Coletivo 52 Missivas / Mesa Para Dois

MESA PARA DOIS

Rita,
para nosso encontro, cheguei meia hora antes do horário combinado. Pedi mesa para dois. Eu tinha dúvidas de que chegasse às duas da tarde, hora estabelecida por você mesma. Nesses últimos dois anos, não mudei muito. Fiz como de costume – fui pontual ao extremo – o que sempre a irritou. Eu me lembrei do dizia, quando a apressava para saímos para algum lugar: “Essa mania de chegar antes do horário é tenebrosa, Elias! Nem parece brasileiro!”. Comecei a rir sozinho, enquanto o garçom perguntava sobre o que pretendia pedir. Como deve imaginar, pedi água mineral com gás e que esperaria a minha acompanhante chegar para completar o pedido. Continuei a rir por me lembrar dos critérios sem justificativas plausíveis usados por você para exaltar ou atacar os seus conterrâneos. Chegar atrasado era um costume que colocava como uma boa prática. Outra coisa que a irritava a ponto de decidir se separar de mim é que dizia que eu nunca saía do prumo. Sempre estável e compreensivo, a absolvia todas as vezes que perdia as estribeiras comigo, normalmente por ciúme. Por confiar em você e por adotar a postura de que se apaixonasse por alguém, eu não nada faria. Explicitamente disse que era livre e que, apesar de amá-la, não forçaria uma barra para que ficasse com você. Que se quisesse ter outra pessoa como companheiro ou companheira, sairia do caminho. “Mas você não lutaria por mim?”. Eu me lembro de olhar em seus olhos e após uma pausa dramática, dizer: “Não!” Por isso, eu me penitencio, o meu orgulho falou mais alto. “Então, por que estarmos juntos? Vamos nos separar!” – falou com a voz entre embargada e chorosa. Respondi, de forma dura e intimamente irritado, sem deixar transparecer, o que deve tê-la ferido ainda mais, um simples: “Okay!” – assim como repeti o mesmo “Okay!” de mim para mim, quando você não foi ao nosso encontro. Preferi lhe enviar uma carta porque conseguiria pensar melhor no que lhe dizer. Não sou tão ponderado quanto imagina. Internamente, o clima é caótico. Vivo no interior de meu interior sob raios e trovões que tento controlar desde garoto. Nunca lhe disse, mas quando bem jovem quebrei com um soco a cristaleira que a minha mãe amava e que era a coisa mais sofisticada que tinha em nossa casa. Aquilo me mortificou. Vê-la chorar, acabou comigo! Decidi buscar dominar essa raiva contra o mundo que me consome. É uma fúria que me autodestruiria se não a domasse. Encontrá-la foi a melhor coisa que me aconteceu. Mas aceito que queira não se encontrar mais comigo. Após uma hora de espera, pedi uma salada, paguei a conta e fui embora, tentando me adaptar num mundo sem você… fisicamente. Em minha alma, eu a amarei para sempre!

Elias,
meu amor, o “Okay!” dado por você me magoou profundamente. Saí do apartamento carregando quase todas as roupas, dizendo que não voltaria. Fiquei possessa quando pediu o meu novo endereço para que me enviasse o resto dos meus pertences. O que me retirou a opção de usar isso como desculpa para reencontrá-lo. Você tem essa capacidade de me transtornar de tal maneira… esse jeito me levou a pensar várias vezes que não me amasse tanto. Como assim, não lutar por mim? Saiba que eu estava no restaurante quando chegou, sabendo que costumava chegar antes do horário, estava lá uma hora antes. Eu me coloquei num canto que podia observar todo o movimento do lugar. Eu o vi chegar, pedir uma mesa, felizmente longe mim. Fiquei a observá-lo como fazia quando depois de entregar a sua impetuosidade prazerosa na cama, adormecia, finalmente relaxado. Percebi o sorriso que se apoderou de sua face e imaginei que estivesse pensando em mim. Isso acalentou o meu coração. Eu me senti como num encontro perfeito, sem ressalvas, sem briga, sem confronto de ideias e posturas. Você sabe que sou como um furacão. Por mais que isso me traga problemas, decidi desde muito nova que não viveria sem ser essa tempestade que seja lembrada do que a paisagem sem cor, plasmada e com gosto de sensaboria. Somos tão diferentes que o nosso encontro só poderia ser coisa do destino. Você me acrescentou tanto furor justamente por causa de sua calmaria, que creio que a nossa história deva ficar no que já vivemos. Quando pediu a conta, o meu coração acelerou, quase que saí correndo para lhe abraçar. O garçom que lhe serviu, também me serviu. Pedi a conta logo depois de você. Parece que ele sabia de nossa história. Não duvido. Por isso mesmo, amo o jeito do brasileiro ser, apesar de todos os defeitos ou por isso também. Enfim, vou ficando por aqui. De corpo e alma, eu o amarei para sempre, Elias!

Imagem: Foto por Creative Vix em Pexels.com

Lunna Guedes / Mariana Gouveia

BEDA / Notas Sobre Um Passado Recente

Domingo de Páscoa. O texto a seguir eu escrevi e não publiquei. Deixei numa capsula do tempo para ver como seria lê-lo algum dia. Queria recuperar algum escrito para a postagem deste domingo e eis que me apareceu o que está a seguir, devidamente guardado sob o símbolo do cadeado, com o nome de Notas Sobre Janeiro De 2022. Mudei o título, mas o que percebi é que é tudo tem caminhado muito rápido no atual quadrante brasileiro. A Ômicron assim como surgiu, se foi, como se fosse uma tempestade de verão, deixando o seu rastro de destruição, como a que ocorreu em Petrópolis em Fevereiro. Logo depois, o interesse pela mortandade causada pela incúria da administração pública na fiscalização de moradias em encostas foi substituído pelo início da Guerra da (na) Ucrânia, uma possibilidade indefinível, a não ser para os serviços secretos dos atores do proscênio que “sabiam” que ocorreria.

Para não deixar barato, um parlamentar brasileiro foi até onde ocorria o drama e transformou tudo em oportunidade para desfilar a mentalidade abjeta de uma boa parte de quem tem o poder no Brasil. Enquanto isso, as Forças Armadas buscavam reforçar suas demandas para manter seus armamentos em posição de ataque em alcovas de aquartelados particulares, com dinheiro público. A Pfizer, fabricante do Viagra e da vacina contra a SARS-COV-2, rapidamente recebeu dividendos que durante meses lhes foram recusados pelo último produto e que ajudaria a salvar milhares de vidas caso tivesse tido com a mesma facilidade de aquisição. E estamos apenas no primeiro terço do ano…

“É bem significativo e nada contraditório (no Brasil) que o Carnaval seja transferido para o dia em que se comemora o enforcamento e esquartejamento de um homem que lutou pela liberdade. Assim como seja tradicional que Judas seja malhado no Sábado da Aleluia por ter cumprido o percurso da Paixão daquele que pregou o perdão. Como Abril é pródigo de acontecimentos, dia 22 se completará mais um aniversário de “terra à vista”. Anos mais tarde, após a chegada dos visitantes de pele clara, Pindorama foi invadida por hordas daqueles que construíram uma História de sangue jorrado em profusão.

Prestes a ser comemorado o aniversário da cidade de São Paulo, podemos ver a reprodução atualizada dos grupos de homens e mulheres da terra, nômades se reunindo em coberturas em torno do Pátio do Colégio. A diferença é que há 468 antes, elas eram eficientes por ser o estilo de vida que as comunidades dos originais da terra conheciam. Atualmente, as tendas são moradias improvisadas, a única maneira que os desvalidos da terra encontraram para se abrigarem das intempéries. O choque de uma cidade defasada entre a grandeza que sonhou e o atraso do sistema que se nos é imposta é gritante e, ao mesmo tempo, surda.

Como a conta sempre chega, os não vacinados ou com vacinação incompleta contra a Covid-19 da variante Ômicron ocupam mais de 80% dos leitos de UTI e Enfermagem, retirando espaço de outros pacientes com tratamentos precários, incluindo o câncer, assim como aconteceu na pior fase da Pandemia. Conheci casos de pessoas que morreram por não continuarem o cronograma dos procedimentos necessários para a cura. O Negacionismo ou a escolha de caminhos que envolvem interesses do deus dinheiro ocorre em todas as frentes — social, econômica e psicologicamente — o que não impede que a Realidade sempre se imponha, não sem muitas dores para um grande número de pessoas.”

Participam do BEDA: Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / Cláudia Leonardi / Darlene Regina

BEDA / Tempestade E Bonança

As cachorras estão dentro da morada
Lá fora, a chuva cai forte e constante
Elas se deitam pelo chão refrescante
Da sala, da cozinha, em frente à escada

O outono se faz presente e atuante
Deita as folhas secas pelo quintal à fora
Sinto que não preciso de nada, agora
A não ser que o tempo pare de ir avante…

Nada como um minuto após o outro…
Cessada a chuva, abriu-se a paisagem clara
O sol a descortinar a sua luz de ouro
Comprovou que o tempo não para…

Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Alê Helga / Roseli Pedroso /
Darlene regina / Adriana Aneli / Claudia Leonardi /

A Filha Da Tempestade

Ela veio como um vento forte…
Mudou os objetos da casa de posição,
destelhou a minha cobertura,
demoliu as minhas barreiras,
derrubou a minha proteção…
Mudou o meu endereço de lugar
e transformou a minha identidade…

No entanto,
em vez de continuar
o seu caminho de ventania,
ficou a redemoinhar por minha vida,
a redefinir as minhas certezas…
Com ela, em verdade,
concluo que nada é certo,
que caminho pelo sentido incerto…
Que todas as imoralidades
me são lícitas…
Eu, que sempre preferi o banho
tranquilo do mar
e as carícias da brisa,
agora danço guiado pelo furacão,
mergulho nas ondas revoltas
e surfo na tempestade…

Eu, que sempre quis o gosto plano
da maçã
e os planos retos
de Buda,
hoje me refestelo de carne
e misturo com prazer carnal
os meus fluídos aos da Filha de Iansã…
Eu a amo,
mas não me esqueço
que um dia
pagarei
o
preço…

… 7, 8!

7, 8!
Giovanni Boldini, Dançarina Espanhola no Moulin Rouge

Éramos dois perdidos numa cidade suja.
Nossos caminhos se encontraram – bailarina-cerebrina e espectador-expectador…
Meus olhos a perseguirem seus passos nas esquinas-palcos.
Eu, um solitário, cercado de pessoas e afazeres,
fui beijado por ela em dia de Carnaval diante da porta do trabalho.
Ela brandiu o seu leque, fantasiada de espanhola;
eu, um espanhol fantasiado de ninguém, o roubei…
Apaixonado, atrapalhado, alucinado, amargurado, assustado,
me recusava a olhá-la nos olhos fugidios-furta-cores –
sabia que neles me perderia para sempre…
Ela me amou como sempre me conhecesse;
eu, como se nunca devesse tê-la encontrado – pecado em forma de mulher –
cristão-penitente me a me sentir condenado…

Este-eu-pobre-ridículo-homem-tempo-seco,
enquanto ela era tempestade – raios e trovões em dia claro de sol –
visão oscilante feito miragem de oásis no deserto;
nunca soube ou quis amá-la como deveria
e ela gostaria.
Preferi fugir para um lugar onde sentia frio e dor,
mais confortável do que é amar – ser enganado por meus sentidos – nunca ter certeza de onde estava ou se caminhava ou se flutuava
ou se estava a cair indefinidamente numa fossa abissal…
Consegui sobreviver à vida por ela ofertada.
Preferi passear comigo mesmo em confortável-estável-imutável-roda-gigante
num eterno domingo no parque da morte…
Nos deixamos por mensagens-rompantes-soluços-choros de criança,
sem adeus ou carta de despedida…