Projeto Fotográfico 6 On 6 / Resquícios

O que restou? De tudo o que passamos há algo que poderia ser mencionado como importante a ponto de ainda repercutir em nossas vidas? Há situações elegíveis aqui e acolá que possam ser chamadas de bons resquícios, talvez indicadores de que o quadro irá melhorar.

Do ano que passou, no dia 30 de outubro, encontrei o Alexandre. O antes mudo velhinho meio-cego de quatro patas, passa as manhãs latindo para quem caminha em frente ao portão vermelho. Ocupa um cantinho especial do sofá novo, o mesmo que a Tânia disse que nenhum dos peludos subiria.

Voltei a fazer exercícios programados. Percorria os um pouco mais de 2,5 Km até a academia, observando o percurso e suas paisagens – casas, praças, ruas, seres humanos e outros. Sempre poderia encontrar uma história à minha espera. Nesta imagem, uma casa de porto fechado – carro antigo na garagem, entulhos e lixo pela passagem – a demonstrar o abandono das pessoas que aí residiam. Talvez seja mais um caso de batalha judicial familiar, demonstração óbvia que não apenas de amor se preenche os alicerces de uma casa.

Em uma época que não estava muito bem, deu de eu encontrar monumentos à vida em meu caminho. Sobre a outra vida, homenageando de modo indireto a esta. Precisava dessas duas horas de relaxamento e visão de FuturoPresente do Passado.

A primeira manhã de 2023 surgiu limpa, lavada da chuva noturna – águas de 2022 que se intrometeram no ano novo adentro. E assim é, sempre. A separação rigorosa que nós, seres humanos fazemos, não significa nada para as estações sobrepostas umas sobre as outras como o que ocorre neste Dia de Reis, por exemplo. Tanto naquela manhã, que encerrava o final do evento de Réveillon, estou trabalhando. Apesar do peso que a palavra trabalho carrega, eu encaro essa circunstância como a oportunidade de vivenciar experiências simples e satisfatórias para mim, como olhar as cores das nuvens pintadas de Sol.

Hoje, 6 de janeiro de 2023, não deixei de cumprir um ritual pessoal – o de buscar estar presente – principalmente num local como este, junto à Via Anchieta, ao lado da Mata Atlântica. Chovia, como chove neste exato momento. Mas mais parecia um carinho úmido, feito a mão macia de uma mulher. O frio deste Verão atípico, como eventualmente virão a ser embaralhadas todas as estações, apenas é mais um detalhe de deslocamento ao qual gosto tanto de vivenciar.

* “Neste dia Dia de Reis, recebi de presente, em papel de transparente visão, uma ‘sensação de estranhamento feliz’. À primeira vista, esta fruta que encontrei no jardim parecia ser um pequeno abacate. O abacateiro que tínhamos se foi há algum tempo. Após lavá-la, ao posicioná-la para a foto, quase a confundi com uma pera. Ao toque, dada a lisura de sua casca, ficou evidente tratar-se de um maracujá mesmo, já que além das mangas (no final da safra), jabuticabas e goiabas, só temos mesmo um maracujazeiro em plena produção. A sua forma inusitada, causou aquela sensação nomeada acima. Um pequeno bálsamo em relação à antípoda ‘sensação de infelicidade entranhada’, tão em voga em 2020. Ainda assim, feliz Dia de Reis!”.

*Este texto incidental, de dois anos antes, trazia um certo otimismo, mas que agora posso entender como uma desesperada tentativa de enganar a mim mesmo que, paulatinamente, via crescer o meu amargor diante da crescente “sensação de infelicidade entranhada”, como se fosse um câncer. Ao final do desse mesmo mês cheguei ao limite, com o prenúncio de uma crise de ansiedade que me fez buscar a ajuda das águas litorâneas. Um mês depois, nascia o projeto do livro lançado pela Scenarium, ainda em 2021: Curso de Rio, Caminho do Mar.

Participam: Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins

#Blogvember / Desmemoriado

“… as memórias ficam suspensas dentro de mim…”, por Mariana Gouveia, em As Estações

Eu me lembro de meus sonhos de infância, mas a própria vivência infância está envolta em nebulosidade. Várias das minhas lembranças entraram para a galeria de memórias em suspeição – sonhos ou vivências? Que não melhorou com a chegada da adolescência. São recorrentes os momentos em que evito encontrar colegas de escola por não me lembrar de seus nomes. É comum começarem a descrever situações que lembram como se tivessem acontecido ontem, enquanto eu mal me recordo de episódios recentes. Não que seja de todo desmemoriado. É que a minha atenção recai sobre assuntos e episódios totalmente aleatórios, muitas vezes sem importância ou conexão com circunstâncias importantes. Com isso, costumo chamar a minha memória de “randómica”.

Como consequência, acabo por me ver envolvido em discussões que tem os seus bons motivos: não me lembrar de coisas relevantes para as pessoas com as quais convivo – colegas, amigos, familiares – próximos ou não. É como se eu não desse a mínima para eles. E por mais que seja involuntário, não deixo de sofrer com isso. Essa dispersão-suspensão de fatos no tempo talvez tenha explicação – sintomas de TDA – que eu consideraria leve. Esse autodiagnóstico leva em conta que eu consiga me concentrar no trabalho e quando escrevo, ainda que os padrões não se assemelhem quando comparo essas atividades.

No trabalho, consigo planejar todas as etapas, horários e uso de equipamentos. Bem, vez ou outra, o nosso sistema de checagem e re-checagem falha. Na escrita, parto de ideias que surgem de repente ou de bases bem definidas, pré-estabelecidas. Apesar de, nas duas vertentes de produção, frequentemente me deixar viajar na construção do texto, busco demonstrar certa unicidade no estilo.

Essas duas funções – de prestador de serviços e escritor – são como ilhas no meio do oceano revolto ou um oásis no deserto. Consigo lhe dar com os problemas que surgem como se soubesse de causas e consequências. No trabalho, a norma tem sido o de resultados exitosos. Na escrita, tenho conseguido chegar aos finais em série com satisfação. Ainda assim, o sentimento é o de constante esforço no sentido de aprimorar os mecanismos de execução e a conquista de melhores textos.

Mas eis que após o término dos eventos, não fosse a gravação e a produção de fotos que venham a recordá-los, as várias etapas são dispensadas para o porão da memória, a não ser que tenha ocorrido alguma falha. Nesse caso, as uso como aprendizagem. Quanto aos textos, então, acho que nunca deixamos de reescrevê-los. Alguns “são” o que “são” ou ficam como ficam. Outros, “merecem” melhor sorte. Principalmente, depois que os relemos. A minha desmemória ajuda a torná-los muitas vezes “inéditos”. É comum me surpreender com histórias que sei que escrevi como se não as tivessem escrito.

Essa nuvem passageira que é a coleção de minhas recordações evanescentes, apresentam as suas dificuldades. Fico a imaginar se esses recortes de situações díspares não seja uma forma de defesa contra eventuais traumas. Na confecção de um de meus livros, cheguei a abrir portas emperradas de quartos fechados e não tive coragem de ir adiante. Quem sabe, um dia, eu consiga estar preparado para mergulhar em mim…

Foto por Ekaterina Astakhova em Pexels.com

Participam: Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso

L, de Livro. L, de Luta.

Quando abrimos um livro, literalmente cometemos um ato revolucionário. A revolução está no simples fato que ler é uma ação libertária. Envolve vários investimentos como tornar acessível a leitura através de produtos mais baratos na ponta final. Mas que se inicia por um investimento precípuo – a Educação. Aprender a ler e a escrever é um direito do cidadão, constante na Constituição Brasileira. E o atual Governo Federal tem agido no sentido contrário.

A política educacional em curso menospreza o ensino universal de qualidade. Quer torná-lo somente um apêndice na produção de servidores aptos o suficiente para trabalhos técnicos ou com capacitação de serviçais mais instruídos, mas até certo grau. Produção de aprendizes e funcionários eficientes, obedientes, que não conteste o Sistema que, afinal, os sustenta no limite do consumo básico. Para que alcancem mais, são consumidos em sua humanidade – sem tempo para si e para a família. O que deveria ser apenas uma etapa para o desenvolvimento profissional do cidadão, se torna permanente. Não é incomum que os patrocinadores desse estilo de vida autofágico reproduzam a máxima: “O trabalho liberta” ou “Arbeit macht frei” – como colocada na entrada dos campos de concentração nazistas.

Sei que o trabalho dignifica. É uma expressão de autonomia e meio de progresso pessoal e econômico. Mas da maneira que está estruturado, aliena e é um meio de exploração dos depauperados pelos mais aquinhoados. Eu não tenho medo de trabalhar. Gosto de ser um prestador de serviço no setor da produção de eventos. Quem vê o sujeito que, apesar dos 61 anos, carrega, sobe e desce escadarias, monta sistemas, opera mesas de iluminação e sonorização, talvez não imagine que eu tenha passado pela Universidade, em três cursos diferentes.

A questão principal é que tenho um posicionamento que nunca aceitou as coisas da maneira que estão. Na USP, estudar História deu ensejo que entendesse que a violência é a linguagem primordial de sua construção. Depois de 522 anos de invasão de Pindorama por europeus, contemporâneo do atual estágio de violência em que matamos os povos originários; invadimos e expropriamos as suas terras; discriminamos brasileiros por raça ou condição socioeconómica, negando condições de desenvolvimento e alcance da cidadania, me angustia. Não posso ficar sem denunciar as discrepâncias que perpetuam a indignidade patrocinada por uma elite econômica espúria e tacanha.

Os livros propiciam reflexão, aprofundamento do conhecimento e fixação do saber. É um processo dinâmico que opera de dentro para fora, buscando evoluir em constante sinergia. Ao mesmo tempo, é entrópico, causando desordem aos padrões pré-estabelecidos no arranjo pessoal e social conveniente ao funcionamento do ordenamento cristalizado em faixas que bem poderíamos chamar de castas – como o existente na antiga Índia.

Basicamente, o leitor, evolui como ser pensante, estimulando uma série de repercussões que obrigam à otimização das regras sociais – empenhando-se em torná-las mais saudáveis e progressistas. Os livros causam tanto estrago ao status quo que os mesmos que defendem a utilização das armas físicas, os queimariam em praça pública de bom grado. Outra possibilidade que a História reproduz de tempos em tempos em regimes ditatoriais ou autocráticos, como sempre foi o objetivo do inominável. Não foi à toa que o setor da produção literária foi um dos mais prejudicados com aumento de impostos na atual administração.

Sou escritor, mas não prescindo da leitura de outros escritores. Não há como criar sem lidar com a criação de vários autores. Compreendi que nunca deixamos de aprender a escrever. Assim como apenas ser leitor não significa que alguém se torne mais sábio por ler. Talvez, mais ilustrado. Muitas vezes, um falso lustro que é utilizado para separar as pessoas em vezes de as unir. De antemão, entra em pauta outras qualificações humanas ligadas ao caráter e à cultura formadora. Quando encontramos defensores da ideia de que as coisas são o que são desde o começo dos tempos e que tudo deva permanecer da forma que está, não é apenas conservadorismo, mas reacionarismo.

Ler não é suficiente, mas escolher o que ler é decisivo. O gosto e as inclinações pessoais pesam na escolha. Há pessoas que, por mais que absorvam conhecimento, se direcionam na defesa de causas opressoras. Assim ler a Bíblia ou “Minha Luta”, de Adolf Hitler (ídolo do tal), não são por si obras que operem transformações no sujeito. O perfil cultural que o emoldurou exerce um peso maior. Essas leituras tanto podem servir de base de estudos para a compreensão da Sociedade humana na busca de soluções ou interpretações como pode levar o seu leitor a se tornar um adepto de concepções prontas e deturpadas.

Aprender a interpretar textos em condições de compreendê-los em todas os seus aspectos e transmitir o conhecimento adquirido de forma clara e consciente é libertador, se buscamos o desenvolvimento de uma sociedade igualitária. Isso é algo que me move, ainda que permaneça em frequente estado de espanto por conhecer a baixeza e a ignomínia as quais os seres humanos são capazes para manterem modelos de convivência injustos. Um dos livros que mais me impressionou foi “Invasores De Corpos”, de Jack Finney, originalmente lançado em 1954. Quando o li pela primeira vez, já havia assistido o filme de 1978, de Phillip Kaufman. Porém, o livro apresentou facetas mais ricas, apesar de ter gostado bastante do argumento do filme e sua execução.

Assim, ocorreu outras tantas vezes em outras produções porque interpretar palavras de uma obra original nos traz dimensões inéditas – mais interativas – da mensagem que o autor quis passar. Ver o argumento do livro de distopia fantástica de Jack Finney ser reproduzido ao vivo diante dos meus olhos como o que acontece atualmente com os seguidores de um sujeito que se auto intitula “mito” é, ao mesmo tempo algo tão temerário quanto autoexplicativo. Somos um povo crente em mitologias. Quanto mais estranhas, melhor. Quanto menos inverificáveis, mais aceitas.

Defender um passado que é baseado na manutenção da opressão social como modo de funcionamento e que, mais cedo ou mais tarde, se volta explosivamente contra a própria Sociedade é uma ação autodestrutiva. O aumento da criminalidade é indicativo disso. Não apenas abrir um livro garantirá encontrar o equilíbrio para que consigamos reformar os atuais parâmetros que exclui cidadãos de benesses tão simples quanto direito à liberdade, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à existência digna. É determinante que desenvolvamos senso crítico para questionarmos todas as situações dadas como definitivas. É uma tarefa árdua, diária, nos defendermos contra os tomadores de corpos e de mentes que desejam ver reproduzidas ad eternum as nossas mazelas como algo que devamos nos orgulhar. Com L, de luta, que lutemos para superá-las!

Educador Físico

Eu, de costas, junto com parte de meus colegas no curso do Prof. Luiz Henrique Duarte

Neste julho de 2022, faz 13 anos que iniciei o curso de Educação Física. Estava com 47, quase 48 anos que completaria logo mais, em outubro, e lá foi o quase cinquentão fazer parte de uma turma de jovens que buscavam o sonho de começar uma profissão com a qual se identificavam. Quer dizer, eu era um dos poucos que realmente iniciava do zero o estudo dos fatores que desvendavam o movimento do corpo humano. Boa parte dos estudantes já estavam envolvidos com a atividade física como instrutores informais, com o conhecimento desenvolvido através da atividade prática.

De início, a módulo era o de Licenciatura. Isso me daria a oportunidade de dar aulas em centros educacionais. Mas esse não era o meu objetivo imediato. Dois anos antes, eu tive um episódio de hiperglicemia resultante da Diabetes, só então identificada. Fui parar na UTI, passando perto de morrer, assim como já havia ocorrido com um amigo querido. Através de uma dieta rigorosa, baixei o meu peso, o que foi suficiente para deixar de tomar insulina injetável e passasse apenas à medicação diária de controle.

Assim como quando havia me tornado vegetariano, aos 17 anos, o meu corpo mudou de forma. De 105 Kg passei a 75 kg, desencadeando um processo estranho – eu me assustava sempre que ao espelho não reconhecia o meu rosto. Mais jovem, na primeira fase de emagrecimento, ocorreu o contrário. As pessoas me olhavam assustadas por minha magreza – choque inevitável decorrente da adaptação à nova alimentação – enquanto cria que continuava com o mesmo corpo. Ou seja, havia desenvolvido distúrbio de imagem. Corriam os anos 80, época do advento da AIDS e muitos me olhavam com desconfiança. Não ajudava em nada a minha iniciativa de raspar a cabeça. Alguém chegou a dizer que eu parecia um refugiado de campo de concentração.

Essas experiências me levaram a escolher a Educação Física para compreender os processos metabólicos e as possiblidades do desenvolvimento do corpo através de processos mecânicos propiciados pela atividade física. Porém, eu nunca voltaria à faculdade se não fosse o incentivo da Tânia, preocupada com o meu semblante um tanto tristonho. Decretou que eu estava sofrendo sintomas de “Síndrome do Ninho Vazio”, caracterizado pela perda da função de pai, diante da ausência cada vez mais acentuada das minhas filhas em casa.

Além disso, especulou a possiblidade de que pudesse vir a ganhar muito dinheiro como eventual técnico de Futebol, assim como Muricy Ramalho, cotado na época para um salário de 500 Mil Reais mensais no Palmeiras. Na realidade, as funções exercidas pelo profissional de Educação Física são mal remuneradas em todas as suas vertentes, incluindo a do professor, a não ser que o profissional alcance o reconhecimento como personal trainer ou atue em uma carreira como técnico esportivo de algum esporte popular em um clube de projeção. Isso, depois de muito tempo de atuação e aprimoramento técnico

Normalmente, assim como ocorre até com os médicos em início de carreira, o processo de proletarização das profissões é cada vez mais acentuado. As mudanças no perfil das mais antigas, além do surgimento de novas atividades profissionais tem alterado o mercado de trabalho. A tendência é o do desaparecimento de muitas delas, mas creio que o de transmissor de conhecimento continuará a ser essencial, como se provou na Pandemia. Por isso, já em nos Anos 80, quis me tornar professor, mas de História. Nessa minha segunda incursão, mudei radicalmente ao escolher algo ligado à atividade física. Porém, se enganam os que creem que não seja requerido o uso da mente, do raciocínio, do estudo para isso. Depois dos três anos de Licenciatura, quis fazer o Bacharelado. Estava decidido em terminar a graduação básica. Como qualquer área de conhecimento, o aprendizado nunca termina. Vale para o estudo, vale para a vida. 

Terminei o Bacharelado em 2013. Havia a possibilidade de até exercer a profissão em um projeto que fui chamado a participar, mas no mesmo período aumentou bastante a minha atividade como locador de sonorização e iluminação. Até pouco tempo antes, além de me ajudar a compreender a biomecânica corporal e ter tido contato com jovens que me estimularam com a sua energia, tinha dúvidas do real valor da minha passagem pela faculdade. Até que começou a pipocar as publicações de lembranças em que meus colegas de curso me buscavam para tirar dúvidas em relação às matérias, trabalhos e até passar indicações de estudos. Eu não era o melhor aluno da classe, mas era bom na escrita, estruturação de textos e formulação de trabalhos escritos. Nesse quesito, ajudei a vários dos meus colegas na conclusão do curso e sinto ter cumprido o meu papel.

Outra consequência que observei é que a passagem pelo exercício da escrita, ainda que tenha sido eminentemente técnica no curso de especialização profissional, me proporcionou a retomada pelo gosto de escrever novamente. Dois anos depois, ingressei na Scenarium, Eu me beneficiei do conhecimento adquirido nesse período, o que é mais do que se pode esperar da maioria das coisas que aprendemos ao longo de nossa existência. O estímulo pessoal provocado pelo contato com o pessoal da Educação Física também me ajudou na revitalização de ideias, melhoria na qualidade de vida concomitantemente ao desenvolvimento de consciência corporal. E como já disse Beda, um pensador britânico, existem três caminhos para o fracasso: não ensinar o que se sabe, não praticar o que se ensina e não perguntar o que se ignora. E eu continuo um eterno curioso sobre a vida.

Caramujo*

Em Maio de 2016*, escrevi:
“Assim como o homem ganhou o espaço dos pássaros e aprendeu a voar, no solo adaptou ensinamentos dos companheiros que habitam este planeta para sobreviver. Basta força de vontade, força física e mental. Eu e o Humberto estávamos descarregando o equipamento para o evento de sábado na região da Faria Lima quando avistamos uma grande carroça, com uma tenda adaptada, a se aproximar lentamente, puxada por um homem. Aquela rua sem saída devia ser o local onde estacionavam.

Dentro dela, percebi a movimentação de pelos menos duas pessoas e um cachorro… Imediatamente, entendi que ali estava, além da casa onde aquela família morava, o ponto onde armazenavam o que recolhiam nas ruas da região. O que foi corroborado pelo movimento que presenciei logo depois, quando descarregaram o material reciclável recolhido… Já ouvi se dizer algumas vezes que é feliz o caramujo, que carrega a sua casa nas costas… E o homem, seria também?…”.

Para além da aceitação de um estilo de vida alternativo, o aumento recente dos moradores em situação de rua é devido a perda do trabalho e renda, obrigando-os recorrer a trabalhos ocasionais, os chamados “bicos” ou até, mais radicalmente, a expedientes que os marginalizam, como furtos e assaltos mediante ameaça. Há poucos que, conscientemente, decidem estabelecer a rua como moradia permanente, mas há. A decisão se dá por conflitos familiares ou por uso de entorpecentes que gradativamente os afastam do núcleo familiar.

Eu me lembro que o pessoal da carroça citado no texto se sentia bem à vontade nas condições da sua “moradia”. Mas como sabemos, aprendemos a viver dentro de determinados parâmetros, os piores possíveis, por questão de sobrevivência. A independência tem o seu preço a cobrar, ainda que seja difícil crermos que pouco dinheiro seja imperativo para a liberdade seja bem vivida. Ficar ao largo do Sistema, mesmo que vivendo de suas sobras, acarreta consequências.

Eu me lembro que quis um dia viver fora dos pressupostos que a Sociedade estabeleceu como o ideal — casa, esposa e filhos, trabalho — com férias remuneradas uma vez por ano. Aos 17 anos, quando me perguntavam o que eu seria profissionalmente, respondia pura e simplesmente: Lixeiro. Eu já estava, no final dos anos 70, bastante envolvido nos movimentos que buscavam uma civilização humana mais consciente do destino de Gaia. Anos antes, na primeira vez que li que as florestas eram “recursos econômicos”, fiquei horrorizado por essa visão mercantil que tratava as árvores apenas como material consumível, não como vidas que constituíam biomas, ecossistemas, organismos desenvolvidos.

Sabia, mesmo tão novo, que o Lixo era um recurso inestimável. Apenas não havia interesse empresarial em investir na transformação desse bem de capital em bens de consumo. Atualmente, recolher resíduos recicláveis tornou-se a atividade de um grande número de pessoas que constituem um elo importante na corrente que levará à transformação de nosso estilo de vida predatório para um menos agressivo. Fico a imaginar que, naquela carroça, poderia estar eu e minha pequena família caso eu tivesse enveredado radicalmente pela rua como moradia.