Pastel de Vento

Pastel

Terça-feira, dia de feira, duas ruas acima da minha, no vale do Jardim Santa Cruz. Antes de caminhar pelas barracas enfeitadas pelas cores naturais dos vegetais, passo na banca de pasteis e encomendo para dali a vinte minutos, os sabores do dia.
– Tem de palmito?
– Não! Acabou… tem de bacalhau…
Achei estranho sugerir um peixe para quem pede um derivado vegetal. Brinquei com a sugestão, mas aceitei. Lembrei que em casa gostam, de maneira inversamente proporcional ao meu gosto, de bacalhau. Pedi mais um de carne e outro de queijo.

Os pastéis do Nelson, eu o considerava um dos melhores de São Paulo, acostumado que estava a frequentar diversas regiões da cidade, quando a trabalho e sempre a visitar feiras livres. Nos últimos tempos, senti que perdera certo toque que o diferenciava dos demais. Me ocorreu de perguntar sobre o dono da barraca, de origem nipônica, que não via há já algum tempo.
– O Nelson?… – A mocinha olhou para mim com olhar de espanto e completou – O Nelson morreu… em março…
– Como assim, em março? Se outro dia mesmo estava a conversar com ele sobre minha mãe… – Estava doente? – Perguntei, ainda chocado…
– Não! Ele caiu do telhado…

Ainda incrédulo, caminhei o asfalto da rua transformada em mercado de formato milenar, que deu origem ao nome de cinco dias da semana, em português. Precisava apenas de algumas frutas e poucos legumes. Mesmo assim, percorri toda a extensão, somente para cumprir o ritual.

Na volta, peguei os pastéis e parei logo adiante junto à barraca de caldo de cana, pertencente a outro “japonês”, para comprar uma garrafa de 500 ml. Puxei assunto e conversamos sobre o Nelson, vizinho de ponto.
– Foi uma coisa boba. O Nelson subiu no telhado para verificar a boia da caixa d’água. Escorregou e caiu. Ficou três meses na UTI, até falecer em março… Puro, com limão, maracujá ou abacaxi?
– Com limão, por favor! – Após fazer a mistura, ele me deu um gole extra em copo separado. Paguei, agradeci a informação e o “choro”.

Voltei para a casa conjecturando sobre o atropelo dos dias. Não acreditava que já se tivesse passado quase um ano desde que vira o Nelson pela última vez. Há tantos anos frequentando essa feira, vários antes do passamento de minha mãe, a qual Nelson adorava. Sete, desde então. Em memória de Dona Madalena, fazia questão de me dar um pastel de brinde. Às vezes, um saquinho de pastéis de vento, que as minhas filhas sempre pediam. Saborosos, ainda que fossem vazios. Como a vida, feita de vento…

Clichê

CORAMÃO
Coramão

Moça de personalidade forte e plena de certezas cambiantes, Marinês carregava cheiro de aventura e independência de vento. A libriana provocava redemoinhos por onde passava. Inesquecível, seu nome era repetido em rodas das quais sequer participava. Gostava de se expressar fisicamente e sua linguagem corporal atraía homens e mulheres. Apesar disso, sua primeira experiência sexual se deu relativamente tarde, aos 18 anos. Quis esperar para se envolver com quem realmente se identificasse, se bem que idealmente não gostaria de se apaixonar por ninguém

Na faculdade, aconteceu de conhecer Antônio, que a atraiu francamente desde que o viu entrar na sala de aula. Veio a descobrir que aquele era um jovem de pedra. O virginiano tinha consciência cristalina de seus propósitos, planos calculados para o futuro. Havia decidido passar o curso inteiro voltado completamente ao estudo. No entanto, sentiu vir da janela, o que imaginou ser brisa, o sopro inebriante de Marinês. Suas convicções se desvaneceram e em duas semanas, já estavam totalmente envolvidos.

O primeiro semestre foi dividido por Marinês e Antônio entre estudos truncados e dias trocados por noites de amor e paixão. Tiveram notas apenas medianas, suficientes para acessarem as próximas matérias. Os dois conversaram sobre como deveriam levar mais seriamente os seus projetos e que resultaria em menos tempo juntos. Durante as férias, passariam unidos o quanto pudessem, mas depois, vida nova.

Enquanto para Antônio aquela era uma contingência necessária, que não implicaria em separação definitiva de Marinês, para ela fazia parte de um projeto pessoal. Quando decidiu começar a sua vida sexual, a ideia inicial era que não ficasse com apenas uma pessoa. Antônio foi um acidente de percurso. Apaixonar-se como aconteceu não era desejável. Achava um baita clichê ficar com o primeiro que fodesse. Namorar, noivar, casar, ter filhos… Toda aquela baboseira, como dizia sempre, nunca foi o seu desejo. Queria conhecer muitos homens e mulheres, novos e velhos. Absorver o máximo de cada relação para se conhecer e conhecer a vida.

Terminado o período de férias, Antônio esperava reencontrar Marinês após a semana que estiveram separados. Concordaram que não se comunicariam nesse período para que pudessem resolver questões particulares, cada um em sua respectiva cidade. No retorno, estranhou que não conseguisse voltar a entrar em contato com ela. Não a encontrou na faculdade e não obteve nenhuma informação pelos colegas mais próximos. Alguns dias depois, uma amiga mais íntima de Aline disse que ela viajou para o Canadá. Sem avisá-lo. Passado um mês, percebeu que ela o havia deixado. Completamente arrasado, chegava a imaginar que ela não tivesse existido. A brisa refrescante transformou-se em furação. Sentia-se terra arrasada.

Marinês conseguiu, a muito custo emocional, deixar o Brasil de Antônio. Respirando novos ares, implementou seu objetivo de livrar-se das amarras sociais que condenam as pessoas a um jogo de cartas marcadas, em que todos perdem. As pessoas pelas quais passou a sentiam quase amorosa, quase alegre, quase inspiradora, quase real. Quase a amariam, se não fosse a desconfiança que nunca teriam acesso a seu coração…