Uma pipa ficou pendurada na beira do telhado da varanda da minha casa. Estava inteira, mas com o tempo, rasgou aqui e ali com o movimento do vento ocasional. Vê-la presa, qual um pássaro que se debatia amarrado a uma armadilha, fez com me apiedasse e a retirasse de onde estava. Não era um artefato de beleza especial e decidi destruí-lo. Cometi o erro de virá-lo e perceber os detalhes de sua confecção – as varetas bem-posicionadas, as linhas de costura as alinhando devidamente, o papel de seda delicadamente colado a elas. Quem fez a pipa, além da habilidade, supus que tenha juntado sua energia às forças antigravitacionais da imaginação que antecipou vê-la singrar o mar dos céus – uma obra feita para voar.
Isso me inspirou um poema que colocaria mais ou menos nesses termos, mas o voo da pipa mudou a sua trajetória quando publiquei a foto. Uma amiga me questionou se sabia dos últimos acontecimentos referentes a acidentes graves provocados por pipas. Na verdade, não são as pipas que devam ser condenadas, mas quem as utilizam com linhas besuntadas de cerol – uma mistura cortante de pó de vidro e cola de madeira – para colocá-las ao alto.
A intenção de quem faz isso é, supostamente, se defender de outras pipas igualmente preparadas para cortar as linhas adversárias. De diversão inocente, a atividade inventada pelos chineses há milênios de anos se transformou em luta aérea. São empinados pipas como se fossem aviões da Segunda Guerra em movimentos ousados – mergulhos, rasantes, embicadas – para defender os seus territórios sobre os Oceanos de ruas.
Tudo bem, se essas pipas não descessem ao nível da terra dos mortais e provocassem acidentes fatais ao cortar pescoços de motociclistas, ciclistas e pedestres. Nos “menos” graves, há casos de mutilação de dedos. Além de haver relatos de acidentes com aeronaves e paraquedistas. Tudo é muito triste, se considerarmos que o espírito de competição engendrado pelo Sistema sob o qual vivemos não estimulasse aos homenzinhos “ganharem” o espaço azul como únicos soberanos.
Não foi por outro motivo que nas oportunidades que surgiram de empinar pipas com as minhas filhas, evitei. Imaginava que como não me defenderia usando “cortante”, a cada uma que colocasse no alto, ocorreria uma perda para a distância, lenta e decepcionante. Outra coisa sobre o qual Farfalla me chamou a atenção, é que chamava o objeto em discussão pelo artigo masculino – “o” pipa. Conjecturei que talvez fosse uma imposição inconsciente do Patriarcado recebida na meninice sobre algo de tamanho poder – voar para além do corpo.
Tenho por mal hábito discorrer sobre tudo e nada. Produzo elocubrações confusas e rasas, em muitas oportunidades. Em outras, viajo para fora do contexto ou acerto sem querer em coisas mais profundas e interessantes. Feito um pescador, tenho recolhido antigas publicações antes que sejam deletadas pelos seres invisíveis do Senhor Algoritmo ou seja lá quem for quem comande a Rede. Na época de BEDA, na falta de ideias novas, essas recordações vem bem a calhar.
PRISIONEIROS (2016)
Quem está solto? Quem está preso?… As calopsitas passeiam pela gaiola a se sentirem seguras, mesmo com a aproximação de um suposto predador. As plantas do jardim estão cercadas para que elas não sejam prejudicadas por invasores. Da mesma forma, nós nos imaginamos protegidos por grades nas janelas, portas e portões de ferro… O que diferencia uns prisioneiros de outros? O que é liberdade?…
LUNAR (2016)
Pode ser a última Lua… A última vez que atua… Pode ser a sua última noite… A derradeira hora do açoite… O último abraço e o colo quente… O último suspiro e o beijo ardente… A última chance de perdoar… A última oportunidade de amar…
PRINCESA ISABEL (2011)*
Vista da Praça Princesa Isabel, onde vemos o Duque de Caxias estacionado com o seu cavalo e seu braço em riste com uma espada, para sempre. À esquerda, abaixo, um catador de papel, figura onipresente na região e, mais ao longe, no horizonte, Cristo, no topo do prédio do Colégio Sagrado Coração de Jesus, observa o domingo na Cracolândia. Bem ao fundo, temos o perfil da Serra da Cantareira — Em registro fotográfico de Março de 2009.
*Atualmente, a Praça Princesa Isabel está cercada por todo o seu perímetro por grades. Meses antes, estava ocupada por um acampamento de pessoas em situação de rua, viciados e traficantes de drogas, num amálgama que demonstra a evidente falha em solucionar as contradições do Sistema.
Ontem, de manhã, fui ao supermercado para realizar as compras finais para a ceia de Natal. Pensei em chegar bem cedinho, antes das oito horas da manhã, tentando driblar o caos que costuma reinar nesta época do ano. O paulistano age como se fora manada e é óbvio que muitos tiveram a mesma ideia. O movimento era intenso.
Para evitar de passar com o carrinho por caminhos congestionados, costumo deixá-lo nos corredores menos movimentados e busco o que quero o mais rápido possível. Ao passar por uma das gôndolas, reparei em um senhor que se postava diante dos pernis, com ar grave, óculos puxados para baixo no nariz, observando os preços e as especificações, atentamente, com uma lentidão totalmente discrepante em meio à exasperação das pessoas em sua volta. Mãos para trás, o homem estava só e sua atitude o isolava ainda mais da turba em seu derredor.
Fui e voltei para cá e para lá e, vez ou outra, cruzava com o mesmo senhor que, com o irremovível ar circunspecto, passeava sem carrinho a observar os produtos em suas baias. Parava, se detinha a examiná-los, voltava a andar de forma contida, olhando para os outros clientes, normalmente famílias inteiras que caminhavam em grupo, apenas para desviar os seus passos do trajeto irregular que percorriam.
Eu e a Tânia nos separamos para agilizar as compras e, ao esperá-la, continuava a perseguir com o meu olhar aquele consumidor que destoava do ambiente, já que ele não pegava nada, apesar de parecer estar interessado em muitos produtos. Acompanhá-lo, passou a ser o meu passatempo por um momento. O homem só, sem carrinho ou com alguém que o ladeasse, deixou-me desconcertado. Parecia autossuficiente o bastante para demonstrar que não precisava de ninguém que o acompanhasse.
Ao deixar de comprar qualquer item, o homem só parecia dizer que abria mão da Sociedade de Consumo. Que ele precisasse estar no meio de tanta gente para reafirmar a sua solitude e independência continua a me consumir o pensamento, como se fora um espírito de Natal (do Passado, do Presente ou do Futuro?) a denunciar o meu conformismo em obedecer aos ciclos impostos pelo Sistema…
*Texto produzido em uma véspera de Natal de um ano em que as “crianças” ainda estavam em casa, em tempo indeterminado…
Imagem da matinê de terça-feira de Carnaval de 2023
Terminado mais um evento, neste caso, a matinê de terça-feira de Carnaval, começamos a desmontagem do equipamento, item por item. Exitoso, esse trabalho é feito com calma e por etapas. Toda a estrutura é formada por equipamentos como caixas e mesa de mixagem de som, amplificadores, pedestais e microfones, cabos de conexão de sonorização e iluminação, estruturas para os spots de luz e outros tantos detalhes que compõem a complexa aparelhagem que é utilizada para efetivar uma apresentação que busca levar entretenimento e alegria ao público que, mais do que espectador, é participante da festa num evento como é o baile de Carnaval. O clube no qual cumprimos nossa função de prestadores de serviço nesse setor que foi um dos mais prejudicados pela chegada da Pandemia de Covid-19 (por incentivar a aglomeração), ficava próximo a um dos logradouros mais procurados pelos foliões que esperam a passagem dos blocos de rua, um fenômeno cada vez mais popular em São Paulo. O ano 2023 como reinaugura o Carnaval, após dois anos de paralização.
Gosto da minha atividade, filha do circo mambembe — aquele que vai de cidade em cidade — montando e desmontando a lona sob a qual a vida se fantasia de espetáculo a ser admirado. Tenho consciência que passa por nosso manejo a melhor expressão do artista em suas múltiplas dimensões. O eventual sucesso que é obtido pelo músico, cantor, ator, bailarino tem embasamento em nosso esforço mais apurado. Ganho para isso, mas não me sentiria minimamente realizado se o evento que venha a realizar não vier a obter êxito, que é tradução da atuação do artista em aplauso — a moeda corrente mais importante para ele — ainda que também venha a ganhar financeiramente com isso.
Devido ao meu percurso pessoal, sei que não sou exatamente o tipo que seja visto a atuar nesse meio. Mas não sou o único “exemplar” do sujeito que tem uma formação de terceiro grau e goste de “por as mãos na massa”. Carrego um orgulho, que alguém poderia chamar de enviesado, de ser “peão”, ainda que do próprio negócio. Estar na minha posição me dá oportunidade para que possa observar a vida acontecer sem precauções de terceiros. Participo de festas em que o uso de “desbloqueadores comportamentais”, como bebidas etílicas, propicia o relaxamento do comportamento das pessoas em situações limites. Faço uso do meu posto de “observador social” para buscar desvendar os mecanismos por trás de certas atitudes. Festejar talvez tenha algo a ver com esgarçar a linha que separa o permitido do permissivo. Não é a situação que se observa numa matinê como as que fiz no domingo e na terça-feira. Nessas ocasiões, encontramos pais saudosos de suas juventudes tentando transmitir aos filhos a alegria que sentiam, em um ambiente controlado, se fantasiando, cantando, dançando. Ou apenas participando, se satisfazendo ao ver os filhos brincando inocentes entre confetes e serpentinas.
Após terminarmos a desmontagem, a operação a ser realizada é o de carregar o equipamento até o transporte. Havia duas opções: uma mais tranquila e rápida — levar com os carrinhos que dispomos os itens até o veículo que estacionaria a dez metros de distância — e a outra, mais demorada e longa, carregar cinquenta metros distante o equipamento até o portão de entrada. Normalmente, não pediríamos que o veículo fosse até a lateral do palco. Nesse clube, devido à movimentação do sócios, isso não é usual. Mas como durante todos esses dias de Fevereiro tem chovido bastante e o clube estivesse totalmente esvaziado, o meu irmão pediu para o porteiro que permitisse levá-lo até lá para que o equipamento não molhasse. A resposta do porteiro foi bastante emblemática: “Infelizmente, vai molhar”. Em outra ocasião, nesse mesmo clube, uma resposta de outro porteiro deu ensejo que produzisse um outro texto: “Novas Novidades“.
Em outros momentos, já discorri sobre os vassalos do Sistema que sofrem do que eu chamo de “Síndrome do Jagunço“. É aquele sujeito que prefere agir como déspota no lugar do déspota, que interpreta ao pé da letra uma orientação do Chefe ou, às vezes, executam apenas a uma insinuação feita à esmo. “Ordem é ordem”, já ouvi dizerem. A mesma sentença professadas por nazistas ao serem inqueridos sobre a matança que os levaram a eliminarem milhões de Judeus, na Segunda Guerra. Por sorte, a chuva diminuiu e pudemos carregar apenas com alguma dificuldade para impedir que certos equipamentos não ficassem muito molhados. Em certo instante, o porteiro ficou nos olhando de sua posição, há uns trinta metros. Parei o que estava fazendo e o encarei, com o véu da chuva leve a nos separar. Intimidado, voltou para a sua cabine.
Terminado o carregamento, fui até lá e o informei que estávamos prontos para deixar o clube. Sem levantar os olhos, respondeu com um “certo” incerto. Quando viesse, a minha intenção era lhe desejar uma boa noite de plantão e dizer expressamente: “Obrigado pela solidariedade!”. Não pude. Demorou uns dez minutos até que chegasse uma moça que nos abrisse o portão. Bem educada, nos orientou na saída do veículo. Agradecemos com convicção e voltamos para a casa.
“Junto aos nossos desejos de sermos bruxas, dentro de nós atua um inquisidor… um matador de diferentes. Um aniquilador de sonhos. Ao lado da puta que somos. Quem não vende o seu corpo e mente em troca de dinheiro?
Existe aquele que atirou a primeira pedra.
Ser contraditório, mentiroso e hipócrita é condição básica para sobrevivermos nesta sociedade. E, no entanto, não nos falta fôlego para vociferarmos contra o Sistema.
Estar aqui a denunciar nossa pequenez, não deixa de ser uma tentativa de não parecer um minúsculo ser. Não me excluo de todo esse processo em que morremos de vontade de matarmos o que não gostamos, como se não suportássemos o contrário.
Somos caçadores de bruxas. Ainda que filhos de bruxas. Queremos quebrar os nossos espelhos. Reproduzimos os nossos produtores. Produzimos podridões – amores malparidos.
Momento de devaneio, sonho com um mundo que aceite o irmão. Que aceite o mal, o identifique e o reverta. Que sejamos bruxas. Façamos uma poção mágica. Uma porção básica que contamine a escuridão de verdadeira claridade. Peito aberto, mamas e sexos à mostra, barriga prenha de filhos livres da maldição de sermos tão humanamente menores.