03 / 12 / 2025 / Carta Ao Velho Que Sempre Fui

Eu nasci velho. Banguela, meu sorriso de menino era de quem suspeitava que as coisas aconteceriam como se fosse uma reprise. Eu, quando comecei a crescer, encarava como se vivesse um dèjá-vu diário. Não era incomum que me imaginasse revisitando situações já vividas. Quando novo, já havia decidido não me casar. Não queria participar de um jogo de cartas marcadas, mesmo porque nunca fui bom em carteado. Aliás, pouco aprendi a viver e a jogar. Cheguei à vida adulta totalmente despreparado para viver sob as regras de um homem maduro. Aliás, quando me vejo em situações de adulto mais velho, como aquele que estou a me tornar, percebo que sou mais sensato do que os que jogam sob as regras do Sistema. A medida é não passar por cima das pessoas para me sentir melhor, como é comum acontecer frequentemente. Tanto no trânsito, quanto nos espaços que frequento como cidadão. Ser homem deveria ser uma vantagem neste mundo, mas como me envergonho muitas vezes de pertencer a esse gênero, tento passar despercebido como tal. É claro que sendo alguém que não se permite deixar de ver as degradações de nosso País, protesto, escrevo textos, converso a respeito, me coloco como antípoda desse processo degradante sob o qual vivemos. Mesmo que soubesse que dificilmente as circunstâncias mudassem radicalmente — estudante de História desde sempre — já tive esperança de que mudássemos de rumo, mas o animal humano não consegue deixar de ser autodestrutivo. É bem possível que essa capacidade nos leve à extinção. O pior é carregar conosco todos os outros seres que compartilham o planeta como residência. Eu sei que podemos desejar nos matar. Já passeei por essa trilha. Sei o quanto podemos visitar a escuridão e o desejo (mas já não mais) de cessar tanta dor.

Registro de 2019, com a presença de Cheetara.

04 / 08 / 2025 / BEDA / O Dia Seguinte

Tentei me lembrar do dia seguinte em que pela primeira vez estive com uma mulher, a própria mulher com a qual vim me casar. Ocorreu há 38 anos antes e estava a dois meses de completar 27 anos. Certamente sou um caso raro de homem que se preservou até encontrar alguém com quem quisesse ficar. A história por trás de ter deixado de ter experiências sexuais anteriores é plena de oportunidades que evitei que acontecesse. Os motivos foram tantos quanto subjetivos, alguns que até esqueci, mas o maior era o medo que eu tinha de me envolver e envolver outra pessoa com todas as minhas idiossincrasias, devidamente consideradas fora do comum. No dia seguinte estava frustrado com o meu desempenho na ação propriamente dita. O que buscaria resolver com uma maior assiduidade na prática. Claro que isso acabou por desencadear na notícia da gravidez da Tânia. Usávamos a chamada Tabelinha, que deu certo por três meses.

A minha expressão pessoal era avessa à realidade imediata das pessoas com as quais convivia. Tinha comportamentos esquisitos, ouvia músicas incomuns como Jazz ou instrumental clássico e menos fora do comum como a MPB de Caetano, Chico, Gil, Jards Macalé, Ivan Lins, Djavan e outros tantos alijados da realidade da Periferia. Tinha o hábito da leitura compulsiva. Fazia o Curso de História, na USP, mas planejava passar para o de Português já de olho na possibilidade de me tornar escritor. Certamente seria Professor, mas ao mesmo tempo vivia em choque com o Sistema que impõe um “jogo de cartas marcadas” no qual que não queria ingressar. Mas como já disse Vinícius: “a vida tem sempre razão”.

Em três meses, a minha vida tomou um rumo diverso do que havia imaginado, mas que hoje abençoo. Aliás, se há uma postura que não adoto é do jogo do “Se“. Se isso ou aquilo tivesse acontecido deixo apenas para as histórias que crio como escritor, somente como expediente no desenvolvimento de temas mais intricados, dadas as “realidades” possíveis. Cheguei a este quadrante satisfeito com o rumo que acabou por encetar a minha vida.

18 / 07 / 2025 / Mão De Obra

Sou escritor. A minha personalidade é de alguém que cogita escrever para poder estabelecer uma relação entre o feito e o dito. Gosto do trabalho braçal-manual porque me “relaxa”, no sentido de que os pensamentos pelos quais sou atravessado se direcionam para “outro lugar”. Não sou adepto apenas de tarefas ou atividades que envolvem o meu trabalho, eminentemente físico, mas não deixa de ser intermediado por processos mentais que são necessários em qualquer movimento humano. No meu caso, proporcionamos, meu irmão e eu, condições técnicas ideais para a expressões artísticas e outras que envolvem um palco, púlpito ou cenário — teatro e outros espaços — atores, palestrantes e cantores.

Outro gosto que cultivo é do trabalho caseiro — o mais intenso e difícil de ser feito pela multiplicidade de fatores. Varrer, lavar louças e roupas, estender para secar, recolher, passar, arrumar o espaço, deslocar móveis, limpá-los. Num eventual jardim que possamos ter e eu tenho, regar as plantas, preparar o solo, cuidado com as podas, replantio, adubação, controle de pragas ocasionais também é algo que gosto. Quando novo, acalentei a ideia de me tornar dono de um sítio autossustentável. Mas há tarefas as quais prefiro em relação a outras — lavar louça e varrer o quintal se configura quase em momentos de meditação.

O ser humano, no desenvolvimento das sociedades, acabou dividir tarefas e estabelecer estamentos sociais para separar quem faz determinadas tarefas lhes conferindo valores diferenciados — das mais nobres a menos, além do uso de palavras para designá-las divididas como dignas enquanto outras nem tanto. Ainda que saibam que sem os que as realizam atividades essenciais e outros que são beneficiados por elas estabelece uma relação de poder destes que detêm o poder econômico, para aqueles em forma de recompensas normalmente aviltadas para baixo. Criando clara dependência mútua, mas que é dominada por quem é servido.

Eu não queria, quando mais novo, me envolver com o Sistema — trabalhar, casar, ter família — encontrar uma posição relevante na Sociedade. Apenas, era o meu plano, caminhar a esmo, me tornar um viajante sem rumo, sem lugar para chegar. Envolvido com as religiões orientais, meu objetivo era transcender o corpo, fazer um percurso que não precisasse criar liames. Não aconteceu. A mão mostrada acima é a mesma de quem se casou, criou três filhas empoderadas, trabalhou e trabalha para se manter produtivo e que ainda tem desafios a realizar. Sem deixar de transcender a realidade imediata.

1º / 04 / 2025 / BEDA / Inteligências & Mentiras

Há muita controvérsia a respeito da Inteligência como algo mensurável — usam-se métodos para identificar pessoas mais e menos inteligentes através de testes como Q.I., por exemplo. Pelas experiências comportamentais percebeu-se que ser “inteligente” não era suficiente para desenvolver relações saudáveis de convivência. Começou-se falar sobre Inteligência Emocional, que seria a aptidão de alguém que mesmo sem ser capaz de solucionar problemas intricados, consegue lidar com situações complexas no contexto social. Assim como a Inteligência Prática, que se dá quando as pessoas conseguem ter habilidades que as qualificam para a realização de tarefas cotidianas pertinentes.

Quaisquer dessas Inteligências podem ser desenvolvidas através de estudo aplicado e/ou treinamento, supostamente. Requerem condições básicas como um bom ambiente (equilibrado) de aprendizado, aplicação, força de vontade para estudar para que um ser humano alcance alguma excelência. Porém, com o advento da Inteligência Artificial, encontramos a situação inédita de que um processador de dados produzidos por seres humanos que mimetizam o seu comportamento em respostas dadas quando consultados. Não é difícil acontecer de haver desenvolvimento de um vínculo emocional entre a pessoa que utiliza a I.A. e o aplicativo. Até é difícil deixar de “humanizarmos” algoritmos e sequências de signos estimulados por nós a responder sobre nossas demandas.

Quando encontramos aparelhos como Alexa que “conversa” com seu interlocutor, tendemos a estabelecer parâmetros de afeição com algo tão presente como seria um amigo em momentos de solidão. Em “Ela”, de 2013, a personagem Theodore, um escritor solitário, leva ao patamar de envolvimento amoroso a sua relação com o sistema operacional, sendo “virtualmente” correspondido. A afetividade entre as pessoas parece estar se aproximando de uma zona cinzenta em que a desconfiança, a insinceridade, a precariedade da verdade como baliza dos relacionamentos, em que as emoções são distorcidas, os sentimentos são extremados e as paixões são doentias.

Correu o Mundo que a A.I. do X, ao ser questionado sobre o principal divulgador de “desinformações” — eufemismo para “mentira” — ao que Grok respondeu que o seu criador, Elon Musk, é o maior “mentiroso” do X, através de aferições de seus seguidores. O que talvez possa até ser uma espécie de “boa propaganda” de sua capacidade de isenção. Para aquele que foi acusado será mais uma chance de ganhar muito dinheiro. A sua exponencial inteligência para operar dentro do Sistema que é, basicamente, a utilização de todas as ferramentas possíveis para o enriquecimento de quem o manipula, o torna admirado por quem reza por essa cartilha opressiva.

Aliás, a sentença de Goebbels de que “uma mentira dita mil vezes se torna uma verdade” acaba por ser a norma do comportamento de muitas pessoas através da facilidade de conexão ao mundo virtual, acessado por qualquer um que esteja conectado à imensa rede da Internet. Versões de muitas verdades tornam a apreensão da realidade um tanto fugidia por boa parte das pessoas que, de certa maneira, já carregam convicções que assemelham ao àquela falsidade. Adotando aquela verdade, que já faz parte de sua compreensão de mundo, ainda que não tenham provas óbvias.

27 / 02 / 2025 / Meu Povo

“Talvez eu não consiga estar em outro lugar que São Paulo, aqui no Brasil. Por aqui, já estive em muitas cidades, mas ainda não consegui me ver vivendo fora desta loucura, principalmente em termos profissionais.

A Europa, autointitulada de Velho Mundo, alcançou a atual qualidade de vida tendo 2 mil anos a mais de História e por meio da exploração da riqueza do Novo Mundo, Ásia e África. Muitos europeus, conscientes desse fato histórico, tentam fazer um belo trabalho na área social, através de organizações não governamentais que atuam na América do Sul, África, Ásia e algures.

Na América do Norte, temos os Estados Unidos, que seriam uma exceção, por sua própria formação, em que os seus colonizadores fugiram da Inglaterra por incompatibilidade religiosa com a realeza para criar um novo país e permanecer definitivamente na terra.

Para colaborar, a religião desses colonizadores americanos preconizava que a riqueza angariada era sinal de benção divina, bem diferente dos colonizadores portugueses e espanhóis, de formação católica que pregava para seus fiéis que o reino dos céus pertencia aos pobres, enquanto a elite extraía o máximo de benefícios, para que ricos voltassem para a Metrópole nobilizados, inclusive pela compra de títulos.

Esse comportamento predatório perdura até hoje, em todos os níveis da população, de modo geral. Dê a oportunidade de um despossuído alcançar uma benesse e ele irá brigar com unhas e dentes para mantê-la, passando por cima de qualquer ética. A minha terra é linda, mas o meu povo…”.

O texto acima foi escrito num momento de amargor, muitos anos antes. Talvez há 10 ou 15 anos. Não que eu tenha mudado muito a minha ideia sobre isso, mas creio que não deva deixar de tentar mudar a realidade em nosso entorno para que as coisas não fiquem ao léu, ao gosto dos poderosos comandando um Sistema predatório. Sem essa crença, nunca construiremos um país melhor. Por fim, caso eu pudesse, me mudaria para uma cidade no Litoral, ainda que saiba que seria um dos prováveis primeiros locais a serem atingidos pela subida do nível do Mar devido à crise climática.