BEDA / Crônico

Saturno devorando o filho, de Francisco de Goya (1819-1823)

É da natureza de existir que Cronos devore os seus filhos continuamente, como se fora um rio em constante movimento em direção ao mar (em algum lugar). Mas como já foi várias vezes lembrado, nunca serão as mesmas águas às quais se renovam a cada ciclo (até quando?).

É da nossa natureza que nos acomodemos às circunstâncias que consideramos imutáveis, enquanto não percebemos que tudo está interligado e uma ação externa ao ciclo supostamente permanente poderá vir a transformá-lo de tal maneira que o que era episódico se torne recorrente e se estabeleça como regra.

A locução “novo normal” se normaliza e começamos a agir sob os auspícios, nem sempre saudáveis, de normas em que a impermanência rege a sua ação. O desequilíbrio acaba por se estruturar como contínuo e começamos atuar como seres que buscam sobreviver como se enfrentássemos um terremoto – o chão semovente impedindo que andemos mentalmente estáveis.

É de nossa natureza a adaptação ao meio. O gerou certa prepotência por nossa espécie. Cremos que dominamos a Natureza, mas não a domamos. Alguns creem que seja uma questão de tempo que a sua revolta nos aniquile. Suposição surgida por pura mistificação da Ciência, a mesma que faz com que duvidem de sua eficiência. Parece estranho, mas sem conhecimento dos conceitos científicos, os mesmos que se beneficiam de suas conquistas a abominam por questões ideológicas.

Há várias maneiras de Cronos degustar com prazer cada filho devorado. Um deles é reabilitar com requintes de estultice o mergulho gozoso na ignorância, defendida como bandeira orgulhosa de ser. Eu já agi assim quando criança. Dizia não gostar de alguns alimentos apenas pelo gosto que não havia experimentado – “não comi e não gostei!”. Proclamava como ganho: “Mais uma coisa que não conheço!”

Vivemos uma “nova” Idade Média. Atração pelo obscurantismo. Lembrando que, ainda que sombrio em vários aspectos, principalmente na religiosidade, esse período foi de grandes descobertas e invenções, mas que apenas mais tarde vieram a serem efetivados na vida cotidiana. O que percebo claramente é que o Sol continua a sua faina de aquecer o planeta, mas como estamos depauperando a proteção contra os seus piores efeitos – a camada de ozônio – mais cedo do que se espera a vida na Terra ficará cada vez mais precarizada, através falência climática.

Afora todas as medidas de autodestruição como que seguíssemos uma cartilha da destruição: eliminação da cobertura vegetal, envenenamento dos rios, extinção dos corais – centro comunitário de vivência de várias espécies marinhas –, avanço da instabilidade política que impede uma atuação global. Quando vejo o quadro geral, percebo quase como se fosse a expressão duma pulsão de morte coletiva “consciente”. Não é tão abrangente, mas é levada adiante por aqueles que detêm o poder. Com a atuação do Inconsciente Coletivo, creio que dominado pela autopreservação, talvez faça com que venhamos a dar um ou vários passos atrás no sentido do “desenvolvimento humano” como preconizado há 200 anos pela Revolução Industrial. A diminuição na velocidade da absorção de novas ferramentas utilizadas apenas para alavancar o consumo imediato, sem dimensionarmos as consequências perniciosas que desencadeiam.

Percebi desde bem novo, o quanto estávamos caminhando para o abismo. Eu me lembro de um texto que produzi numa das minhas folhas de papel dispersas sobre um industrial que em visita a sua cidade natal – origem do seu império – a encontrou distante da sua lembrança de garoto – um paraíso edílico com rios, cachoeiras e matas habitadas por pássaros e outros animais. Os relatórios que recebia indicavam apenas os lucros, sem mensurar a destruição causada pelo complexo industrial. Decidiu tomar medidas que revertessem os efeitos perniciosos e terminou por ser exitoso. Bem que se nota ser um texto juvenil, de quem acreditava que as coisas poderiam ser mudadas facilmente.

Alguns dizem que estamos chegando perto do ponto de “não retorno”. Que em determinado momento, se tornará irreversível a decadência das condições que suportam a vida planetária. Como reconstruir a camada congelada dos polos que perderam uma área de cobertura considerável nos últimos anos? Como deixar de arrancar árvores das florestas tropicais para o consumo humano? Como impedir que o ouro e outros recursos minerais sejam extraídos sem consequências graves como a intoxicação de rios, animais e comunidades autôcnes? Como resolver as crises humanitárias que estão se alastrando feito epidemia? Como convencer os recalcitrantes ideológicos quanto a implementação de prerrogativas de convivência social menos agressivas contra as populações marginalizadas? Como impedir que a ganância seja o motor de nossa sociedade?

Como filhos de Cronos, com a sua morte, cremos que nos tornaríamos imortais como espécie. Porém, ao cortarmos a linha tênue que une todas as espécies da Terra, desequilibrando milhões de anos de percurso planetário em apenas alguns milhares, acabamos condenados. Cronologicamente, são como minutos de um dia. Cronos, redivivo, deglute os filhos não somente para evitar perder o trono, mas porque o poder conferido a nós foi mal-usado e continuaria a sê-lo – gerando condições para uma pena autopunitiva que não apenas destruiria a humanidade –, mas também o resto dos habitantes do globo. Estamos prestes a sermos dissolvidos no estômago abissal do monstro do esquecimento do Senhor do Tempo.

Participação: Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Claudia Leonardi / Roseli Pedroso / Bob F.

#Blogvember / Nosso Traço Falho

Detalhe do afresco A Criação de Adão, pintado por Michelangelo no teto da Capela Sistina entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do Papa Júlio II.


Rozana Gastaldi Cominal, em “Mulheres que voam”, apregoa que “não dá para ser perfeito com defeito humano já vem a ser: traço falho”.

A condição humana natural não é exatamente sem defeitos. A velha frase que ecoou por séculos de que “o homem nasce bom, mas a Sociedade o corrompe” é, em si, incongruente ao desconsiderar que a Sociedade é justamente formada por… homens. Não conheço a fundo as teorias a respeito de seu formulador, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, mas essa generalização “passa a mão na cabeça” dos seres humanos à priori, os inocentando de todas as possíveis falhas que venham a cometer contra outros da sua e de outras espécies – “criadas para lhes servirem”.

Para justificar essa característica de ser falho, criou-se o episódio da expulsão do Paraíso, porque Deus, em sua eterna glória, nunca cometeria o erro de nos dotar com tantos defeitos. Nesse caso, são os homens a absolvê-lo. Na visão humana, ao longo da História, os homens foram transformando seus deuses em pessoas com o dom da criação, da Eternidade e o poder de interferir na realidade, matar e destruir. Ao contrário do que versa a Bíblia, foi o Homem que O fez a sua semelhança.  

Para nos redimir, outra versão de nossa existência nos coloca como seres evolutivos que passamos por etapas de aprendizagem em vidas seguidas de mortes e renascimentos, até alcançarmos o estágio final em que seremos perfeitos. Artigo de , como todas as crenças, esse desejo que temos de nos eternizarmos, apesar das dores reincidentes, talvez para vivenciarmos prazeres fugidios é, no mínimo, comovente. Por outro lado, o fanatismo de todas as ordens gerados pelas diversas convicções é alimentado por chefes religiosos que ganham em poder ao jogar uns contra os outros na busca das diferenças.

Para o bem da convivência entre as gentes, a vontade de acreditar no imponderável deveria ser exaltada como identidade comum. Mas defeituosos que somos, não admitimos que as diferenças configurem um traço de igualdade. A onda de lideranças políticas que querem destruir a convivência democrática entre as pessoas de posturas desiguais ao que é proposto como norma, creio ser o pior defeito da personalidade humana carregada de falhas. Gera violência e sofrimento.

Para mim, o maior crime propiciado por essa “qualidade” destrutiva em sua gênese é o ataque à Natureza na tentativa de buscar lucro. Queremos controlar o meio ambiente como se fosse um inimigo a ser combatido, como se não devêssemos nos incluirmos como participantes. Abusamos da extração, sem reposição. Sofremos nós, os outros animais, as plantas, o planeta. Mais cedo ou mais tarde, pagaremos o preço. Talvez até consigamos reverter um pouco do estrago e eventualmente voltarmos atrás no caminho do suicídio… Até vermos surgir uma outra falha que parece ser permanente em nossa formulação: o esquecimento. Parece que não queremos aprender com os nossos descaminhos. O que nos condenará a cometermos os mesmos erros novamente.

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso

Escritores Homens

Homens que escrevem são diferentes de homens que não escrevem? Por terem a sensibilidade de manipular palavras na construção de mundos particulares que tentam explicar o mundo comum ou em comum com os outros seres viventes, serão mais abertos aos sentimentos mais nobres a ponto de serem especiais? Ou quando adentram nas zonas sombrias da mente humana, também são tão sombrios quanto criminosos comuns?

Um desses homens, Ernest Miller Hemingway, nasceu em Oak Park (Illinois), a 21 de Julho de 1899, foi um escritor  que trabalhou como correspondente de guerra em Madri durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Esta experiência inspirou uma de suas maiores obras, “Por Quem Os Sinos Dobram“. Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi viver em Cuba. Em 1953, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção por “O Velho E O Mar” e, em 1954, ganhou o prêmio Nobel de Literatura. Em 02 de Julho de 1961, se suicidou com uma espingarda, em Ketchum (Idaho), um pouco antes de completar 62 anos de idade e três meses antes de eu nascer.

Escritor genial e genioso, o filme baseado em seu romance homônimo — Por Quem Os Sinos Dobram — passado na televisão quando eu era adolescente, me apresentou Ingrid Bergman, por quem me apaixonei. Tanto que uma das minhas filhas ganhou o nome dela em homenagem. No filme, seus olhos faiscantes e cabelos curtos me deixaram atordoado. Fazia, aos 32 anos, o papel da jovem militante espanhola que luta ao lado da República, Maria, pela qual Robert Jordan, um americano que vai até a Espanha para lutar contra a ditadura, se apaixona. Sua missão é explodir uma ponte. Mas ao se apaixonar, começa a questionar sua perigosa tarefa e seu lugar em uma guerra estrangeira.

No romance, Hemingway usa como referência sua experiência pessoal como participante voluntário da Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos e faz uma análise ácida, com críticas à atuação extremamente violenta das tropas de ambos os lados: os Nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e nazista alemão e os Republicanos, pelas brigadas internacionais e União Soviética Critica também a burocratização e o panorama de privilégios rapidamente instaurado no lado da República.

Mas, acima de tudo, o livro trata da condição humana. O título é referência a um poema do pastor e escritor John Donne, que se encontra na obra “Poems on Several Occasions” que em português intitulou-se “Meditações“. Invoca o absurdo da guerra, mormente a guerra civil, travada entre irmãos. “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”. Em várias passagens do texto, os personagens se desconhecem ao desempenhar papéis bizarros que se veem forçados a assumir durante a guerra e fraquejam, ao ver nos inimigos seres humanos que poderiam estar de qualquer um dos lados da guerra.

Ao longo da vida do escritor, o tema do suicídio aparece com frequência em escritos, cartas e conversas. Seu pai se suicidou em 1929 por problemas de saúde e financeiros. Sua mãe, Grace, dona de casa e professora de canto, o atormentava com a sua personalidade dominadora. Ela enviou-lhe, pelo correio, a pistola com a qual o seu pai havia se matado. O escritor, atônito, não sabia se ela queria que ele repetisse o ato do pai ou que guardasse a arma como lembrança. Aos 61 anos, enfrentando problemas de hipertensão, diabetes, depressão e perda de memória, Hemingway decidiu-se pela primeira alternativa.

Todas as personagens deste escritor se defrontaram com o problema da “evidência trágica” do fim. Eu, pessoalmente, sou adepto pela opção do suicídio como direito, se a pessoa tiver plena consciência de seus atos. Como no caso da eutanásia, por doença sem remissão. Porém, creio que se deva buscar todas as alternativas possíveis até que alguém “são” escolha a morte como solução. Porém, não sou juiz a ponto de culpar quem o faça por considerá-lo covarde. Para muitos, na verdade suicídio é um ato de coragem. No caso de Hemingway estimo que tenha sido por pura vaidade… apenas não sei avaliar se é um motivo tão bom quanto qualquer outro.

Maratona da Interative-se de Maio, com

Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Alê Helga / Isabelle Brum

Maratona Setembrina | Como Posso Ajudar?

Pergunta

Vez ou outra, aperto sem querer alguma tecla no celular que acessa o Google, com a questão: “Oi! Como posso ajudar?”… Não foram poucas as vezes que pensei em perguntar como faria para parar o mundo e descer desta nave que viaja a velocidade orbital média de 107. 200/h em torno do Sol. De fato, em vez de simplesmente causar uma hecatombe mundial, bastaria deixar-se ir… Uma tentação que ressurge de tempos em tempos, apesar da consciência pessoal de que somos mais e melhor do que nos apresentamos como seres humanos.

A sensação é que não há saída objetiva para a situação encalacrada em que nos metemos. Erramos como coletividade, muitas vezes buscando o acerto. Ouço em minha cabeça o dito repetido por minha mãe: “O Inferno, de boas intenções, está cheio!”. Porém, não devemos deixar de perceber que mal-intencionados trabalham ativamente a favor da continuação deste quadrante confuso em que nos perdemos, por onde trafegam com habilidade e facilidade.

Eu acredito que seja Espírito encarnado e não apenas uma carne com alma. Portanto, atuo no mundo material e não devo deixar de participar do concerto regido por minhas ações – causa e efeito. Acredito que, conjuntamente, devemos construir nossa realidade física. Acredito que o Amor seja o filtro mais eficiente para nos conectarmos com o repositório energético original de nossa existência. O Amor abre portas, agrega, ajuda e reconforta.

No entanto, a tendência é de que se responda com Ódio a situações difíceis. Dos dois lados, os “separatistas” – oportunistas que buscam nos fragilizar como cidadãos – apostam todas as fichas na desunião para se assenhorarem do poder delegado por nós, através das eleições. Sabem que há divergências de opiniões e as realçam, em vez de buscarem objetivos em comum. Bem aparelhados, se apropriam de um discurso fácil e padronizado, que não dá margem à debates – comandos de ordem-unida. Dado “novo”, em termos de força, as redes sociais ganharam expressão inaudita nessa tarefa.

O que existe de concreto é que, mais do que nunca, as pessoas deixaram suas convicções internas eclodirem, como pústulas. Abriram suas caixas de Pandora particulares e libertaram para o mundo preconceitos e posturas que não contemplam solidariedade, compreensão ou tolerância. A convivência de diferentes opiniões tornou-se quase impossível diante de posturas inflexíveis, em que além da falta de compreensão de texto, entra em cena a pura imposição de valores pessoais de uns sobre os outros.

O fantasma da Ditadura nunca se fez tão perigosamente presente cotejada como solução desde a redemocratização do País. Os militares – igualmente cidadãos brasileiros, mas que são impedidos de atuarem politicamente pela Constituição – tem em seus quadros saudosos do tempo em que imperavam. Naquela época, patrocinaram e deixaram que prosperassem a tortura e o assassinato, com o ativo envolvimento de civis na estrutura montada para a repressão.

Está a se enganar quem crê não houve corrupção nesse período. A carta branca obtida através do Golpe de 64 levou à corporação o bichinho da prevaricação corporativa típica do arcabouço estatal arcaico desenvolvido ao longo da História brasileira. A bem da verdade, sob o manto insuspeito da divisa “Ordem e Progresso”, grupos que sempre se refastelaram de benesses associadas ao poder, continuaram atuando com total proteção daqueles que deveriam promover a segurança e o bem-estar da maioria da Nação.

Como quem noticiasse qualquer irregularidade poderia vir a sofrer represálias como prisão, tortura, desaparecimento, “suicídio” ou morte, as vozes se calaram ou foram caladas. Daí a errônea perspectiva de que não ocorresse as “tenebrosas transações” enquanto estávamos distraídos em sobreviver. Assim, estamos a nos postarmos diante da urna com a dúvida cruel entre votar em quem acreditamos ser a melhor alternativa para nós ou contra quem representa retrocesso e insegurança, ainda que anuncie combatê-la como mote de governo.

Enquanto isso, observo a noite estrelada, tendo a Lua como rainha soberana. Algumas luzes já estão mortas a milhões de anos, alheias aos nossos prosaicos problemas. Porém, ainda podemos a vê-las. Registros legíveis de um passado. Assim como certos fantasmas que apenas esperam a oportunidade para ressurgirem da escuridão dos porões ondem vivem…

maratone-se