Não é pregação ou advertência — algo têm que morrer, ainda que na aparência, para outro renascer.
Digo com o coração pleno de paz: apenas os mais egoístas dirão que o amor se desfaz sem deixar marcas ou pistas.
Porque se há um sentimento que seja eterno é o amor — porquanto não haja consentimento, mesmo que surja o rancor.
Eu sei que o que sinto é infinito, assim como os átomos que me compõe, como é efêmero o corpo que habito, como é perpétuo o universo-mãe.
Quebramos o espelho — foram sete anos de sorte, o perfume que se perdeu o reencontramos no 102, vivemos a entrega, as brigas, cortejamos a morte porque nada poderia ser deixado para depois.
Eu a manterei na lembrança ainda que sem as minúcias que tanto preza, mesmo que não tenha mais esperança… Vê-la mais uma vez, seria uma surpresa.
Porém você está em mim — sua voz, sua boca, olhos de esmeralda que passeiam em minha mente, sua linguagem pajubá, vertigem de leoa louca — alma de loura, cabelo gris e corpo de serpente.
A memória da areia branca, o braço rumo ao céu, a carta lida no metrô — que a fez perder a direção, os toques dos saltos no corredor do hotel e sapatos de naja — carinho por declarar sua paixão.
Quando você dizia que tudo terminaria, eu não previa, tão apaixonado, tão absorto em centros alternativos, que o tempo se esgarçaria, que o templo ruiria na rua da marquesa onde nos tornávamos deuses redivivos.
O meu desejo lhe pertence — é dona de um rei… Sinto pena que ele nunca mais possa colher da rosa a cor, a dor, o mel, o prazer que nunca imaginei… Já, o escritor, sei que nunca perderá a musa de verso e prosa.
*Poema-delírio de 2020 — tempo pandêmico Imagem: Lilith, a primeira mulher, entidade de origem judáica-mesopotâmica.
Passei a tarde de hoje a lavar e estender roupas de cama, mesa e banho — camisas, blusas e peças de uso pessoal, como cuecas, calcinhas, sutiãs e meias, muitas meias. A tarefa mais desgastante foi reunir os pares, todos misturados em uma grande barafunda. Dificilmente consigo encontrar imediatamente a meia e a sua exata correspondente. Por experiência própria, sei que muitas se deslocam para a dimensão paralela onde se refugiam sempre que podem. Essa rebeldia das meias, já foi cantada em verso em prosa por todo o mundo, inclusive por mim. A surpresa se deu quando a primeira meia que separei, solitária desde então, começou a conversar comigo, quando faltava vários pares a serem reunidos.
— Oi! Oi! Meu amigo, você não vai me colocar para secar logo? Quero aproveitar o sol um pouco…
— Eu a conheço! Já fiz um texto tendo você como personagem – “Hoje, carreguei as estrelas em minha mãos…”…
— Bonito, mas e o meu caso? Você não vai encontrar o meu suposto par neste cesto… Ou ele está em outro ou ainda será lavado… Ou…
— Já sei! Foi para a Dimensão das Meias!… – Ri, pensando que fazia piada.
— Ah, então você já sabe sobre isso?
— Hã? Então, esse lugar existe realmente?
— É claro! Mas apenas algumas meias conseguem penetrar nesse universo paralelo. Muitas vezes, por puro acaso. Eu, não quero. Estou bem por aqui.
— Que impressionante! O estranho é que são sempre apenas uma das meias do par que escapam para lá…
— Somos meias de um par, mas somos autônomas, independentes umas das outras. Somos sociáveis. Gostamos de nos relacionar com outras roupas, com vários pés que nos calçam. Crescemos com a experiência do toque da pele humana. Captamos a energia que vibra de suas auras. Faço a festa aqui nesta casa. Estou sempre mudando de pés.
Imediatamente lembrei das quatro mulheres da casa, que vivem trocando de pares de meias entre elas…
— Eu pensei que vocês apreciassem a parceria constante…
— Não! Nós, meias, gostamos de bagunça compartilhada…
— Percebo certa ironia de sua parte, Meia Estrelada…
— O que você está ouvindo pelo fone?
— Música? Conhece?
— Sim, meu caro! Suas filhas ouvem muita música! Qual o tipo de música que ouve?
— Todos os tipos: Pop, Ópera, Jazz, Rock, MPB, Instrumental… Sou eclético…
— Como você, nós não nos prendemos a essa à organização que os seres humanos querem nos impor. Essa falsa regularidade que vocês querem dar à vida. Por nós, mudaríamos de pares sempre que possível, para trocar experiências. Não nos importamos com o tamanho, cor ou textura. Eu por exemplo, sou louca para sair com uma meia fina…
Enquanto conversávamos, eu continuava a separar os pares para pendurar no varal. Ao término, sobraram três pés de meia sem par, incluindo a Estrelada. O seu par realmente não se encontrava entre elas.
— Eu não disse? Pode me colocar junto com as outras duas. Tenho certeza que elas não se importam, ao contrário. Eu as conheci no troca-troca da máquina de lavar. Oh, loucura! Vou adorar passar esse tempinho ao sol com elas… Ah, agradeço o papo!
Eu a posicionei como ela pediu e continuei a estender roupas até bem depois desse interessante diálogo. Vez ou outra, passava em frente da Estrelada, mas ela parecia estar dormindo sob o contato aconchegante dos raios solares do inverno. A Estrelada, apesar de sua atitude independente, não percebeu que a falta de seu par poderia condená-la ao ostracismo. A não ser que o estilo das minhas filhas mude e elas comecem a usar meias que não combinem o padrão. Talvez, este texto as ajudem nessa decisão…