As Primeiras Vezes*

Está é uma homenagem às primeiras vezes de qualquer um. Aquelas primeiras vezes em que sentimos como se um mundo novo surgisse diante de nossos olhos. Aquelas primeiras vezes que faz desabrochar a emoção em que se descortina a possibilidade de vivermos magicamente. O efeito que causa perdura por tanto tempo que basta buscá-lo na memória para reascender a chama quase apagada de nossa esperança. Tornar cada dia o dia em que experimentamos o vislumbre da primeira vez é o nosso grande desafio. Fazer com que esse sentimento seja genuinamente gerado dentro de nós, sem a necessidade de datas impostas por efemérides é como se encontrássemos um grande tesouro.

Espero vivenciar sempre que possa esse sentimento de como foi a primeira vez que experimentei cereja com queijo, aquela ocasião em marquei o meu primeiro gol e a primeira vez que a vi abrir os braços pra mim. Sentimo-nos engrandecidos quando deslocamos as nossas melhores primeiras vezes para as primeiras vezes de outras pessoas. Como aquela primeira vez que vi um sorriso de minhas filhas, a primeira vez que as ouvi exprimir os seus balbucios e palavras e a primeira vez que as vi caminhar.

 Vivi certa fase em minha vida em que me recusava a desenvolver memórias de referências, conhecer coisas novas. O garoto estranho estava em uma fase mais estranha ainda. Uma vez, me perguntaram o porquê de eu não querer experimentar àquela fruta oferecida como sendo de sabor incomparável ou a bebida mais excitante que existia. Eu respondi que preferia que as coisas ficassem no campo da idealização de ser a fruta de sabor perfeito, que talvez não fosse, ao ser saboreada. Ou de ser bebida perfeita que produziria o efeito mais incrível, na minha imaginação. Estava a viver o período de abstração mais intenso da minha opção monástica, sem ser monge.

 Mas a música não precisa ser oferecida, para ser apreciada. Ela chega por vezes no ar, se imiscui em nossa existência de maneira invasora e por isso, ela talvez fosse a válvula de escape da minha prisão autoimposta. Porém, conheci essa canção recentemente e logo me apaixonei por ela. No entanto, “The First Time Ever I Saw Your Face” é de 1957. É uma canção “folk” escrita por Ewan MacColl para a sua esposa, Peggy Seeger. Foi popularizada por Roberta Flack e tornou-se um enorme sucesso na voz dessa grande cantora depois que apareceu no filme de Clint Eastwood, “Play Misty for Me”, de 1971, embora a música tenha sido gravada para seu álbum de 1969, “Flack First Take”. Três anos depois, em 1972, liderou a Billboard Hot 100 e ganhou o Grammy de Canção do Ano. Como se vê, também há segundas chances para as primeiras vezes…

*Texto de 2017

Ar De Louco

Em 2015, registrei no Facebook*: “Resultado após o futebol de sábado — ganhei algumas partidas, perdi outras, fiquei com dores musculares, o cabelo eriçado e um sorriso no rosto!”. Ao observar essa foto percebi o ar de louco, que realmente sou. Não quero parecer que menosprezo a quem realmente sofre de demência que, entre coisas, se isola em seu próprio mundo de certezas.

Diferente desse sintoma alienado, o meu caminho é de incertezas. Mantenho, por outro lado, uma coluna vertebral de parâmetros que me sustenta em pé, não sem sentir muitas dores, verbalizada fisicamente por uma hérnia de disco, entre outros efeitos. Essa é outra forte constante em minha existência material — somatizo o meu sofrimento psicológico mental em episódios que perigosamente já quase me levaram à extinção. De qualquer forma, sou funcional neste mundo de loucuras reproduzidas aos bilhões.

Mantenho uma família, “amigos”, colegas de trabalho e relações interpessoais. Nunca sei como sou visto e quando me descrevem, descreio dessas impressões. Percebo o quando se enganam sobre mim, ao ser contextualizado em relação à minha própria visão. É certo que a minha autocrítica é um tanto ácida. O que não impede que me zangue quando percebem as minhas falhas. Talvez, efeitos do senso de autoproteção. A diferença é que busco atenuar a eventual falha, ainda que de início possa brigar com quem a aponta.

Essa foto, posada, mostra pelo menos uma certeza — não sei sorrir. Eu me lembro que, frequentemente envolto em crises existenciais, não via sentido em sorrir por nada. Não que não o fizesse, mas ocorria de forma episódica e imprevista. Como queria me ver agir de maneira natural… Não que eu fingisse… Apenas não sabia como me colocar diante dos outros. Quando jogava bola, ao contrário, eu sentia me exprimir como se cada movimento fosse necessário e justificado — consequência óbvia das necessidades em realizar o objetivo proposto — fazer o gol ou defender de tomar um. Não jogo mais futebol, apesar de amar a atividade. Mesmo nos sonhos em que jogo bola, sofro por não conseguir sequer chutar a bola.

O que vejo com ironia é que mesmo estando “feliz”, eu não conseguia expressar essa suposta felicidade. Eu sou daqueles que tentam objetivar o momento que passa. Tudo é passageiro, incluindo a nós mesmos. Estabelecida a contradição de tentar segurar a água com as mãos sem vazá-la entre os dedos, como a contrapor a nossa efemeridade, de alguma maneira eu encontro pretextos para torná-la “eterna”.

Sou daqueles que acredita na existência de uma Consciência Universal (que alguns chamariam de Deus). E de que ela guarda absolutamente tudo do que acontece em todos recantos dos muitos universos. Afastada a tese de que não haja prova de sequer ter havido um Big Crunch, esse repositório de sucessos inconsequentes, são consequentes e guardam conexões que talvez nunca venhamos a desvendar, a não ser fora do corpo material. Estando com o olhar de quem observa de fora, talvez tenhamos uma ideia da totalidade da Ideia. Não se esqueçam de que, sendo louco, tenho licença para criar…

*Eu costumo me referenciar a aplicativos como o Facebook, porque sou um historicista. Há coisas que achamos que durarão uma eternidade, sendo que a própria Eternidade possa ser contestada, a depender de qual escola de Física o sujeito pertença. Um dia, acaso alguém venha querer saber o que foi o “Livro de Perfis“, talvez se interesse por esse baú de assuntos tanto menores quanto maiores.

Participamos, todos, de uma grande e louca comédia — eu, você e o melhor de todos Charles Chaplin.

Horizontes

Escuridão

passeio os olhos por onde já passei

longe os caminhos

longos os desalinhos

largos os desatinos

crimes na boca da noite

beijos roubados

corações desarvorados

feito árvores desbastadas

pássaros sem os seus ninhos

deserto em planos sequenciais

serras peladas de onde o ouro foi levado

o olhar até o limite que a curva faz

a luz a derrapar e fugir em que jaz

espíritos em busca de paz

na dissonância de línguas caladas

no silêncio de peles escamadas

na separação de corpos cansados

perdidos de si no ponto cego

do horizonte que se veste de escuridão.

Sorriso

o sorriso lateral da tarde

me emudece, mas não me cega

pergunto à quase noite

porque sorri

responde que venceu o dia

e deitará a cabeça

para além da curva do rio

luminoso

no colo do sol em novo romance

olho para o horizonte

cada vez mais escuro

e me sinto o momento que fica

eterno

em sua finitude…

#Blogvember / Os Espinhos

Foto de A Mulher Do Padre, um filme dirigido por Dino Risi, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, de 1970.

“A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou”, por Mariana Gouveia (As Estações

Não pude evitar me apaixonar por aquela bela mulher – mãe zelosa, ativa batalhadora de causas humanas, trabalhadora incansável que não deixava de oferecer o melhor para seus dois filhos – apesar da falta do marido que a deixou sem explicação alguma. Até que as amigas descobrissem que ele fugira com uma delas, vindo a morar em outra cidade. A ex-melhor amiga de LucindaAlexandra – já mantinha um caso com Carlos Alberto há alguns anos. O que o afastou definitivamente de Lucinda foi por considerar a mãe de seus filhos autossuficiente demais. Em conversa com Alexandra soube dessas reclamações de Carlos Alberto. “Comigo, ele se sente o homem da casa, mesmo porque fico apenas à disposição dele”. De fato, com Lucinda o tipo se sentia diminuído por ela bancar grande parte das contas da residência.

Lucinda conseguiu se diplomar em Administração de Empresas a duras penas. Mesmo grávida dos dois filhos durante o tempo do curso, conseguiu completá-lo com mérito. Com o canudo na mão, pôs em pé um plano que reunia pequenos negócios da região onde vivia, tendo mulheres à frente. A cooperativa foi um sucesso. Na época da Pandemia, implantou as vendas Online que a mantiveram em expansão. Apesar do declínio da Economia de maneira geral, as Filhas de Lilith se tornaram referência de qualidade e penetração mercadológica. No entanto, Lucinda nunca saiu do bairro que crescera. Católica, de frequentar as missas todos os domingos, não deixava de tomar a Eucaristia e confessar… comigo.

Eu me lembro de tê-la advertido quando me falou do nome que daria ao projeto da Cooperativa que era derivado de uma versão judaica da criação da mulher junto com o homem, não dela da costela dele, como na versão bíblica conhecida. Aliás, suas raízes fincavam em chão bem mais antigo. Ela me olhou através da tela vasada do confessionário com aqueles olhos que me abduziam e o sorriso que me fazia sorrir, explicando: “eu gosto de muita coisa do Cristianismo. Mas a força do mito de Lilith é o que mais se aproxima do que eu penso sobre a nossa existência neste planeta. Mas os motivos que eu tenho de frequentar a Igreja tem a ver com outros, além do sentido do congraçamento”.

Ao terminar de falar, Lucinda atravessou a tênue barreira que nos separava com a força de seu olhar e soube, naquele momento que ela me amava como eu a ela. Conversei com o meu confessor que me aconselhou a pedir transferência e deixar a Paróquia. Escrevi uma carta para Lucinda, falando de tudo o que sentia e que aquele sentimento era um impedimento para que continuasse o meu ministério sacerdotal. Completei que a carta fora “escrita com espinhos que ninguém plantou”, a não ser o Destino. Após escrevê-la, passei a noite acordado e por mais que tentasse encontrar em minha fé os motivos para continuar o sacerdócio, os olhos de Lucinda me iluminavam os pensamentos.

Fui falar com ela no escritório d’As Filhas de Lilith, do lado de sua casa. Ela me recebeu com aquele sorriso abrasador. A minha intenção inicial era o de entregar a carta, dizendo que só a lesse quando eu não estivesse mais presente. Mas diante dela, achei que merecesse um diálogo mais franco, sendo Lucinda um exemplo de coragem. Quando comecei a falar, ela ficou com os olhos marejados, enquanto mordiscava a sua boca sedutora. Quando disse que estava apaixonado por ela, estendeu as suas mãos e tocou as minhas devagar e invasora até espalmá-las.

Padre… não, sem padre… Sérgio, eu também o amo! Sempre quis ser a mulher do padre! – rindo seu sorriso mais lindo.

Lucinda, sou casado com a Igreja e você, com o Carlos Alberto, apesar de ele estar com a Alexandra… e…

Ela me interrompeu. Disse que o Carlão, como o chamava, tinha vindo com um papo de pensão, já que a Cooperativa estava fazendo sucesso. Nós nos separamos e assinamos um acordo em que ele concordou em receber um salário-mínimo por mês.

É o pai dos meus filhos. Não poderia deixá-lo desamparado. Mas é jovem, pode muito bem trabalhar. Depois, eu me apaixonei por você desde que percebi seu entusiasmo pelos trabalhos devocionais. Meus filhos falam mais de você do que do pai. Eles o admiram e gostam de frequentar os cursos de música que a Paróquia dá junto com os profissionalizantes e alfabetização.

– E eu me apaixonei por você por sua entrega, coragem e alegria no auxílio às pessoas carentes.  Você é uma mulher maravilhosa, Lucinda! Eu queria…

– … me beijar?

Nesse instante, fui ao seu encontro atrás da mesa e a beijei… minha primeira vez entre todas as vezes que passei a beijá-la o mesmo beijo apaixonado. Perguntei:

– Quer ser mesmo a mulher do padre?

– Desde menina…

Participam: Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Suzana Martins

Projeto 52 Missivas / Eu Me Lembrei De Você, Em Mim / Memória De Sonhos Não Realizados

Dias desses, eu me lembrei de você, em mim… Mentira, eu lembro de você, de mim, de nós todos os dias. E sabe o que é mais estranho?… Tenho saudade de nossos sonhos não realizados. Viveríamos à beira do mar, teríamos uma vida simples, criaríamos os nossos filhos, fossem eles adotados ou não. Formaríamos um vínculo eterno no tempo terrestre e além. Quando estava com você, sentia vontade de cantar. Músicas de Alceu Valença nos representavam. Lembra quando a conheci, numa tarde junto ao mar? Você olhava para o horizonte e quando cruzei com você, vi o azul do céu e do mar em seus olhos. Sem querer, falei baixinho ou apenas pensei, não sei: “la belle de jour…”. Você parece ter ouvido, sorriu e respondeu: “adoro essa música!”… Fiquei enrubescido… Você sorriu mais ainda: “você ficou vermelho! Que gracinha!”… E começamos a conversar. Percebi que seus olhos eram, na verdade, castanhos esverdeados, às vezes mais claros, às vezes menos, e que tinha a capacidade de resplandecer o sol, fundir o azul do céu e do mar, o verde da vegetação, avermelhar-se com os últimos raios do entardecer, como descobri ao ficarmos sentados em uma pedra, conversando, até anoitecer… Quando voltamos a nos encontrar, lhe cantei “Anunciação” porque a letra fazia todo o sentido. Na mesa do restaurante, eu me voltei assim que entrou pela porta. Brinquei: “eu escutei os seus sinais…” / “Sou tão barulhenta assim?” / “Não! O meu coração bateu tão forte que cheguei a ouvi-lo…”. Seus olhos furta-cores se expandiram e você me beijou. Ficamos juntos por maravilhosos dois anos, fazendo planos para o futuro, cantando músicas do Alceu, assistindo aos seus shows, saindo pela noite cantando “mar e sol… gira, gira, gira, gira, girassol…”, flores que teríamos no jardim de nossa casa à beira-mar, com as nossas roupas quarando no varal. Até que… algo aconteceu. Você parece ter despertado do nosso sonho. E disse que ele havia acabado. Simples assim… Não quis explicar, talvez não quisesse me magoar por dizer que não gostava mais de mim. Ou que se apaixonara por outro. Eu devia ter escutado as mensagens enviadas por seus olhares, ainda que a boca não se pronunciasse. Eles começaram a ficar nublados como a estação chuvosa. Mas do que valeria? A dor seria a mesma. Sei que tudo passou. Prefiro que seja assim. Será um sonho eterno, realizado somente em minha mente. Guardarei o seu olhar-sorriso-ladrão-de-corações em minha lembrança. Aquele sorriso que foi só para mim, aquelas cores que foram só minhas… Adeus, meu sonho!

Imagem: Foto por Karolina Grabowska em Pexels.com

Participam:
Mariana Gouveia
Lunna Guedes