#Blogvember / O Transplante

“Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano”, por Lua Souza, em Estratosférica.

O meu coração já não funcionava bem há algum tempo. Dr. Nino já havia me alertado para que eu mudasse o meu estilo de vida ou não conseguiria ultrapassar os próximos dez anos sem sérios riscos de ter um infarto. Dei de ombros. Continuei trabalhando 12 horas por dia. Comia irregularmente. Passava a maior parte do tempo sentado diante do computador ou fazendo reuniões de intermináveis. Encontrava motivos diversos para permanecer o mais distante que pudesse de casa, onde encontraria Carla, minha esposa. E a sua mãe, Djanira.

Carla era a típica mulher-troféu. Ideal para apresentar nas festas e esfregar na cara das pessoas a minha vida de sucesso. E só. No mais, além de sapatos e roupas, colecionava amantes. Sabia de todos. Mantinha um deles como meu informante. Bem remunerado, ele me alertaria caso surgisse algum mais esperto que quisesse avançar sobre a grana da família. Aliás, qual seria essa família? Não tinha filhos. Quando Carla engravidou, eu a avisei que abortasse se quisesse continuar com o bem-bom. Eu havia feito vasectomia e não revelei a ela essa pequena informação quando nos casamos. Órfão desde os 15 anos, quando meus pais morreram num acidente de carro, o único ser ao qual amava era Petúnia, uma viralatinha que apareceu jogada no jardim de casa entre as flores desse tipo. Aliás, muitas vezes a trazia para a empresa, onde tinha um espaço feito apenas para ela. Se bem que, na maior parte do tempo, ela preferisse ficar aos meus pés.

Numa dessas ocasiões em que me abaixei para acariciá-la, senti uma dor absurda na lateral do pulmão esquerdo, que me fez perder os sentidos. Soube que os insistentes latidos de Petúnia alertou a minha secretária, que chamou o médico de plantão na empresa. Fui levado para o hospital rapidamente, o que impediu que eu morresse naquele dia mesmo, há cinco anos. O meu médico disse que o meu caso havia se deteriorado tremendamente. As ausências contínuas nas consultas agendadas contribuiu para que ocorre a formação da tempestade perfeita. Colocado na fila de espera, voltei para casa e praticamente pagava para que sogra e esposa passassem fora a maior parte do tempo. Isso durou três meses. Até que fui chamado para fazer a cirurgia. Um coração compatível surgira. Era de um jovem rapaz, entregador de aplicativo de alimentação que foi jogado para o canteiro central da Marginal Tietê por um caminhão.

O Dr. Nino me disse que esses rapazes eram os doadores mais comuns de órgãos no sistema. Nos dias que fiquei internado, não queria visitas, mas Carla apareceu para ver como eu estava. Não duvido que quisesse boas notícias, como a que anunciasse que operação não teria dado certo. Mal sabia que não ficaria com nenhum centavo, caso eu morresse. No afã de assinar os papéis do casamento, não percebeu que estava incluído um contrato pré-nupcial. Mas estranhamente, fiquei bem ou até melhor. Senti que algo havia mudado em mim. Cresceu um sentimento de dívida de gratidão para com o meu doador desconhecido. Simplesmente, alguém precisou morrer para que eu sobrevivesse.

Coração transplantado, passei a procurar resquícios do que já foi humano em mim. O que via antes como dispensável, como um sorriso ou o desabrochar de uma flor, ganhou significados que não sabia explicar. É como se o coração do rapaz morto me induzisse a caminhar na direção contrária à que sempre fui. Comecei a perceber que na minha vida eu sempre havia buscado os limites do que me trazia prazer ou repulsa. Casar com Carla fez parte de uma jogada para ganhar uma concorrência, já o que pai dela era dono de casas de aluguel que impediam a construção de duas torres de escritórios na Aclimação, com um grande potencial de crescimento imobiliário e lucro garantido. O Seu Genaro era um homem probo, mas a sua linda filha percebi no momento que a vi que era, como dizia a minha mãe, uma aventureira. Talvez influência da minha sogra. Foi um negócio como outro qualquer. Por louvor a ele, mesmo que me separasse, não as deixariam desamparadas. Aliás, só havia me permitido pensar dessa maneira depois do transplante.

Como me sentia quase sendo outro, fiz o teste mais confiável. Olhei nos olhos da Petúnia, como fazíamos de vez em quando. Após um minuto, ela me lambeu, como de costume. Eu ainda habitava o meu corpo, com um coração não apenas novo, mas renovado. Decidi conhecer a família do rapaz que me doou o órgão. O Dr. Nino me passou todas as informações. Morava na Zona Leste, praticamente uma outra cidade dentro de São Paulo. Eu apenas passava ao largo dela quando o meu motorista me levava ao Aeroporto de Guarulhos. A mãe de Geraldo, meu doador, morava numa comunidade que antes, sem conhecer, chamaria de favela, com todo o peso preconceituoso que carregava. Para não chamar muito a atenção, pedi o carro do meu motorista emprestado para me aproximar de sua residência. Próximo, perguntei onde morava Dona Alba. Ninguém soube me responder. Talvez desconfiassem de um tipo que nunca haviam visto antes. Para um senhor, citei que se tratava da mãe do rapaz que morreu, o Geraldo.

– Ah, é a Dona Generosa… Ela mora ali, naquela casa cheia de vasinhos com flores e plantas penduradas. O senhor veio por causa da indenização? Nossa! Ela e a nora estão precisando muito de dinheiro. Ainda mais com um bebê novo em casa.

Sem saber o que responder, disse que sim.

O senhor fez questão de me acompanhar até a casa.

– Dona Generosa! Oh, Dona Generosa!

A voz poderosa do senhor parecia entoar o refrão de uma canção. Soube depois que se tratava do puxador da escola de samba da comunidade, Seu Arlindo.

Diante de mim, surgiu uma senhora preta, de olhos brilhantes, percebidos mesmo por detrás dos óculos. Como a completar a imagem de entidade, uma cabeleira branca conferia a ela o efeito de aura.

– Pois, não?

Sem saber o que dizer, passei a gaguejar. Em dado momento, comecei a chorar feito um menino. Só pude ousar abraçá-la. Abraço retribuído, ela me disse, num fiapo de voz:

– Meu filho…

Participam: Suzana Martins / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Guedes