meses. Geraldo pode vê-la antes de partir. Começou a trabalhar mais para poder nos dar o máximo que pudesse. Preferia que estivesse conosco…

Sarah emoldurou um sorriso melancólico e seus olhos se tornaram uma piscina onde eu mergulharia de tão translúcida quanto as águas das praias onde passava os meus melhores momentos. Quebrou o silêncio momentâneo com a frase que me fez apaixonar por ela completamente:

– Que bom que o senhor nos trouxe um pouco dele para nós…

Aquele “senhor” saindo de sua boca, me fez sentir um tanto desconfortável. Chegara aos 40 anos com um corpo de 60, mas o coração era de 20 – o do seu amor, Geraldo. O sentimento que passei a ter por Sarah era algo mais evoluído. Ela, aos 20 anos, parecia ter a maturidade de uma mulher experiente e não duvidava disso. Por ser preta, viver onde vivia, em condições que antes eu consideraria precária, apesar de rica em referências valiosas, devia tê-la temperado feito aço no fogo.

Perguntei para Dona Generosa se poderia vir mais vezes. Que ela me fez sentir em casa e tão bem quanto não chegava a me lembrar dessa sensação. Aliás, voltando para o Passado, não me lembrava de estar nesse estado de contentamento como naquele momento. Queria, como num pergaminho precioso, “enrolar em laços e fitas a linha do tempo Presente“. Ela respondeu que a casa era minha. Que voltasse quando quisesse. 

Ao me despedir, o meu lado empresarial, acostumado a projetar as suas ações, já havia traçado todo o percurso que faria para “limpar” a minha biografia, Eu me separaria da dupla Carla & Djanira, lhes daria uma pensão generosa para que ficassem longe de mim. Promoveria algumas ações na empresa que tornasse o ambiente de trabalho menos pesado – uma creche para as crianças e outra para os pets, uma cafeteria a preços promocionais, local para descanso nos recessos dos períodos de trabalho. E, certamente, tentaria ajudar, sem tentar ser muito invasivo, Dona Generosa, Sarah e Violinha.

Sabia que, apesar da falta de condições materiais, pareceria ofensivo que eu considerasse que não vivessem bem. Ao contrário, por mim me mudaria, junto com a Petúnia para aquela casa menor que a minha sala de estar. O meu senso de proteção foi aguçado de tal maneira que finalmente percebi a importância da família – a criação de um elo de amor, proteção, confiança e uma casa para qual tivesse vontade de voltar. Finalmente, eu sentia estar me tornando um homem.

Participam: Mariana Gouveia / Suzana Martins / Lunna Guedes / Roseli Pedroso

Eike & Trump*

Eike Baptista & Donald Trump

Eike Baptista está a negociar sua volta ao Brasil. O que pega é que, apesar de toda a fortuna que acumulou, o referido senhor não tem diploma universitário. Ou seja, menos do que a sapiência em determinada área que o estudo deveria promover, ele se tornou, eminentemente, um experto em ganhar dinheiro. E carrega, certamente, a esperteza necessária para tal, também. É brasileiro e carrega igualmente a cidadania alemã. Mas na Alemanha, onde começou a carreira de acumulador de riqueza, dificilmente encontraria o ambiente propício para multiplicar em milhares de vezes o numerário de que dispunha.

De início, eu acho terrível que haja essa distinção entre os tipos de cadeia: uma para quem tem e outra para quem não tem curso superior. A cadeia deveria ser boa o suficiente para abrigar a ambas categorias de infratores, sem diferenciação. Aliás, está na Constituição que a prisão deva ser um local de recuperação do detento. Ou seja, a pressupor que a Educação seja um meio de elevação do espírito humano, a regra comum é que a internação compulsória deveria servir idealmente como tempo do aprendizado — em diversos níveis — sobre o funcionamento da sociedade e seus limites de convivência. Quem tem terceiro grau, normalmente mais instruído, deveria ter, igualmente, a capacidade de distinguir entre o certo e o errado. Mas sabemos que isso é uma falácia. Caso contrário, não veríamos ignorantes educados nas melhores escolas, como Trump, a pregar a ignorância como bandeira política, ter sucesso em seu intento de ascender ao poder.

Por algum contexto sombrio, o surgimento da figura do Trump como um modelo a ser seguido vejo associado ao de Eike, de forma indelével. Eles são resultado do pior que pode gerar a crença em valores absolutos, sem distinção ideológica. A ver que algumas das propostas do presidente eleito da “maior democracia do mundo”, como se intitulam, se parecem bastante com a de ditadores de regimes fechados, à esquerda e à direita. E Eike só chegou onde chegou com o auxílio de sócios no Poder Governamental brasileiro. Alguns estão presos. Outros, serão. E isso é uma novidade nesse jogo do poder realizado entre grupos fechados, sob os auspícios de conchavos políticos-econômicos-partidários escusos, sob a luz bem clara de escritórios palacianos como norma de todos os que se assentam à cabeceira da mesa e ao lado dela há séculos.

Vaticino aqui que o próprio Trump está a cavar o seu impedimento, caso não venha a alterar as diretrizes que está a cumprir como promessas de campanha, como a não homologação do Tratado Comercial Trans-Pacífico. A China, agora, vai deitar e rolar. A sua hegemonia vai crescer enormemente. Daqui a algum tempo se verá os malefícios dessa medida para a economia norte-americana. Serviu para elegê-lo, quase como um voto de protesto contra os políticos tradicionais, fenômeno que vemos acontecer em vários países democráticos. As pessoas querem respostas imediatas aos problemas que as afligem, como a segurança, a saúde e a economia. Aqueles que apresentam as respostas mais fáceis, que são geralmente as mais diretas e irrefletidas, obtém sucesso imediato, com resultados normalmente funestos.

O Eike já foi apontado, inclusive por alguns de nossos governantes, como exemplo a ser seguido como perfil de empreendedor de sucesso. Os artifícios que utilizou para aumentar a sua fortuna funcionou muito bem no ambiente historicamente corrompido que temos em nosso País. Estranho é que o nosso povo sem Educação formal de qualidade, a ponto de aceitar com naturalidade a premiação de quem tem curso superior com uma prisão com benesses em relação ao deseducado sob os cuidados do Estado, ao mesmo tempo não se importa de verem as suas cabeças cortadas à luz do dia apenas porque estejam encarcerados semelhantemente, veja chegar ao poder na parte de cima do Continente Americano, superiormente desenvolvido economicamente, o mesmo tipo que elegemos constantemente por aqui — Salvadores da Pátria.

*Texto de Janeiro de 2017

BEDA / Scenarium / WTF?*

WTF

O relato a seguir foi totalmente inventado e qualquer semelhança com fatos, circunstâncias, nomes de personagens e locais terá sido uma mera e infeliz coincidência.

Waldo fora chamado para fazer um orçamento para o fechamento de teto e revestimento para tratamento acústico na reforma de uma casa noturna. Logo que chegou, verificou que aquele era um salão como tantos que já visitara para executar tal trabalho. O espaço apresentava apenas uma entrada, que seria também a saída. Pequenos nichos posicionados em lados opostos seriam usados como bares. Mais ao fundo, ficaria o palco, os banheiros e a cozinha. Em outro ponto, mais junto à porta, haveria um recuo onde deveriam ser distribuídas as comandas, após uma sequência de grades que direcionariam as filas do público afluente.

O edifício fora construído em um terreno de 300 m² e a área livre, incluindo o palco, os dois banheiros, a cozinha e um depósito para as bebidas e alimentos, não passava de 270 m². Seria sobre essa metragem que Waldo deveria calcular o material que utilizaria, bem como o preço do serviço, que variaria de acordo com a qualidade do revestimento solicitado pelos donos da boate e casa de eventos WTFWonderful Tour Freeway. Chamou a atenção de Waldo que o rebaixamento faria com que o teto da WTF ficaria mais baixo do que o ideal, mas os donos achavam que o ambiente ficaria esteticamente melhor, além de mais acústico para a sonorização, sem a utilização de tanta potência e recursos técnicos para distribuir o som. Waldo não se contrapôs. Quando algum cliente desejava a realização de algo que não fosse confortável ou seguro, ele, no máximo, sugeria algumas alternativas, sem ser muito enfático, para não irritar o contratante. Ao cabo, acabava por obedecer às ordens dadas.

A WTF pareceria, após o rebaixamento do teto, a uma grande caixa de sapatos. Sem as outra áreas livres, o espaço reduzia-se a 180 m². Talvez coubesse, de acordo com o padrão internacional de ocupação ideal, de 4 pessoas por m², no máximo, em torno de 720 seres humanos. Os donos disseram que poriam um aviso com a lotação máxima de 1000 fregueses, mas duvidavam que a casa mantivesse um público muito superior a 500 frequentadores. Enquanto conversavam com Waldo, trocavam ideias entre si de como atrair uma maior afluência. Ele chegou a ouvir a proposta de uma noite que se chamaria “Colação”, já que o mote seria que todos estariam tão próximos uns dos outros que seria uma imensa colagem de corpos. Ouviu também a armação de uma estratégia – caso alguém reclamasse da massiva aglomeração, responderiam que a intenção era exatamente aquela – unir as pessoas fisicamente. Os jovens, principalmente aqueles que tinham dificuldade em aproximar-se uns dos outros, adorariam – completaram.  Logo após, ouviu uma risada entremeada por cumprimentos, em que os donos se elogiavam mutualmente por tamanha esperteza. Waldo sentiu um pequeno tremor.

Na verdade, Waldo já havia visto essa estratégia empregada em várias ocasiões, para diversos fins. Corria a solto pelos meios de comunicação a série de anúncios para a Copa do Mundo de 2014, em que acentuava o elogio do tumulto que causaria um evento de tamanho porte realizado sem a infraestrutura necessária para tal, já que não haveria remédio, tempo ou seriedade para resolver os problemas que seriam causados pelo enorme afluxo de pessoas, então. Com o passar do tempo, ele também já elaborara um perfil padrão das pessoas com que lidava. Elas sempre buscavam justificativas precárias para as suas tomadas de decisão igualmente duvidosas. Esse preconceito o aliviava de contra-argumentar certos critérios espúrios, o que o poupava de digladiar-se com o cliente, como já ocorrera no começo de sua atividade, resultando em perda de receita. Afinal, tinha muitas contas para pagar, como todo mundo. Aprendera a adaptar as preferências alheias ao escopo do projeto, mesmo que fosse contra as normas básicas de execução mais segura. Naquele caso específico, os seus contratantes disseram que o revestimento com tratamento anti-chama era muito caro, o que inviabilizaria o trabalho. Perguntaram se haveria alguma alternativa mais barata e Waldo disse que havia, mas que talvez fosse muito perigoso, caso houvesse alguma ocorrência, como um curto-circuito, explosão ou outro fator de risco de incêndio. Nesse caso, a fumaça produzida, argumentou, seria altamente tóxica e se espalharia em poucos minutos.

Os sócios se entreolharam e com o tempo acertado de percussionistas que estavam bem ensaiados, bateram na madeira do palco de bateria três vezes – “Deus me livre! Isso nunca acontecerá!” – disse um deles. Outro completou que tomariam todas as medidas de segurança possíveis, com a utilização de equipamentos elétricos de primeira e iluminação de última geração – Importada! – finalizou.

– Então, está bem! Com o material que escolheram, o preço cai pela metade.

– Ótimo! Pode providenciar o serviço! Temos pressa! Precisamos reinaugurar a casa logo no início do ano, quando os estudantes, que constituem a maior parte de nosso público, voltarem às aulas!

– Estará pronto no prazo! Apenas não sei se dará tempo para a liberação do alvará!

– Não precisa se preocupar com isso, meu amigo! Temos um acordo com o pessoal da prefeitura. Somos amigos, inclusive, do prefeito. Ajudamos muito na campanha para a reeleição.

– E os bombeiros?

– Tranquilo, meu amigo! Costumo dar passe livre para vários soldados da corporação. É muito comum termos também policiais, delegados, além dos soldados do batalhão da cidade frequentando o nosso salão. Caso aconteça algum fato estranho, teremos o lugar mais seguro do mundo!

Mesmo já tendo observado que não havia saídas laterais, Waldo perguntou, por desencargo de coincidência:

– Outras portas, além daquela pela qual entramos?

– Não, meu amigo! O brasileiro, se puder, não paga nem o enterro da mãe! Não podemos dar a oportunidade de que saiam sem pagar! Ainda que colocássemos seguranças para vigiar essa saída, teríamos uma despesa extra, desnecessária! Além do que sempre haverá a chance de alguém molhar a mão dos caras para saírem sem pagar a comanda…

Duas coisas incomodavam a Waldo naquele momento: primeiro, o fato daquele senhor chamá-lo de “amigo”; segundo, pelo que vira na tabela de preços a frente de um dos bares, os valores eram abusivos. Vasilhas de refrigerantes, águas e energéticos custavam quatro a cinco vezes mais que o preço normal de compra em supermercados. Fora os coquetéis e outras bebidas a base de álcool, em que a imaginação para instituir os valores era ampla e irrestrita. Isso incentivaria a tentativa de não pagamento da comanda. Em contrapartida, justificaria arriscar a vida das pessoas ao não disponibilizar saídas de emergência? De qualquer forma, pensou, aquele serviço seria grande e renderia um bom dinheiro. E ele faria da melhor forma possível, como bom profissional que era.

Logo após acertar o contrato, ele saiu à luz do dia, se sentindo aliviado por ter saído daquele ambiente opressor. Um sentimento de angústia chegou a assaltá-lo momentaneamente. Ainda trazia, vívida na lembrança, a descrição das câmaras de gás feitas pelo autor de um livro sobre o Holocausto que lera recentemente. Criadas pelo engenho humano para executar o maior número de pessoas com o menor custo e em menor tempo possível, a sua construção era extremamente simples. Uma caixa, como aquela, em que hordas de crianças, homens e mulheres se dirigiam a uma armadilha, com a promessa de um banho redentor, que restituiria um pouco da humanidade perdida. Marcas de unhas resistiram à passagem do tempo, entalhadas na parede. Mais um pouco, Waldo deixou esses pensamentos de lado e convenceu-se de que deveria acatar o que os contratantes mandavam. Ele, por seu turno, apenas estaria cumprindo ordens…

*O incêndio na Boate Kiss ocorreu a 27 de Janeiro de 2013. Nessa mesma data, 68 anos antes, em 1945, o Exército Vermelho libertou Auschwitz, o maior e mais terrível campo de extermínio dos nazistas. Em suas câmaras de gás e crematórios foram mortas pelo menos um milhão de pessoas. Esse dia é considerado o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

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