BEDA / Elton

Chamarei este texto de “Elton”, mas poderia ser chamado de Fred, Cazuza, Renato ou George. Em comum, nomes de pessoas conhecidas como artistas da música popular. Em comum, além da exposição midiática de suas vidas e vísceras, a criatividade, o talento para determinada função, o abuso no uso de substâncias químicas, a extremosa paixão que geraram. O mesmo vigor que empregaram para produzir momentos que marcaram gerações de fãs foi da mesma gênese que levaram a quase todos a nos deixarem mais do cedo do que gostaríamos, egoístas sugadores de energia que somos.

Insone, passei parte da madrugada a ver clipes musicais. Vivo no meio musical, a dar suporte técnico para as apresentações de artistas – instrumentistas mecânicos e vocais – músico frustrado que sou, se bem que não tenha perseverado a tocar ou cantar. Apesar do dom (no meu caso, pequeno), chama inicial que tem exercitada – a vocação – nada é tão fácil que não mereça treino, aperfeiçoamento, prática e disciplina, tudo em favor da melhor expressão possível.

A minha vontade sempre foi volúvel. E, cedo, os vários possíveis talentos que talvez tivesse, maiores e menores, foram sendo deixados de lados a favor da vontade de escrever. E, mesmo essa, coloquei em segundo plano em algum momento da minha vida. Ao voltar, percebi que a falta do exercício da escrita me conduziu a enganos – troquei a revelação da minha verdade pelos truques fáceis que podem até vir a seduzir, mas nem sempre eram autênticos – ou quase nunca.

Os temas que explorei durante a madrugada foram a ser sugeridos pela causalidade. Tento fugir das indicações normalmente ditadas por nossas preferências, perfeitamente captadas pelo sistema que nos vigia na Internet, mas logo vim a recair nos meus preferidos – Bowie, Prince, Clube da Esquina, Elis, Cohen… Tanto quanto os que citei anteriormente, a maioria destes nos deixou precocemente.

Em determinado momento, surge como sugestão a “Don’t Let The Sun Go Down On Me”, na versão ao vivo, trecho do show de George Michael em que convida o autor da música, Elton John, a cantar junto com ele, em uma apresentação climática, em atuações vocais e instrumentais memoráveis. A sugestão surgiu justamente porque David Bowie, Leonard Cohen, Prince e o próprio George Michael morreram em 2016. Todos viveram muito todas vibrações de seu tempo, ainda que a maioria tenha morrido cedo.

A idade, em muitos casos, é apenas relativa a referendar a experiência de alguém. Há pessoas intensas que conseguem, com galhardia, aglutinar em si, as riquezas de processos vitais, a encetar lutas pessoais e se colocar à frente de combates coletivos e a favor de bandeiras libertadoras. No entanto, para tantas outras, é comum ocorrer o contrário. Brigar por espaço para a sua expressão, se expor corajosamente por um comportamento alternativo, refirmar a sua sexualidade, pode ser demais para as suas estruturas psíquico-físicas. Cedo ou tarde, cedem às pressões e queimam em praça pública.

O que não aconteceu com o querido Elton John. Ele esteve por terras tupiniquins no mês de março de 2018, quando completou 70 anos de idade. Sobreviveu ao pico da disseminação do vírus HIV, passou ao largo da metralhadora giratória que dizimou os melhores nomes de seu tempo, por abuso químico ou doenças graves. Sobreviveu à geração que preferiu “viver dez anos a mil do que mil anos a dez”, à sedução de “viver rápido e morrer jovem”.

Aquele que foi uma grande influência musical do jovem que começou a prestar atenção aos temas internacionais, depois dos Beatles, Frank Sinatra, Ray Charles e Nat King Cole (sim, o menino da Periferia era muito metido aos 12), continua ativo e produtivo. Eu e minha mulher fomos assisti-lo, com show de abertura de James Taylor, outro sobrevivente. O Poder Velho, na sua melhor definição, tomou conta de todos os espaços do estádio e arrebatou a platéia, que viu o final da apresentação debaixo de chuva torrencial. Lavou a nossa alma…

BEDA / REALidade — Todas As Idades

IDADES
O Velho

Quando envelhecemos… temos todas as idades. Somos aquele idoso que mal consegue caminhar sem sentir algum tipo de desconforto.

A criança que aprendeu a jogar bola no campinho de várzea, a empinar pipa correndo contra o vento.

O rapazinho que começou, de uma hora para outra, a admirar a vizinha de lindos olhos verdes. O adolescente que não consegue lidar com a sua insegurança. O jovem que tenta adivinhar o que será no futuro, de acordo com todas as possibilidades… o que inclui não saber se terá um futuro promissor — seja lá o que isso signifique.


O adulto que encontra a mulher, por quem se apaixona… se casa, gera filhos e constrói uma família. Trabalha e abre mão de seus desejos e quereres pessoais por aqueles que ama… e renasce a cada filho que carrega em seu colo, quando o leva de cavalinho pelos caminhos do parque e abraça aquele corpinho que tem o seu sangue, vendo-o escorrer pelo joelho que se feriu ao cair.

O velho é o Homem que, em meio à tempestade de seu ego, mal sabe quem é… mas tem em si a certeza de um nome, uma cédula de identidade, endereço, nacionalidade, cargo — um valor.

O velho é a criança que cresceu e envelheceu sem perder a juventude e a capacidade de se chocar, a todo momento em que o Jovem que é se percebe um velho no espelho do banheiro… e se vê renascido, mais uma vez, com a chegada dos filhos de seus filhos, e aprenderá com o novo a ser o novo — de novo.

O Homem velho é aquele que adubará a terra que um dia pisou e que se transformará em lembrança entre os seus entes queridos… e vê se aproximar o tempo que será perfeito ao completar o seu ciclo da vida.

 

“Todas As Idades” consta do livro de crônicas “REALidade”, lançado pela Scenarium Plural – Livros Artesanais.

 

As Dores Do Mundo*

DORES

Sobre o dia de hoje, 1º de março de 2019 – marcado pela morte por meningite, de Arthur Araújo Lula da Silva, neto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que dividiu, acima das ideologias, as pessoas de boa das de má índole, as cordatas das insensatas. Sinto vergonha dos manipuladores de qualquer lado. O texto a seguir é de 2015*.

“Hoje, acordei parecendo sentir todas as dores do mundo –– as veras e as imaginadas, as graves e as leves, as minhas e as alheias. Passei a manhã recolhendo pelo caminho todos os vexames e as humilhações, as penas e as cenas.

Acordei sentindo a dor do homem que sai sem se despedir da mulher que ama porque ela está em outra cama; a dor de ouvir no noticiário matutino criminosos discursando em nome de cidadãos probos; a dor de caminhar até o ponto de ônibus na expectativa de embarcar no cargueiro de carnes no horário exato; a dor de ver o pai do menino especial que deseja ver o seu filho viver a vida escolar normal, enquanto outras crianças não querem acordar para ir à escola ou, muitas vezes, sequer querem acordar… nunca mais…

Hoje, acordei sentindo a dor de me ver dormindo sob a marquise, cercando a minha intimidade sonolenta por velhos guarda-chuvas, momentaneamente improvisados como paredes do meu quarto; a angústia do cão que passa o dia aguardando a volta de meu humano de estimação que saiu para trabalhar; a amargor dos familiares do homem que saiu para trabalhar para não mais voltar; o martírio do garoto tímido que esperava ver a amada passar, atrasando a sua chegada várias vezes no emprego –– que perderá; a aflição da garota que sabe que o garoto a deseja, mas não revela que aprecia o seu desejo; a inadequação do velho no Metrô que ouve pacientemente as asneiras da moça bem mais nova, a desfiar o seu corolário de dores fátuas, apenas para não se sentir só.

Hoje, acordei sentindo a dor da bela moça que tem todos os sonhos do mundo, mas que não consegue levá-los adiante porque o seu fôlego, que se escasseia, a impedirá. A dor da vida que não completa seu ciclo natural –– do avô que perde o neto, da mãe que perde o filho. Hoje, acordei sentindo que poderia abarcar todas as dores do mundo, as veras e as imaginadas de todos nós. Humano que sou, por elas morrerei um dia…”.

Clichê

CORAMÃO
Coramão

Moça de personalidade forte e plena de certezas cambiantes, Marinês carregava cheiro de aventura e independência de vento. A libriana provocava redemoinhos por onde passava. Inesquecível, seu nome era repetido em rodas das quais sequer participava. Gostava de se expressar fisicamente e sua linguagem corporal atraía homens e mulheres. Apesar disso, sua primeira experiência sexual se deu relativamente tarde, aos 18 anos. Quis esperar para se envolver com quem realmente se identificasse, se bem que idealmente não gostaria de se apaixonar por ninguém

Na faculdade, aconteceu de conhecer Antônio, que a atraiu francamente desde que o viu entrar na sala de aula. Veio a descobrir que aquele era um jovem de pedra. O virginiano tinha consciência cristalina de seus propósitos, planos calculados para o futuro. Havia decidido passar o curso inteiro voltado completamente ao estudo. No entanto, sentiu vir da janela, o que imaginou ser brisa, o sopro inebriante de Marinês. Suas convicções se desvaneceram e em duas semanas, já estavam totalmente envolvidos.

O primeiro semestre foi dividido por Marinês e Antônio entre estudos truncados e dias trocados por noites de amor e paixão. Tiveram notas apenas medianas, suficientes para acessarem as próximas matérias. Os dois conversaram sobre como deveriam levar mais seriamente os seus projetos e que resultaria em menos tempo juntos. Durante as férias, passariam unidos o quanto pudessem, mas depois, vida nova.

Enquanto para Antônio aquela era uma contingência necessária, que não implicaria em separação definitiva de Marinês, para ela fazia parte de um projeto pessoal. Quando decidiu começar a sua vida sexual, a ideia inicial era que não ficasse com apenas uma pessoa. Antônio foi um acidente de percurso. Apaixonar-se como aconteceu não era desejável. Achava um baita clichê ficar com o primeiro que fodesse. Namorar, noivar, casar, ter filhos… Toda aquela baboseira, como dizia sempre, nunca foi o seu desejo. Queria conhecer muitos homens e mulheres, novos e velhos. Absorver o máximo de cada relação para se conhecer e conhecer a vida.

Terminado o período de férias, Antônio esperava reencontrar Marinês após a semana que estiveram separados. Concordaram que não se comunicariam nesse período para que pudessem resolver questões particulares, cada um em sua respectiva cidade. No retorno, estranhou que não conseguisse voltar a entrar em contato com ela. Não a encontrou na faculdade e não obteve nenhuma informação pelos colegas mais próximos. Alguns dias depois, uma amiga mais íntima de Aline disse que ela viajou para o Canadá. Sem avisá-lo. Passado um mês, percebeu que ela o havia deixado. Completamente arrasado, chegava a imaginar que ela não tivesse existido. A brisa refrescante transformou-se em furação. Sentia-se terra arrasada.

Marinês conseguiu, a muito custo emocional, deixar o Brasil de Antônio. Respirando novos ares, implementou seu objetivo de livrar-se das amarras sociais que condenam as pessoas a um jogo de cartas marcadas, em que todos perdem. As pessoas pelas quais passou a sentiam quase amorosa, quase alegre, quase inspiradora, quase real. Quase a amariam, se não fosse a desconfiança que nunca teriam acesso a seu coração…