BEDA / Amor & Ser

Ah, o milagre do amor…

Eu, desde muito cedo, me acostumei a separar Amor de amor. Amor designaria aquele gerado sem segundas intenções, puro e autônomo, existente mesmo sem ser correspondido, mesmo porque é generalizante. O de fundo “romântico”, baseado no afeto mútuo, vive no raso das emoções, mais “fácil” de ser correspondido, assim como descartado. Origina-se na simpatia e expresso de maneira menos elaborada. Normalmente pede envolvimento físico, mas pode se colocar numa condição superior através da convivência. Também comecei distinguir Ser de ser, em que o primeiro significaria alcançar a plena capacidade de existir, Sendo. Neste caso, “ser” representaria a situação transitória da existência.

Quando falo do milagre do Amor, deve-se ao esforço que devemos fazer para ultrapassar as muitas barreiras que muitas vezes erguemos para conseguirmos desenvolver tamanha empatia a ponto de vir proporcionar sentimentos mais elevados. Para dificultar, entra em jogo as diferenças inerentes à nossa presença no mundo – que mais separam do que unem as pessoas. Muitas vezes, para darmos vazão ao amor que nos move intimamente, desenvolvemos relações mais profundas com outros seres que não os humanos. 

No amor romântico, assumimos formas relacionais que geram emoções alteradas, aflitivas, geradoras de conflitos entre as partes correspondentes. O sistema sob o qual a Sociedade se desenvolveu impede que seja diferente. É comum que não progridam, a não ser que o relacionamento seja reinventado de comum acordo. É algo que tem ganhado maior número de adeptos abandonar os arranjos tradicionais, buscando novos feitios que muitas vezes incorporam mais do que dois componentes no convívio mútuo. No entanto, dado ao aumento da violência entre os casais, principalmente do homem contra a mulher, têm-se desejado evitar uniões tradicionais, prioritariamente por elas.

Esforço maior ainda é saber o que seja esse tal de amor romântico. Aliás, sei. Que se resume em não saber de si. Acho que esse amor tem o papel de nos perdermos. Descobrirmos as nossas fraquezas, abaixarmos as nossas defesas, sofrermos os ataques do “inimigo”, nos rendermos ao sentimento. Poderia se dizer que não precisaria ser assim. Concordo, mas a intensidade tem tanto a nos ensinar. Sem ela, não vale a pena vivê-lo. Não amarmos com todo o ardor, nos desmontarmos, é um bem-vindo exercício de humildade. Podemos vir a morrer. Mas tenho por mim que renascemos melhores.

Muito recentemente, percebi que para Amar ao próximo como a nós mesmos, recomendado por um grande Avatar como mandamento precípuo, nos Amarmos é fundamental. Não pode haver correspondência sem que nos aceitemos com todas as nossas falhas. Sabermos que Somos, ainda que imperfeitos neste instante que são as nossas momentâneas vidas terrenas. Enfim, amar, apesar de tudo, é uma introdução a um movimento que abarca um sentido bem mais complexo, superior… enquanto não alcançamos o Amor.

Foto por lil artsy em Pexels.com

Texto participante do BEDA: Blog Every Day August

Roseli Peixoto / Claudia Leonardi / Bob F / Lunna Guedes / Suzana Martins / Mariana Gouveia

Pecinhas

Passei o sábado a resolver pequenos problemas de casa, junto com o Geraldo, um rapaz que me chama de senhor, apesar de lhe pedir que me chamasse pelo nome. A Lívia disse que era porque eu não quisesse parecer mais velho. Respondi que não me importava com isso. O que eu queria era estabelecer um tratamento que nos igualasse. Todas as vezes que ele vem em casa para fazer alguma obra, atualmente restrito à manutenção, conversamos bastante acerca das condições de trabalho e as atividades que envolvem o seu ofício. Procuro saber dos mecanismos de atividades que são básicas, mas muito mal remuneradas.

Tentando escapar do trabalho pesado da construção civil, Geraldo decidiu ser porteiro. Ficou apenas dois dias no emprego. Suas funções, descobriu, não se atinha somente em abrir e fechar o portão da garagem para carros e dos pedestres para as pessoas. Deveria receber pacotes, fazer listas para as serventes da limpeza, vigiar as crianças no playground, não demorar demais – dois segundos que fosse – para obedecer a alguma ordem dada pelos moradores e outros frequentadores. O acordado não havia sido aquele e o salário não valia a pena. Sujeito bem-intencionado, frequentador de igreja cujo pastor, ciente das maledicências do mundo, instrui aos seus apascentados seguir a palavra do Senhor, incluindo não aceitar a aceitar a equanimidade entre os gêneros, não consegue entender da razão de haver pessoas que o tratam como se fosse um anónimo, feito uma simples peça na engrenagem.

Tentei lhe explicar o processo da Escravidão como modelo de produção que perdurou por quatro séculos, impregnando as relações humanas de tal maneira que abraça as suas tramas invisíveis na alma do brasileiro. Poderia lhe falar do vazio afetivo que o Patriarcado causou aos homens, além do imenso mal causado à mulher. Entendo que talvez fosse demais para ele, mas não consegui me segurar. Ele me olhava desconfiado como a imaginar que eu estivesse totalmente rendido à patroa, na guerra declarada pelo controle absoluto de um ou de outra – como parecia encarar o casamento – em que o rei sente o poder ameaçado pela rainha.

Passamos boa parte do dia desde as 8h da manhã, a resolver o vazamento no quarto da Lívia, trocar uma torneira de jardim, uma mangueira rompida e a colocação de uma torneira elétrica na pia da cozinha. Os problemas que surgiram para uma tarefa e outra, foram as pecinhas – detalhes que faziam a diferença entre o sucesso e o insucesso na execução do trabalho. O veda-rosca, o conector de louça para a ligação elétrica, o extensor para se adequar o aquecedor entre a cuba e a parede, a torneira de duas esferas, o engate de mangueira flexível, a luva ¾ e o retentor ½ polegada, o selador de silicone – nomes extensos para pequenos itens.

Além dos grandes movimentos que devemos fazer como componentes da Sociedade para alcançarmos melhores relações humanas, temos que no propor à prática dos pequenos gestos, da palavra de apoio, do diálogo entre os membros de uma comunidade de semelhantes. Na experiência que teve no condomínio, Geraldo encontrou os típicos “senhores” que se aprazem em serem assim chamados. São pessoas que precisam rebaixar aos outros para se levantarem ao rés do chão. O funcionário, antes de um colaborador, é tratado como uma espécie de inimigo, alguém que precisa ser colocado em seu devido lugar – uma pecinha. Fundamental, mas que precisa se sentir desimportante para que o Sistema continue a sobreviver com o apoio inconsciente de quem dele participa.

Imagem: Foto por pawan pandey em Pexels.com

Arte (Ou Artifício) X Vida

A discussão da vez entre os intelectuais à esquerda e à direita diz respeito ao comercial da Wolksvagen veiculado a partir do mês de junho deste sagrado ano de 2023. Através da Inteligência Artificial, Elis Regina aparece rediviva cantando com a sua filha, Maria Rita. Quanto ao tema, aqui farei o papel de Advogado do Diabo, que consiste em contrapor os dois lados de maneira imparcial (ou quase).

Tirante o fato de que o filme publicitário teve a autorização da família da eterna cantora para ser produzido e publicizado, o efeito causado em uns e outros do público que o assistiu, variou da emoção em rever a sua cantora favorita atuante à indignação por “conspurcar” a imagem de Elis vendendo um produto, neste caso, veículos da fábrica alemã. Algo que, supõem, jamais seria feito por ela. Lembrando ao apoio dado ao Golpe de Estado de 1964 pela montadora.

Há outras razões. A Wolksvagen participou do movimento nazista na Alemanha e nunca deveria ser perdoada por isso. Creio que são os mesmos que escrevem em computadores desenvolvidos com a grande participação da IBM na sua formulação. Para quem não sabe, “a IBM, por meio de suas máquinas Hollerith e de sistemas de cartões perfurados, equipou a máquina burocrática que o regime nazista desenvolveu para prender e matar milhões de pessoas”.

Outro dado é que o uso da IA, através de Deep Fake – em que o rosto de alguém é “colado” a de outra – como ferramenta para o desenvolvimento da peça publicitária, roubando a identidade original. Nada que o Cinema não tenha utilizado desde o início para a criação das ilusões nas quais embarcamos com emoção. Ou premiando atores que se transmutam em personagens históricos. Ou usado como expediente para colocar um candidato à Governador numa cena de sexo e desaboná-lo. Comentário lateral, para certos grupos, isso o ajudou a ser eleito. Como também não é inédito o uso de filtros para mascarar defeitos físicos em fotos.

Outra questão levantada pelos quem reprovaram a propaganda é que a letra da bela canção de BelchiorComo Nossos Pais – era de posicionamento ideológico contrário ao status quo e que não deveria ser usada para vender algum produto. Deixaram de levar em consideração que o contraditório compositor (como qualquer grande artista o é) “se vendia” para continuar vivendo através de seus shows e discos e, portanto, estava inserido no Sistema contra qual proclamava.

Na letra da música há uma passagem quanto à vinda do “Novo”: “Você me pergunta pela minha paixão / Digo que estou encantado / Com uma nova invenção / Eu vou ficar nesta cidade / Não vou voltar pro sertão / Pois vejo vir vindo no vento / Cheiro de nova estação / Eu sei de tudo na ferida viva / Do meu coração…”. É uma composição complexa quanto ao entendimento do que queria expressar.

Ele usava muitas imagens em contraposições aparentemente opostas – o que muito me influenciou –, criando perspectivas que demonstram o quanto vivia o sentimento discrepante do poeta que queria expor o que pensava em contraponto ao meio que explorava a sua arte. Para o Marxismo é uma típica situação conflitante quanto aos mecanismos produtivos e as relações de produção.

Como prestador de serviço em sonorização e iluminação, fui chamado a participar de um projeto em que Belchior faria vários shows num circuito universitário, onde mantinha muito prestígio. Infelizmente, ele já não estava em um bom estado psicológico. Ele ou a assessoria pessoal dele, não concordou com o projeto. Não é difícil de entender o porquê de no final da vida ter despirocado.

Voltando à peça publicitária, eu me lembro de, ainda garoto, ter visto uma propaganda numa revista da bicicleta Monark. Nela, aparece uma bela moça com uma rosa desenhada no rosto, ao estilo do movimento Hippie. Fiquei indignado por terem utilizado um movimento contracultural para vender um objeto de consumo. Com o tempo, vim a perceber que o Sistema utiliza do surgimento de caminhos alternativos a ele para fortificá-lo. É quase como se fosse uma condição sine qua non de sua constituição encampá-los, ao mesmo tempo que aplacam a sua força original.

Para quem me acompanhou até aqui, talvez acredite que eu não apenas perdoo como louvo esse processo como ideal. Não, ao contrário, eu sou um inconformado com os caminhos que a Humanidade encontrou para chegar até este momento e que a levará consequentemente à extinção. A minha filosofia é utópica – o Anarquismo – ao qual muitos tentaram implantar com violência, a ponto dele se tornar sinónimo dela. O meu modelo de Anarquia propõe que o ser humano tenha consciência plena do uso da Liberdade em observância precípua do respeito ao outro. Mas não deixo de observar que as forças que se erguem contra o que acontece dificilmente serão suficientes para reverter o desenvolvimento de tempos sombrios à frente.

O último lance nesse jogo entre permissão e permissividade artística foi o acionamento do CONAR Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – por fãs de Elis, posicionados aqui como consumidores que vem a questionar se é ético ou não utilizar IA com o objetivo da propaganda, apontando questões sobre o “respeito à personalidade e existência da artista, e veracidade”. Questionam ainda que na propaganda da Volkswagen, há a possibilidade de causar confusão entre ficção e realidade para algumas pessoas, principalmente crianças e adolescentes. Creio que este último argumento não condiz com o costume da nova geração ao uso dos efeitos especiais virtuais.

Os Jogos Eletrônicos estão entre os de maior aceitação entre os jovens. Para eles, a realidade simulada é cotidiana e perfeitamente aceitável. De fato, desejável. Quanto mais “real”, maior preferência. Visionário, Belchior antecipou com as polarizações encontradas em “Como Nossos Pais”, o cumprimento do futuro: “É você que ama o passado / E que não vê / Que o novo sempre vem”. Para depois arrematar: “Nós ainda somos os mesmos / E vivemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos como os nossos pais”. Nossos filhos, não mais.

O que constato é que estamos vivendo mais anos, mas com menor tempo de vivência real. Prevejo que a polarização entre as várias questões aqui levantadas deixarão de ter razão de ser. Serão sem sentido porque estaremos muito mais pobres em riqueza cultural.

Visões De Mundo Ou Refúgios

Há exatamente uma semana, na CPI do MST, a Deputada do PL de Santa Catarina, Caroline De Conti, interpelou o Professor Universitário da UnB, José Geraldo, também Pesquisador Sênior Voluntário, sobre o método de invasão utilizado pelo Movimento Dos Sem-Terra. Juntos, protagonizaram o choque de dois mundos. A Deputada não perguntou, mas afirmou que havia um suposto esquema que perpetuaria que as invasões continuassem para manter atuante o movimento.  

O Prof. José Geraldo, mudando o nome de “invasão” para “ocupação”, explicou que a concepção que a Dep. Conti apresentava sobre o MST detinha uma visão recortada da realidade, a qual apreendeu historicamente dada a sua condição econômica-social bem diferente daqueles que reivindicam a terra para trabalhar, porquanto representasse justamente a parte ocupada. Ainda que a terra não produzisse, ainda que fosse apenas para especulação ou sem função nenhuma a não ser como bem cumulativo, a voz representante dos eternos senhores da terra, contrapunha que o que MST cometia era um crime.

Viralizou nas redes sociais o trecho em que o professor cita Otávio Paz sobre como os naturais do território ao qual Colombo chegou com as suas caravelas – invenções sem paralelo na realidade dos povos da futura América – não era perceptível a eles. Mal comparando é como a Teoria da Física Quântica – que dá ensejo à possibilidade da existência de universos paralelos. Mas sem precisar estudar tanto podemos perceber a criação de realidades paralelas em contínuos desdobramentos diante de nossos narizes tridimensionais, a partir de um ponto determinado. Principalmente quando observamos a discrepância entre as condições de vida entre ricos e pobres, engendrados pela mesma ideologia inicial.

Quase como se fizéssemos uma viagem numa máquina do tempo, continuamos a discutir situações que surgiram no Século XVIII, mas que no Brasil ainda ganha ares revolucionários, como na França da época. O que era tema candente, então, continua a instabilizar o mundinho daqueles que expandem para o concerto social atual circunstâncias criadas e mantidas pelo Sistema Escravocrata que moldou a personalidade do brasileiro médio. Senhores e escravizados convivem modernamente sem conseguirem ultrapassar de um lado e de outro os limites do Passado.

Na segunda-feira passada, assisti, sem conseguir desgrudar um minuto sequer os olhos da tela, ao filme protagonizado pela maravilhosa Dira PaesPureza. Retrata o sistema eufemisticamente chamado como “análogo à escravidão”. Sob os olhos vendados da Lei, as pessoas perdem autonomia ao serem criados laços de dependência insuperável, as mantendo presas às condições precárias de subsistência. Foi noticiado agora há pouco que, em Goiânia, bem perto da Capital do Brasil, um centro de reciclagem foi autuado por manter seus funcionários tratados como se escravos fossem, sem quase nenhuma dignidade humana.

Ontem, 19 de Junho, foi declarado o Dia Do Refugiado. Foi criado para chamar a atenção para os milhões de pessoas que são obrigadas a saírem de seus lares de origem por causa de guerras, divergências políticas ou perseguição religiosa, terminando por aportarem em outras terras-realidades. Mas ao olharmos mais de perto a nossa própria Sociedade, veremos o quanto encontramos refugiados expulsos do padrão civilizatório básico. São sobreviventes precários, cercados por insensíveis por todos os lados.

Estes últimos também se refugiam do que acontece vivendo recortes da realidade que pressupõem o desequilíbrio como sendo um dado intrínseco à Vida. Para reforçarem a existência dos privilégios, buscam embasamento em preceitos que expressam um processo retrógado, eterno e cíclico. Quase como se fosse uma lei natural.

No evento no qual participei ontem, a promotora que o anunciou, iniciou a sua fala realçando o “momento difícil pelo qual o Brasil está passando”, bem diferente do ano anterior em que vivíamos numa condição em que o futuro, normalmente incerto, apresentava horizontes sombrios de tempestade institucional. Quando ela fala do Brasil atual, contrapõe ao seu antigo país ideal, governado por um descerebrado com pretensões napoleônicas e que trazia amedalhado no peito o nazi fascismo como galardão. Continuou dizendo que “ainda assim temos o privilégio de estarmos num clube que nos acolhe com segurança e conforto”.

Esse clube tem um sistema de segurança burocrático e bastante rigoroso. O ar policialesco e desconfiado se justifica. Afinal, estão recebendo em seu refúgio potenciais inimigos – aqueles que lhes servem enquanto apenas estejam lhes servindo – mas que podem, a qualquer momento de louca revolta, se insurgirem contra o jugo invisível, porém inexpugnável sob qual vivem…

Tirante a chamada da mídia com acentuado perfil ideológico, o que o Prof. José Geraldo, em seu depoimento apresentou uma aula magna de História, Filosofia e posturas ideológicas. Apreciem!

“A” O Pipa

Uma pipa ficou pendurada na beira do telhado da varanda da minha casa. Estava inteira, mas com o tempo, rasgou aqui e ali com o movimento do vento ocasional. Vê-la presa, qual um pássaro que se debatia amarrado a uma armadilha, fez com me apiedasse e a retirasse de onde estava. Não era um artefato de beleza especial e decidi destruí-lo. Cometi o erro de virá-lo e perceber os detalhes de sua confecção – as varetas bem-posicionadas, as linhas de costura as alinhando devidamente, o papel de seda delicadamente colado a elas. Quem fez a pipa, além da habilidade, supus que tenha juntado sua energia às forças antigravitacionais da imaginação que antecipou vê-la singrar o mar dos céus – uma obra feita para voar.

Isso me inspirou um poema que colocaria mais ou menos nesses termos, mas o voo da pipa mudou a sua trajetória quando publiquei a foto.  Uma amiga me questionou se sabia dos últimos acontecimentos referentes a acidentes graves provocados por pipas. Na verdade, não são as pipas que devam ser condenadas, mas quem as utilizam com linhas besuntadas de cerol – uma mistura cortante de pó de vidro e cola de madeira – para colocá-las ao alto.

A intenção de quem faz isso é, supostamente, se defender de outras pipas igualmente preparadas para cortar as linhas adversárias.  De diversão inocente, a atividade inventada pelos chineses há milênios de anos se transformou em luta aérea. São empinados pipas como se fossem aviões da Segunda Guerra em movimentos ousados – mergulhos, rasantes, embicadas – para defender os seus territórios sobre os Oceanos de ruas.

Tudo bem, se essas pipas não descessem ao nível da terra dos mortais e provocassem acidentes fatais ao cortar pescoços de motociclistas, ciclistas e pedestres. Nos “menos” graves, há casos de mutilação de dedos. Além de haver relatos de acidentes com aeronaves e paraquedistas. Tudo é muito triste, se considerarmos que o espírito de competição engendrado pelo Sistema sob o qual vivemos não estimulasse aos homenzinhos “ganharem” o espaço azul como únicos soberanos.

Não foi por outro motivo que nas oportunidades que surgiram de empinar pipas com as minhas filhas, evitei. Imaginava que como não me defenderia usando “cortante”, a cada uma que colocasse no alto, ocorreria uma perda para a distância, lenta e decepcionante. Outra coisa sobre o qual Farfalla me chamou a atenção, é que chamava o objeto em discussão pelo artigo masculino – “o” pipa.  Conjecturei que talvez fosse uma imposição inconsciente do Patriarcado recebida na meninice sobre algo de tamanho poder – voar para além do corpo.