Eu nasci velho. Banguela, meu sorriso de menino era de quem suspeitava que as coisas aconteceriam como se fosse uma reprise. Eu, quando comecei a crescer, encarava como se vivesse um dèjá-vu diário. Não era incomum que me imaginasse revisitando situações já vividas. Quando novo, já havia decidido não me casar. Não queria participar de um jogo de cartas marcadas, mesmo porque nunca fui bom em carteado. Aliás, pouco aprendi a viver e a jogar. Cheguei à vida adulta totalmente despreparado para viver sob as regras de um homem maduro. Aliás, quando me vejo em situações de adulto mais velho, como aquele que estou a me tornar, percebo que sou mais sensato do que os que jogam sob as regras do Sistema. A medida é não passar por cima das pessoas para me sentir melhor, como é comum acontecer frequentemente. Tanto no trânsito, quanto nos espaços que frequento como cidadão. Ser homem deveria ser uma vantagem neste mundo, mas como me envergonho muitas vezes de pertencer a esse gênero, tento passar despercebido como tal. É claro que sendo alguém que não se permite deixar de ver as degradações de nosso País, protesto, escrevo textos, converso a respeito, me coloco como antípoda desse processo degradante sob o qual vivemos. Mesmo que soubesse que dificilmente as circunstâncias mudassem radicalmente — estudante de História desde sempre — já tive esperança de que mudássemos de rumo, mas o animal humano não consegue deixar de ser autodestrutivo. É bem possível que essa capacidade nos leve à extinção. O pior é carregar conosco todos os outros seres que compartilham o planeta como residência. Eu sei que podemos desejar nos matar. Já passeei por essa trilha. Sei o quanto podemos visitar a escuridão e o desejo (mas já não mais) de cessar tanta dor.
o que se esconde atrás do olhar das meninas sérias? o futuro de tantas que surgem impetuosas em seus desejos de progredirem em um mundo que lhes são adverso que crescem em funções e ações que lhes eram vedadas porque são capazes são sagazes são espertas são ousadas que percebem encontrarem inimigos entre homens velhos e jovens os primeiros não conseguem lhe dar com o novo os segundos ouvem histórias de tempos passadiços em que dominavam o mundo apenas por carregarem penduricalho entre as pernas e de si sentem pena por que no meu tempo? tudo seria mais fácil… elas não querem mais gerar meus filhos como acontecia antes meu pai me conta como era bom o homem era disputado símbolo social de pertencimento as meninas sérias querem ser mais do que mães querem criarem-se a si mesmas tornaram-se melhores pessoas fazerem o futuro prosperar em autonomia e autossuficiência serem múltiplas femininas se quiserem fêmeas se desejarem companheiras de homens se lhe for conveniente de mulheres se preferirem poderem escolher quando e quanto entre o sim e o não pela mente ou pelo coração…
eu acordei hoje velho quase sempre acordo jovem e só restabeleço o que sou ao surgir do outro lado do espelho sonhei que era criança foi um sonhinho-lembrancinha menino pequeno queria ser crescido ficava indignado egoísta queria me sentar sozinho no banco do ônibus minha mãe puxava para o colo entre suas pernas de pelos mal aparados pinicavam deixa os outros se sentarem queria ficar na janela vendo o mundo passar rápido mais rápido menos rápido às vezes o mundo parava minha mente continuava antecipava surpresas
voltei velho fui à feira quando garoto gostava de falar com velho o velho de hoje puxa assunto quase ninguém lhe responde olham desconfiança ou indiferença na banca de frutas um velho de longos cabelos e barbas brancas puxa fumaça de um apequenado cigarro de palha seu olhar é mais profundo do que uma fossa oceânica de tantas turbulências acalmadas na escuridão passo por um bar velhos jogam dominó perdem partidas ganham idade um deles olha para as peças como se fossem pedaços da vida que insistiam em não serem encontradas respira pesado ar que pouco permanece e se esvai mais um ser antigo caminha com seu velho cão comem do mesmo pão são amigos pais filhos irmãos qualquer um que partir antes levará consigo seu ente querido darão adeus às mútuas lembranças esquecidos
desconsolado desço a angélica por uma travessa chego ao portão lateral cemitério da consolação me movo entre pedras me perco revisito jazigos pássaros cantam persigo ruelas ventos sopram pareço ouvir vozes dos que se foram admiro mausoléus árvores respiram o sol ilumina o tempo construções desabam em silêncio registro estátuas vivas os mortos falam piso sobre lágrimas que já secaram acalmo os meus pensamentos divago tropeço em mim busco solução os eternos moradores respondem desde o chão calma… tudo está em dissolução…
Foto: imagem pessoal de um mausoléu do Cemitério da Consolação.
Quem sou eu, quem é você? Sabemos quem somos, para além das marcações corporais imagéticas? Ou somos as experiências que vivemos? O que versamos sobre o que vemos? O que mentimos sobre os nossos sentimentos como se criássemos uma personagem que nos identifica como ser? Ao mesmo tempo, estamos enquadrados por perspectivas alheias à nossa vontade. E muito de nossa vontade é moldada pela a Realidade que nos propõe um sistema que geralmente aceitamos como padrão. Aqui, para quem vier a me ler — você — verá rascunhos da minha vida que dou por conhecer por minhas palavras e através das imagens que colhi por onde passei ou fiquei nos últimos dez anos.
In Planet Of The Apes… (2020)
A primeira foto data de 2014. Treinava regularmente. Faz três anos, justamente em janeiro, que não entro em uma academia. O ritmo de trabalho aumentou tanto que não tive mais tempo para sentir a dorzinha gostosa da atividade física regular. Quando estou em casa, me dedico a escrever ou a realizar tarefas caseiras. Quando subiu a primeira imagem, de seis anos antes, percebi que usava a mesma camiseta — uma das minhas favoritas. Registro feito, apesar de ser fiel às minhas velharias, não imaginava que a ela fosse tão antiga. Já o velho, tenta viver um dia de cada vez In Planet Of The Apes…
Sobre cabelos (2019)
Subo ao coletivo, passo a catraca, sento-me junto à janela, a qual deixo entreaberta para sentir o vento e me refrescar neste dia quente. Começo a suar mais do que devia e percebo que a janela do meu lado estava fechada. Imaginei que tivesse acontecido pelo movimento do ônibus. Voltei a abri-la. Mais alguns minutos, a vejo novamente fechada. Estranhei e olhei para o banco de trás, onde havia uma moça que sorriu amarelo e murmurou: “o vento estava bagunçando o meu cabelo…”. Realmente, ela estava com os fios retos postos lado a lado como se fossem desenhados. Sorri de volta, outro sorriso amarelo. Não tive coragem de revelar a ela que a sua maquiagem, devido ao calor, estava escorrendo um pouco…
“Olha a planta!”… (2017)
Ouvi o pregão, a ser entoado havia já algum tempo. Varria o quintal, vestido apenas com um roupão e vi passarem frente ao portão vazado, em pequenos passos, aquela figura totalmente inesperada nesta manhã de domingo. Personagem único, o vendedor de plantas — aliás, bastante vistosas — apesar de sua condição difícil, não se permitiu ficar plantado, mas sim a distribuir exemplo de vida e vitalidade por onde se conduzia. Antes tivesse tentado chamá-lo, apesar da minha vestimenta, para prestar a minha homenagem, saber mais sobre ele e suas plantas, adquirir alguma… Arrependimento registrado, espero reencontrá-lo dia desses…
A crise nunca vem sozinha… apenas a pombinha apartada dos seus….
CÍRCULO DA LUA (2013)
Na manhã de sábado, enquanto caminhava rumo à academia, observei uma concentração incomum de urubus (pela quantidade, os tenho chamado de pomburubus) sobrevoando bem alto a área do Piscinão do Guaraú. Talvez tivesse uns quarenta ou mais, voando em círculos em torno de um ponto mais claro no céu azul. Para a minha surpresa, se tratava da Lua em seu último quarto. Foi um benefício adicional ao meu esforço de voltar à atividade física. No céu da cidade de São Paulo é raro a vermos, mesmo à noite, já que as luzes artificiais impedem que o nossos olhos alcancem o belo astro para além da prisão luminosa em que estamos.
Os urubus são seres fascinantes! Tom Jobim, igualmente, quedava extasiado com as elegantes circunvoluções dessas aves necrófagas. No entanto, o voo alto é uma das formas que esses seres buscam alimento. São importantes na limpeza do meio ambiente — quando alguns animais morrem por doença, por exemplo — o urubu ajuda a controlar a epidemia devorando as suas carcaças. Possui uma envergadura de 2,40 m e peso que oscila de 3 a 5 kg, medindo cerca de 85 cm de comprimento. Na Natureza, tem poucos predadores naturais, mas, devido à sua baixa capacidade reprodutiva, além da degradação do seu habitat, é uma espécie cada vez mais rara de se observar. O que significa que nós passamos a ser seus predadores…
No foi o caso desse dia, onde a revoada de tantos entes alados fazia lembrar um bom filme B. Aquela área onde os tenho observado em número cada vez maior, o Piscinão doGuaraú, recebe os rios canalizados da região, impedindo que as águas do vale invadam o também canalizado RioGuaraú, que desemboca no RioTietê. Todo o lixo orgânico e anorgânico que é jogado ou cai nos esgotos da região se espraia por todo o perímetro dele, tornando-se um verdadeiro “fast food” para eles. Ou seja, de uma maneira enviesada, estamos proporcionando um verdadeiro criadouro para os membros da espécie Sarcoramphuspapa(L.).
São as voltas que vida dá…
PICTÓRICO (2013)
Ontem, a chuva faltou ao nosso encontro diário. Ela era nossa assídua companheira desde que começou 2013 e, para arrematar a tarde seca, o Sol nos deixou com a promessa de que voltaria no dia seguinte, com toda a pompa e circunstância — anúncio que, de fato, se cumpriu. Gosto de ver a luz solar refletir-se nas fimbrias do horizonte, a iluminar as construções, a produzir desconstruções de linhas e perfis no relevo. Já postei várias fotos desses momentos do entardecer em que vejo a luz comemorar o seu poder transformador. De início, o tom amarelado ajudava a dourar as casas de alvenaria e tijolos aparentes, no morro adjacente à minha casa. Passado algum tempo, no entanto, chamou-me a atenção, quando o astro já estava quase totalmente recolhido, o azul que substituía a paleta terrosa. Conjecturei que o ângulo de inclinação de sua luz, ao refletir no céu, azulava pictoriamente tudo em seu entorno. Logo, o assombro tomou conta dos meus olhos e, o anil, de toda a paisagem.
Das voltas que o mundo dá, o solitário jardineiro encontrou uma rosa-moça pela qual se apaixonou. Ela, de pétalas recém-nascidas, à luz do sol, orvalhadas, ofereceu-se a visão do homem calejado. A sua imaginação acossada fez renascer o desejo no velho artesão da poda. Sentiu-se remoçado pelos olhos-espelho da enérgica filha da roseira. Pareceu encanto, magia… Fez retesar vontades e a carne que quer se refestelar da rosa, o cerne. Entrar por músculos, afastar membros, conhecer o interior do corpo – vísceras, ossos e tegumentos – invadir câmaras em camas, paredes, mesas, sofás, chão, tapetes. Possuir a rosa inteira, beijá-la pétala por pétala, ser ferido espinho por espinho. Por sorte incerta das eras que se embatem, pelos ciclos que se repetem, o jardineiro e a rosa-moça se encontraram na vida dela, que se iniciava, e na dele, que se acabava, entre a tarde que se desencantava e a noite que avançava, em alegria e luto. Nesse místico instante, se amaram…