BEDA / Casa 6 — Rua 2

Casa 6
Antes-Da-Hora

O menino nasceu após sete meses de gestação. Desde cedo compensava a pouca estatura com agilidade. Foi um veloz atacante no time de futebol da escola e sonhou, como todo menino, pisar os melhores gramados da cidade. Tornou-se office-boy e aos dezoito decidiu ser motoboy — um Cachorro Louco.

Desenvolveu conhecimento de todos os atalhos da cidade. Tinha um mapa nos olhos e não perdia tempo. Ficou famoso por sua rapidez nas entregas. Ganhou prestígio-admiração-respeito. Era cumprimentado pelos iguais nos cruzamentos. Se tornou uma lenda do asfalto urbano e ganhou a alcunha de Antes-Da-Hora.

Conheceu Rita — menina de sorriso fácil-largo — no escritório dos motociclistas. Era ela quem lhe entregava o endereço de retirada-entrega das mercadorias. Ela o admirou assim que soube quem era. Se apaixonou pela lenda, ganhou capacete e carona para voltar para casa no final da tarde. Gostava de sentir o vento ao passear por entre os carros, romper o sinal antes-da-hora e chegar a casa na velocidade da luz.

Antes-Da-Hora traçou planos: constituir família com Rita. Sabia todos os caminhos que teria de percorrer. Passou a trabalhar cada vez mais para construir o melhor futuro para os dois.

Depois de fazer uma entrega, a última do dia e com tempo de sobra, voltou para buscar sua amada. Chegou antes da hora e a encontrou nos braços de Paulão, a escalá-lo em sobressaltos-sussurros-agudos. Antes-Da-Hora correu da cena. Subiu em sua moto e alcançou a Marginal, acessando a Pista Central, nunca usada. Costurou o trânsito, enfiou-se veloz entre duas carretas. Mais um Cachorro Louco perdeu a vida no asfalto da cidade, que sofreu mais um dia de caos.

CASA 6“, conto constante do livro de contos curtos “RUA 2“, lançado pela Scenarium Plural Livros Artesanais

BEDA | Pés

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Pés, para caminhar…

Nós, seres humanos, somos bípedes. seres caminhantes, desde que alinhamos a coluna vertebral, nos primórdios de nossa evolução. Eu sou, além disso, um pedestre. Parece estranho distinguir essa condição, mas por estarmos cada vez mais motorizados, realço a minha profissão de fé em caminhar. Obviamente, me utilizo de automóveis para me deslocar de um lado para outro, tanto profissionalmente quando para outros compromissos. Apesar de “ideologicamente” rejeitar o carro como a melhor opção de transporte, depois dos 30 anos, casado, me senti impelido a fazer aulas de direção. Mas não me tornei motorista autorizado. Não consegui passar nos exames. Falhei três vezes. Não insisti mais.

Quando fiz 18 anos, a primeira decisão que tomei para me sentir descompromissado com o status quo foi o de não tentar tirar carta de motorista – documento emblemático para o ritual de passagem da adolescência para a vida adulta. Para corroborar minha atitude, em certa ocasião vi uma exposição fotográfica no Instituto Goethe, a respeito da cultura do carro, da construção de vias preferenciais, “autobahns” e de como somos condicionados a utilizar veículos motorizados individuais como indicativo de autonomia, quando, na verdade, criamos dependência, além de uma relação quase pessoal-amorosa com o objeto-icônico – motivo de altercações leves a violentas, a culminar com crimes de morte por simplórias questões de trânsito.

No atual estágio, apesar de haver crescimento dos alternativos, o carro é um “ser” poluente, excludente (aparta as pessoas em vez de congregá-las) e assassino. Já ouvi dizer que se quisesse cometer o crime perfeito, um atropelamento seria a forma mais viável. Horrível, mas verdadeiro. Basicamente, é aço contra carne. E tudo isso, em nome de um suposto conforto, à custa de muito desgaste emocional e financeiro. Mas, enfim, precisamos continuar a movimentar a Máquina.

Ontem, foi o Dia Internacional do Pedestre. Data instituída no mesmo dia da feitura da famosa foto que mostra a travessia dos The Beatles por uma faixa de segurança, capa do “Abbey Road”, de 1969, 12º e último disco da banda de Liverpool. Afora o mérito do lançamento dessa obra, que gerou especulações de todas as ordens, ser pedestre é quase uma profissão de fé. Sobrepondo uma questão a outra, um sonho meu será fazer a caminhada de São Thiago de Compostela. Juntarei o desejo de visitar a terra de antepassados ao sentido de fazer valer a direção que tomei na vida.

Depois de décadas sofrendo com o encravamento de minhas unhas dos pés – principalmente dedões –, comemoro a doma e a estabilidade proporcionada pelo tratamento com a Milena, minha podóloga. Graças à sua intervenção, posso caminhar sem dor. Calçar um sapato sem a perspectiva de retirar um instrumento de tortura é um alívio e tanto. Além disso, mostrar os pés nus sem ofender o olhar dos outros, já garante a despreocupação de caminhante-pedestre por função e opção. Rendição à imagem, mas igualmente signo de liberdade.

Participam:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari