Obdulio,
penso sobre essa missiva, enquanto ouço Belchior cantar que “estava mais angustiado do que o goleiro na hora do gol” pelo celular. Estou retomando aos poucos as idas à academia, após dois anos e meio em que a Pandemia impediu que me exercitasse devidamente. Caminho os quase 3Km para a Humanas e pretendo registrar este dia – 20 de Novembro de 2022 – para deixar como se fosse uma carta numa garrafa dentro de uma garrafa. Talvez deva voltar a ler este texto, além de hoje em que o escreve, depois de muito tempo. Espero que viva num período menos opressivo que o atual, mas não há nenhuma garantia de que isso venha a acontecer.
Passeio pela sombra possível em dia de sol pleno. Dia de nuvens ausentes, por enquanto. Ao dobrar a terceira esquina, do lado esquerdo, uma cena tão comum nos dias de hoje que “entrou em mim como o Sol no quintal”. Debaixo da marquise de uma loja fechada, primeiro reparei num velho cão dormindo profundamente. Depois, na figura tão abstrata quanto poderia parecer um ser humano – quase um Picasso em movimento – andrajos como vestimentas. Junto a barraca de camping (na calçada), fechando o triângulo, mais um cão, tão velho quanto o outro. Essas pessoas que nos últimos tempos ganharam o espaço da cidade, recebem nomes como “moradores de rua” ou “sem teto” ou “em condição de rua”. Por mais politicamente corretos que queiramos parecer, são um fato social. Vieram para ficar?
Um Fusca velho chama a minha atenção e eu o registro em foto. Não pelo objeto em si – uma obra humana criada como máquina – mas que serviria de referência emocional para quem o possuiu, assim como para muitos. Essa tendência que temos em humanizar nossos bens materiais sempre me intrigou. Talvez seja a mesma tendência que transporta para imagens de santos expectativas de intercâmbio transcendental.
Meninos conversam entre si, passos lentos. Diminuí os meus para não me chocar com eles. Ouço um mais alto dizer o outro que parece desconsolado: “ela não merece a sua tristeza”. Mesmo que eu quisesse, não criaria uma frase tão interessante para compor esta carta. O ouvinte olha para o nada e dá um gole numa garrafa com suco de laranja que carrega à mão.
Mais à frente, a comunidade junto ao Piscinão do Guaraú me surpreende com a audição de “Acabou Chorare” dos Novos Baianos. A voz de Moraes Moreira, que este ano nos deixou, me trouxe de volta para quando bem novo adotei a sua turma de Pepeu, Baby e Galvão como uma das minhas bandas favoritas.
Passo em gente ao Jatobá, o ser mais velho do bairro, para o qual peço uma benção. Em poucos metros, encontro dois bares intercalados por Igrejas Pentecostais. Creio que tanto um tipo de estabelecimento quanto o outro, só seja superado em número por barbearias e bancas de pastel.
“Fala”, canta Secos & Molhados em meu ouvido: “Eu não sei dizer nada por dizer / Então eu escuto / Se você disser tudo o que quiser / Então eu escuto / Fala…”. Um conselho que deveria seguir. Constato quando respondo a uma chamada na qual quem me fala, não consigo deixar de interromper. Quem quer falar sobre suas crenças são os apóstolos de Testemunhas de Jeová (nome que acho inspirador) que avançam de dois e dois para portões da avenida na qual se localiza a Humanas. Uma dessas duplas me chama mais a atenção. Trata-se de um casal que sorri de um para o outro, trocam palavras de carinho, enquanto mantém as mãos dadas em palmas. Há amor, acima de tudo. Reconheço um afeto, apesar de uma fé que manifestam preceitos que eu não adoto.
Enganado com o horário que encerra as atividades da academia uma hora antes do que eu achava, volto para a casa disposto em apenas voltar para a casa ouvindo música. Passando em frente a um portão, um cão por trás das grades mantém o olhar fixo para o outro lado da avenida. Desvio a minha visão para o ponto que encontra um outro cão que festeja a sua liberdade junto à sua tutora. Quase vejo materializado o seu pensamento. Ou serei eu a me sentir enquadrado em situações que me faz olhar longe – para um ponto no futuro em que você estará melhor – menos tenso, menos enredado com dúvidas, mais livre, ainda que mais velho ou, até por isso mesmo, mais maduro.
Deixo o meu abraço fraternal, meu caro!
Obdulio
Participam: Roseli Pedroso / Lunna Gouveia / Suzana Martins / Mariana Gouveia