… tentei buscar um pouco de refrigério para a minha dor… tantas vezes me vejo magoado por ser como sou queria infringir minhas próprias regras matar a imagem que fazem de mim e que assumi como se fosse eu mas estou preso à minha própria mentira de tal maneira que não saberia viver sem ela a me dar suporte como se reconhecesse o meu fracasso em não ser aquele que me reconhecessem aquele que não sou que sou desalentado recebo a luz que se esvai por trás do horizonte na esperança de me deitar e sonhar comigo não sendo… amanhã…
Dominic, enquanto eu assistia televisão, dormia do meu lado no sofá. Provavelmente sonhando que corria. As suas patas se movimentavam rapidamente como se tivesse em campo aberto. Como quando era mais nova. Há dois dias, quis me acompanhar e subiu as escadas da varanda e em determinado momento, a velha companheira tropeçou, caindo alguns degraus abaixo. Ela está pesada e suas patas enfraquecidas pela idade.
Ao vê-la sonhando que corria, passei a mão em sua cabeça. Logo depois, como se ainda tivesse saindo do transe, me olhou nos olhos logo que os abriu e bateu o rabo como se estivesse feliz por aquele momento sonhado. Perto dos 14 anos, sei que ela não viverá muito mais do que alguns meses. O sobrepeso tentamos obstar, mas Dominic gosta de comer. E ainda que saiba que isso é prejudicial à sua saúde, fico pensando se vale a pena impedir de ver esse seu gosto satisfeito. Certamente não compreenderia. Nós alimentamos os nossos cães residentes apenas uma vez ao dia, com eventuais distribuição de biscoitos. Junto com a ração, acrescentamos uma mistura de legumes e carne de galinha cozidos. Uma alimentação equilibrada.
O que me deixou feliz foi ver Dominic correndo. Ainda que em sonho…
*Corria o ano de 2020 e não bastasse o surgimento da Covid-19, tínhamos um governo que desejava levar o País para o Caos. A tática padrão era ir contra todos os preceitos aceitáveis de controle de uma Pandemia que acabou por matar pelo menos 700 mil brasileiros. Esse é um outro crime daquele que queria uma guerra civil em que 30 mil mortos resolveriam a oposição aos seus desmandos. Entre outras medidas que implementou foi a desestruturação dos serviços públicos de atendimento às populações carentes, além dos mecanismos de controle geracional do Estado. Não lhe parecem iguais às medidas do Homem-Cenoura na parte de cima do mapa da América? Pois, é! Existe uma planificação óbvia nascida desde as hordas da Extrema-Direita para fazer desmoronar as estruturas básicas da administração, incluindo a Burocracia que, de certa maneira, estabelece os parâmetros para o bom funcionamento administrativo. Quando criou-se um departamento para fazer especificamente esse trabalho de desmantelamento, o Rei do Mundo chamou o homem mais rico do planeta (em termos financeiros) para levar adiante esse projeto. Enfrentou problemas e decidiu deixar o (des)governo. Em 2020, o desejo de sonhar com um outro mundo parecia distante e, hoje, mais ainda. Então, escrevi: “Para quem queria fugir para outros espaços, longe daqui, na Nave-Mãe, aviso que ela deu giro pela linha do horizonte e partiu rumo a destino desconhecido. Não será desta vez que voltaremos ao Planeta-Útero…”.
Quem acha que seja impossível chupar cana e assobiar, não conhece os amantes… Amantes são capazes de caminhar sobre o chão em brasa com o sorriso despercebido de quem esconde um grande segredo… Desencarnam os pés, porém disso não se apercebem, pois confundem a dor com prazer…
Amantes dão nó em pingo d’água. Trocam o certo pelo duvidoso. Não creem nas certezas perenes e apostam quase tudo no imediato. Amantes só tem como certo o aqui e o agora… E juram que o futuro conjura contra as suas paixões…
Amantes intuem que passarão… Que passará a sensação de vertigem… Que cairão… em si… Vazios… alheios… desamados… E como se sentem morrer de sede, bebem do veneno até a última dose, a sonhar morrerem apaixonados…
Mas você não sabe se viver é melhor que sonhar (Lua Souza)
Vivemos a deixar as nossas impressões digitais por aí… (2011) — em São Paulo.
Um dos meus letristas preferidos compôs e uma das minhas cantoras favoritas cantou: “viver é melhor que sonhar”, em “Como Nossos Pais”. Belchior até hoje me surpreende pela atualidade de suas composições. E Elis está cantando cada vez melhor. Que ambos já tenham nos deixado fisicamente é irrelevante. A vida é um sonho e sonhar creio ser a condição perpétua da existência. Os Hindus dizem que vivemos um sonho de Krishna.
Há certas ocasiões que nossos sonhos que se desenrolam dormindo são tão poderosos que “parecem ter sido reais”. Entre a aparência e a realização, mesmo que não os tenhamos protagonizados tendo como testemunhas apenas nós mesmos, o impacto que tem nossa vida é enorme. Vai para o repertório de verdadeira vivência. Comigo, aconteceu várias vezes.
Após o passamento de minha mãe, eu estava preocupado com a condição dela na outra dimensão. Sonhei que ela se apresentava a mim como se estivéssemos na antiga casa. Perguntei o que fazia ali e como ela estava. Respondeu que queria me ver e que estava em paz. A consequência direta desse encontro é que acordei com o espírito acalmado, leve, em paz.
Eu tenho me ressentido de não me lembrar muito dos meus sonhos, ultimamente. Sinto falta de vivê-los como acontecia antes. Eu tinha a capacidade de continuá-los noites após noites. E de interferir nos seus caminhos. Em outros, mesmo que disfarçados, percebia que os locais se referiam a pontos específicos, reincidentes. Que fossem estranhos e que encontrasse pessoas que nunca as havia visto antes, não impediu que eu me lembrasse delas até hoje.
A condição onírica da vida muitas vezes se apresenta tão fortemente que confundo sonhos com ações na versão “desperta”. De qualquer forma são lembranças e ainda que quem contracenou comigo no sonho não “se lembre” — porque para ela não aconteceu — eu me lembro. Essa condição um tanto dispersa de atuar na vida contribui para que eu apresente um quadro “preocupante” de memória claudicante. Talvez eu devesse também me preocupar, mas ao mesmo tempo, tenho certo “carinho” com essa característica que não interfere na minha vida funcional, que consigo separar devidamente, com a criativa, que vem ao meu auxílio quando preciso “conversar” com as minhas personagens.
Não digo que não sei se viver é melhor que sonhar, simplesmente porque não há separação entre um estado e outro de consciência para mim. Vivencio as duas condições da mesma forma, com efeitos que demarcam bem a minha passagem pelo terceiro planeta desde o Sol, neste cantinho da Via Láctea, que fica na borda do superaglomerado Laniakea— um conjunto que tem 500 milhões de anos-luz de diâmetro e massa de 100 milhões de bilhões de sóis. No total, 100 mil galáxias fazem parte dessa estrutura. Não é um sonho?