Perdão Pela Modernidade*

Neste texto pessoal, uma carta, mas que encarei como profissão de fé, baseado nas leituras que efetivei ao longo de anos, eu respondi ao meu pai – Odulio Ortega – acerca de uma postura parcial quanto à visão da História. Encalacrado em uma visão antiga da qual não conseguia se desviar, ele me acusou de dar voz aos seus adversários políticos, enquanto eu tentava colocar a minha posição quanto ao desenvolvimento dos fatos que então demonstravam, segundo eu pensava, o caminho errado que a Esquerda tomava à época, em 2012*. Havia percebido que o sentido adotado por ela resultaria no enfraquecimento das possibilidades de entendimento entre um ideário e outro, podendo causar, como veio a acontecer, na divisão do País. Sempre soube que sem cotejar visões antagônicas para o exercício político, não haveria futuro para a nossa precária Democracia, de alguma forma atacada de um lado e de outro na tentativa de impor como único. O meu afastamento crítico ainda assim não impediu que seis anos depois pudesse antever o mal causado pelo viés à Extrema Direita que veio afligir o Brasil nos últimos quatro anos. Apesar de no primeiro parágrafo eu ter citado a miscelânea messiânica que ele empregava ao se posicionar, eu igualmente escolhi estabelecer uma postura mais ligada à religiosidade, muito frequente em minhas manifestações pessoais.

“Permita-me inicialmente analisar a maneira como o senhor mistura sistemas de governo com ideários econômicos e religiões com crenças, considerando, inclusive, o estabelecimento de critérios absolutamente pessoais de percepção da realidade como fatos históricos estabelecidos em letras impressas de jornal, derrubando exaustivos estudos de historiadores, antropólogos, arqueólogos e estudiosos sociais que decretaram que os chamados autóctones aqui encontrados, na verdade massacraram os antigos moradores da terra, que por sua vez, chegaram do norte em ondas migratórias que atravessaram o estreito de Bering, que fica entre a Ásia e o Alaska, provavelmente por uma ponte de gelo criada na última era glacial.

O que isto quer dizer? Que nenhuma etnia pertence originalmente ao lugar em que vive, considerando retrospectivamente o tempo de uma forma mais extensa, contado não em dezenas ou centenas, mas em milhares de anos, olhado de uma maneira mais abrangente, como estabelece, aliás, a visão espírita, em que a vida se desdobra em papéis vivenciados em ciclos de “nascimento” e “morte”. Sempre é bom lembrar que nem mesmo Alan Kardec propôs algo original, já que a milhares de anos, o Hinduísmo contempla a existência em diversos planos. Assimilação.

A espécie humana é originária da África, fato determinado por pesquisas feitas com base no DNA mitocondrial, e de lá, avançou continente afora até a Ásia e a Europa, onde fatores ambientais moldaram exteriormente a sua estrutura física, adaptando-se aos requisitos necessários à sobrevivência ao meio. Além disso, considera-se que, como o Homo sapiens, o Homem de Neardenthal chegou a alcançar algum sucesso nesse intento, mas a nossa espécie acabou por suplantar a esta última como a mais apta e inteligente para prosseguir a jornada, a incorporando em eventuais cruzamentos ou até aniquilando-a. Adaptação.

O aumento da inteligência humana, propiciada pela capacidade plástica de nosso cérebro, supõe-se ter sido estimulada por consumo de proteína animal. Para isso, o homem passou a caçar os outros seres viventes que o cercavam, chegando a extinguir algumas espécies contemporâneas de então, como o Mastodonte. Consequentemente, se hoje em dia podemos escolher entre ser onívoro ou abster-se de não participar ativamente da cadeia alimentar, preferindo o Vegetarianismo, como eu optei em determinada época da minha vida, terá sido simplesmente porque construímos uma capacidade ímpar de julgarmos e escolhermos o melhor para nós, graças a um nosso antepassado ousar enfrentar e matar outros animais para comê-los. Assim, ampliamos a nossa quantidade de ligações neurais, possibilitando-nos o domínio sobre a Terra e de tudo que caminha sobre ela. Superação.

Civilizações se ergueram e se desmoronaram, da África à Europa, da Ásia ao Oriente Médio e até na América Pré-Colombiana, com Maias, Incas e Astecas, estas cruelmente especializadas em sacrifícios humanos oferecidos aos deuses. Quando os portugueses e espanhóis invadiram esta terra, aproveitaram-se das várias animosidades existentes entre as diversas tribos aqui estabelecidas, dominaram o território, mesmo sem a presença massiva de homens. Se a sociedade naturalista dos indígenas era assim tão evoluída, porque sucumbiu tão facilmente ao oferecimento de bugigangas e destilados? Se fosse moralmente assim tão capacitada, porque se ofereceu tão ingenuamente à imolação religiosa levada adiante por catequizadores supostamente bem intencionados e não o contrário? Ainda assim, os que sobreviveram á escravidão e às novas doenças, acabaram por adentrar pelo sertão ou acabaram por miscigenar-se aos invasores, formando um povo diferente, que viria a adotar pelos dois ou três séculos seguintes o Tupi-Guarani como língua usualmente empregada no dia a dia.  Acomodação.

Por essa perspectiva, eu creio que devemos aceitar que nós, seres humanos, sempre evoluímos entre os escombros de construções precárias e de corpos dados á sanha do conquistador de ocasião. Nossa aptidão deverá o de sempre buscar a luz no caminho, tentando fazer uma verdadeira revolução pessoal que nos fortaleça a ponto de resistirmos eticamente aos assaltos perpetrados pelo egoísmo e então chegarmos ao equilíbrio entre Corpo e Espírito. Revelação.

A chamada “Modernidade nome dado a um processo atual, portanto, é circunstancial. Foi moderno o homem sair da África rumo às outras terras para sobreviver; foi moderno o Homo sapiens sobrepujar ao Homem de Neardenthal, por sua adaptabilidade ao meio; foi moderno o surgimento de civilizações que dominaram a outras, bem como foi moderno as suas quedas; foi moderno o homem cruzar os oceanos e chegar às praias ensolaradas onde os seus habitantes não previram que ali estavam os seus algozes; sempre foi moderno o homem escravizar a outros homens; sempre foi moderno o homem explorar a força de trabalho de outros homens, em seu próprio benefício. Mas o que pode realmente ser chamado de suprema modernidade, acima de todas as coisas, em todos os tempos, e faz com que o homem transcenda a sua humanidade é o ato de perdoar a outro homem, apesar do suposto mal imposto a ele por seu próximo, e ainda assim amá-lo, apesar disso.

Perdão pela Modernidade.”

Ciúme*

Bethânia, mais próxima e Indie, em seguida, posicionadas para me verem na casa da minha irmã, Marisol.

Ciúme, o seu nome é Maria Bethânia. Quando começo a acarinhar as outras, ela logo se põe a protestar veemente! Chega a morder a minha mão e atacar fisicamente as demais do grupo, não importando o tamanho dos alvos, diante de sua contrariedade desmedida!

Quando quero chamar a sua atenção ou quando a chamo e ela não me atende imediatamente, uso sempre o expediente de passar a mão pelas cabeças das amigas, o que é suficiente para transformá-las em oponentes, vindo em nossa direção, a enfrenta-las, ainda que saiba que são maiores e mais fortes do que ela.

De onde deriva esse ciúme, afinal? Sou aquele que não deve dividir a minha dedicação e zelo com mais ninguém? Ela se sente minha proprietária? Um sentido de territorialidade natural exacerbada talvez explicasse a sua reação, no entanto, o seu cuidado não se estende tão fortemente à sua cama nem ao pote de comida, aliás, quase nada.

A contrariar o fato aceito de que somos a nós a possuí-los (a determinar-lhes o destino), quem decide levar a cabo os melhores cuidados a esses seres especiais, sabe que somos nós a sermos possuídos por eles. Será que chegam a ter consciência que seja um pecado sério dispensar atenção a mais alguém além deles, da família dos canídeos e de outros seres humanos?

O meu desejo de expressar em palavras as minhas suposições foi motivada por um episódio. Quando fui à casa da minha irmã, que mora ao lado, logo na entrada acarinhei a Vitória e a Dominique. Qual não foi a minha surpresa ao ouvir um latido lastimoso vindo da minha varanda. Lá estava a Bethânia, a demonstrar o seu desacordo em relação à minha afetividade por aquelas que conheço há anos! O seu olhar era quase desesperado! As suas orelhas eriçadas quase tocavam o céu!

Maria Bethânia foi resgatada da rua por uma das minhas filhas humanas a pedido da minha mulher. Ela a viu a correr sem rumo por nossa vizinhança e quase entrar debaixo de seu carro, condoeu-se de sua condição. Era um sentimento novo para ela, que nunca foi tão achegada aos cães. A experiência de acompanhar a Dorô em sua jornada de combate ao câncer que finalmente a vitimou, lhe trouxe a inesperada percepção da imensa conexão conosco desses seres únicos.

O meu interesse pela origem do ciúme de Maria Bethânia é quase antropológico – no sentido que o cão é um ser que tem, ao longo dos tempos, adquirido comportamentos assemelhados ao do Homem. De modo geral, além da inteligência básica, são seres-repositórios de emoções e sentimentos puros e sem medidas. Amor e ciúme, sem dúvida, estão entre eles. Nos cães, a força da irracionalidade se expressa, então, de maneira mais acintosa. Amor, ciúme, posse – onde começa um e termina outro?

Há a eterna discussão se o amor é uma construção sociocultural ou uma condição intrínseca aos seres humanos; se a sua base é espiritual ou físico-química; se é algo substancial a ponto de ser verificado expressamente ou uma ilusão mental… Creio que a ligação que desenvolvemos com os outros animais, principalmente os mais próximos de nós, “aculturados”, possa dizer muito sobre a própria condição humana. Talvez possa vir a desvendar se amor e as suas emoções subsidiárias, como o ciúme, revelá-nos animais básicos ou, basicamente, que somos animais confusos demais para sabermos o que sentimos, quando sentimos…

*Texto de 2017, constante de meu primeiro livro de crônicas — REALidade — lançado pela Scenarium, no mesmo ano.

Dente De Leite

De 1961, aos 61…

Fazia cerca de quatro anos que não ia ao dentista. Considerando o tempo fracionado em antes e depois da Pandemia, dois anos sem comparecer ao lugar onde já sofri muito. Mas não me lembro das dores que senti, então é como se eu fosse testemunhar algo que aconteceu com outra pessoa. Assim como me esqueço das dores de minhas unhas do pé encravadas (hoje, domadas), dores de cabeça (chatas, mas relevadas), de estômago (uma delas se tornou uma gastrite hemorrágica), contusões no futebol.

Aliás, parece que joguei futebol em outra vida. Parei quando os meus contemporâneos deixaram de jogar ou de me chamar para as peladas. Nós finais de semana, normalmente estava em atividades profissionais e nem sempre podia estar presente. Ainda sonho que jogo futebol, quando normalmente não consigo chutar, correr ou sequer fazer um passe correto. São quase pesadelos se eu não percebesse a tempo que fosse sonho e forçasse acordar para não sofrer mais. Tenho por mim que fomos “criados” – nós, seres humanos – para sermos felizes, tomando a mim mesmo como exemplo. A memória claudicante ajuda…

O incrível é que carrego uma melancolia da qual não quero me desfazer. Além de me martirizar por coisas que não posso controlar. Eu me pego muitas vezes surpreendido por circunstâncias que, de tão óbvias, até crianças percebem de antemão. Uma forma de ingenuidade doentia. Tento controlar minhas palavras e ações para que não diga ou faça algo que acabe por ferir alguém, mas acontece. E como dizia a minha mãe, o “Inferno está cheio de bem-intencionados”.

Outra faceta de meu comportamento é começar por um assunto e desmembrá-los por outros tantos. Tenho outras várias distorções de comportamento. Uma delas é de não avaliar ou julgar ninguém de antemão. Ainda que dê muito valor à minha intuição. Por presunção ou desejo, cada ser vivente que observo considero que tenha uma história para contar. Antes que possíveis personagens, são pessoas que merecem consideração como tais. Não importando o status aparente que carregam. Bem sabemos que fatores exteriores e aparência não definem caráter de quem quer que seja.

Estava contando que fui à dentista. Na avaliação feita pela Drª. Ana, além do dente quebrado no fundo de meu “bocão” (um siso, que decidi retirar), ela voltou a mencionar o meu dente de leite. Sim, vindo à luz em 1961, às 2h manhã de uma segunda-feira, portanto, completando hoje 61 anos fora do útero de Dona Madalena, carrego um firme e forte dente de leite, logo à frente da minha arcada dentária. Ao comentar sobre ele, aduzo que morrerá comigo. Como disse, costumo viajar por temas supostamente simples e comecei a especular se não seria eu a morrer com ele. Sei que os dentes e ossos resistem muito mais tempo materialmente, calcificados e sem vida.

Os dentes de leite ou decíduos fazem parte da primeira dentição e decididamente “nascem para cair”. A função é ocupar espaço na boca e ajudar a criança nas primeiras mastigações. Começam a cair por volta dos 6 anos de idade, ou seja, o meu dente de leite de estimação resiste há dez vezes mais anos do que o normal. A sua composição é menos mineralizada do que os dentes permanentes. Deveria não suportar estar em minha funérea arcada dentária por muito mais tempo. Isso, se não fosse a minha pretensão ser cremado. Mas como não estarei consciente para me auto incinerar e nem pretendo fazer uso do suicídio pelo fogo, talvez me façam juntar o meu corpo ao do meu pai (só dessa maneira para estar ao seu lado) no jazigo da família.

Para quem ache estranho a falar de morte de maneira tão natural é porque sei que sendo a medida real da natureza humana, a morte torna a vida minimamente suportável e intensamente misteriosa. Para quem versa sobre a existência como eu, não faço segredo do quanto a vida é um presente em que o Presente deva ser vivido com toda a força, apesar do Passado nos trazer surpresas todos os dias. Desejo viver plenamente meu último quarto de vida. O Futuro é hoje.

Carta À Vitória

Vitória Gabrielly — Foto: Reprodução/TV TEM

“Enquanto boa parte do país vibrava com os jogos da Copa do Mundo em junho de 2018, na tarde do dia 16 daquele mês, Araçariguama, no interior de São Paulo, entrava em luto pelo assassinato de Vitória Gabrielly. A família tenta manter a memória da adolescente viva em ações sociais voltadas para crianças no município.” (G1)

Depois de dois anos da época do crime, eu cheguei a escrever um primeiro parágrafo que abandonei até há dois dias, quando surgiu uma frase nas lembranças do Facebook: “Vitória… Ela lutou! Às minhas filhas. Esta é uma homenagem às mulheres, mesmo às ainda tão meninas”.

Vitória, viver requer coragem, já disseram por aí… Eu passei poucas e boas tentando sobreviver durante todo esse tempo de Pandemia. Produzo conteúdo sem a perspectiva de ser visualizado sequer, ainda que deseje. Eu me sinto como os primeiros homens e mulheres que “produziam conteúdo” nas cavernas que viviam, apenas por desejo de expressão. Nunca imaginaram que milhares de anos depois suas obras fossem resgatadas como registros históricos. Igualmente, na Idade Média, uma igreja poderia demorar séculos para ser concluída e centenas de anónimos produziam arte sem terem seus nomes colocados na História. O sentimento de “aparecer” em meio a tantos outros foi ganhando tanta projeção que muitos se perdem pelo caminho e fazem qualquer coisa para isso.

Aves de rapina humanas sobrevoam as presas para apanhá-las desprevenidas quando estão mais fragilizadas. Algumas atacam de frente, com bicadas afiadas a desferirem golpes certeiros no coração. Outras, são mais sádicas. Preferem destilar veneno em forma de palavras jogadas à esmo, atinja a quem atingir. É comum dizerem que fazem isso em nome de algum propósito de teor moral edificante. Ah, a moralidade dos imorais! O pior é que além de faltar solidariedade, empatia, senso de identidade humana com o outro humano, no mínimo, alardeiam estarem corretos em seus posicionamentos. Que destruir uma vida em nome de um coraçãozinho na rede é muito mais importante do que qualquer coisa. Coraçãozinhos se multiplicam – esses predadores se alimentam de coraçãozinhos vermelhos-sangue – e quando sentem o cheiro de sangue se tornam cada vez mais vorazes na caçada à serviço de suas vilipendias. Mencionados, hiper dimensionados para além de sua pequenez, ainda que sejam citados com raiva ou até com ódio, creem que isso é o mais próximo de se sentirem amados.

Essa distorção dos reais valores que deveriam reger a nossa convivência se espraia por toda a sociedade humana, de tal forma que fica difícil acreditar em gente. Sabe, Vitória? Você lutou. Quis viver. Tentou gritar, foi impedida. Foi morta. Mas venceu. Devo acreditar nisso. Você, como tantas meninas, Beatrizes, Klaras, Gabrielas, Patrícias, mulheres, mais novas e mais velhas, são atacadas por serem mulheres. Mas tudo se torna pior quando uma mulher age como um macho escroto e promove ataques contra mulheres. Essa ausência de sororidade é quase como se algo tivesse sido extirpado da personalidade feminina que carrega.

Em benefício da dúvida, acredito que talvez para se defenderem em um mundo de homens, absorvam seus piores predicados para se igualarem em oportunidades de trabalho e protagonismo. Quando justamente a força da mulher para mim é indiscutível. Fomos, como muitos meninos e meninas como eu, criados praticamente apenas pelas mães, como tantas da Periferia, mas não apenas. A alienação parental é uma prática comum em muitas famílias. Nas mais ricas, os homens acham que pagando a terceiros o cuidado da prole já é suficiente.

Chegamos em um ponto, no entanto, em que uma mulher não precisa mais reproduzir para ser vista como uma mulher completa. Essa imposição de dedicar parte de sua vida a gerar vidas não é mais necessário em um mundo que precisa se preocupar com a ocupação desenfreada de nossas crianças em detrimento das crias dos outros seres que ocupam o mesmo planeta. Para que a mulher ganhe a autonomia necessária que venha a promovê-la como uma pessoa igual ao homem, ela tem que assumir o seu corpo como sendo dela mesma. Procriar deve ser uma decisão pessoal. É incrível que para mais da metade da população mundial, não tenha havido um definitivo decreto de libertação. Que a mulher dirija a sua vida da maneira que lhe aprouver e que torne o mundo mais equilibrado de tal maneira que superemos a dor de vê-las assassinadas, vilipendiadas, marginalizadas por serem mulheres. A Vitória será de todos nós, seres humanos.

Obdulio Nuñes Ortega