… irão todos para a vitrine de exposição póstuma: relíquias os pensamentos os desejos emoções sentimentos ações descritas serão mumificadas talvez percam os sentidos as intenções de quem as escreveram amores perdidos vidas sem testemunhas seguras e secas entre folhas esmaecidas talvez uma flor morta entre as páginas pessoas que morrem por esquecimentos cadernos como túmulos passarão à sessão de histórias ocultas sem serem conhecidas mudas e esquecidas…
Durante a semana, eu me movi por várias partes da cidade de São Paulo — do norte para o oeste, do centro para o sul, e, do sul para fora, ao litoral — onde permaneci por dois dias, ontem e hoje. Junto ao mar, horizonte amplo, mergulhei nas ondas claras e brincalhonas, entre burburinhos liquefeitos de novidades tão antigas quanto bem-vindas.
Não dirijo, sou pedestre e usuário de transporte público. O máximo de veículo pessoal que possuo é uma bicicleta. Nesse translado, passo por caminhos tortuosos, calçadas irregulares, vias obstruídas, estradas longas, suspensas por pilares construídos à custa de vidas de vários operários, como a Via Imigrantes. A paisagem é deslumbrante. Abaixo e acima, a área preservada da Mata Atlântica na Muralha, a mesma desde tempos imemoriais.
A chegada junto à praia é o meu melhor momento. Logo, farei uma incursão para dentro de mim. O mar como divisa entre meu ser e a vida natural. Deixo para trás, túneis que mais parecem passagens subterrâneas de filmes de terror, vielas enviesadas, cruzamentos entroncados com becos escuros. A passagem para a liberdade é sinuosa…
Houve um tempo, no início de minha jornada como escritor, que escrever era apenas uma maneira de dialogar comigo mesmo. Os meus textos, não os mostrava a ninguém. Exceto ao meu irmão menor, logo no início, que versava sobre o fantástico. E quando era convocado pelos professores a fazer redações sobre assuntos que nem passavam perto da minha vida cotidiana – as férias escolares com viagens feitas; os filmes assistidos no cinema; peças de teatro vistos; parques de diversões frequentados. Nada disso pertencia à minha realidade. Ou melhor, era algo raro, mas que acontecia em momentos que não coincidiam com as férias. Eram fugas do cotidiano normal realizadas em finais de semana. Na maior parte do tempo realizava incursões para dentro de mim. Por lá-aqui conversava com um sujeito desconhecido que poderia ser eu mesmo ou parecido comigo. Que se distanciava dos temas que relatariam excursões externas. Desconfortável, nem sei se cheguei a inventar histórias que nunca ocorreram. É possível, a minha imaginação sempre foi fértil e as notas que tirava eram boas.
Não deixei de ir à praia de vez em quando. De me deslocar para cidades próximas ou um pouco mais distantes onde moravam parentes, já que a minha mãe era ciosa de manter contato com a grande família dos irmãos de oito filhos dos Nuñez Y Nuñez. Mas o “melhor” da viagem era o próprio translado, geralmente por trens desconfortáveis, lotados ou ônibus que normalmente me enjoavam. Os vômitos faziam parte da rotina. Chegado aos destinos, eu me separava dos grupos, mal conversava com os primos, preferia ir jogar bola ou fazer incursões pelo mato. Não que não gostasse das pessoas. Eu sempre me senti muito bem em estar com todos, muito porque respeitavam a minha postura tímida. No máximo, brincavam com essa característica que me emprestava um certo charme. No fundo, sentia pavor em me envolver afetivamente com parentes que pouco veria. Uma bobagem de alguém com sérios problemas de adaptação às regras de relacionamento. Nunca fui bom nisso.
Os diálogos com o sujeito desconhecido fizeram com que aos poucos aprendesse a reconhecê-lo como autônomo de minha personalidade ou, por outra, como um apêndice da pessoalidade original de meu ego. Parece confuso, porque é. Ainda que seja falso, me acostumei com a dinâmica que me impulsiona a elaborar textos que hoje busca identificação externa. Não produzo textos apenas para a minha satisfação pessoal – que é muito importante –, mas para criar situações que sejam assimiladas por outras pessoas tenham identificação. As sagas das vidas “criadas” por mim as baseio em minha vivência íntima, referências externas captadas ao sabor dos ventos virtuais e situações que as próprias personagens desenvolvem entre si. O que parece ser estranho, mas acontece frequentemente.
A travessia entre o autor ensimesmado e este outro que quer se comunicar com quem o lê não é fácil. Ser lido é ainda algo de incontrolável mensuração. Não quer dizer que ainda que os olhos que percorram as frases, sentenças, parágrafos que escrevo signifique que o texto tenha sido lido da maneira que gostaria. Muito por incapacidade pessoal em se fazer “ouvir” e ser entendido, as minhas criações talvez não repercutam no leitor de forma nenhuma. Ou, por outro lado, não é incomum que o que escrevemos mostre algo além do que propusemos mostrar. É a magia da arte, ainda que involuntária. Arranjar espaço na minha agenda para realizar a simples tarefa de escrever tem sido o principal empecilho, ao qual luto para superar. As madrugadas que o digam, pelas quais transito entre a satisfação e a dependência dolorosa em escrever…
“…um caderno que colecionava relatos de personagens antigos”, por Suzana Martins, em As Estações
escrevo… sou muitos muitos eu desconheço as estações recorrentes as mesmas diferentes coleciono personagens antigos e seus relatos em cadernos esquecidos ressentidas essas vozes caladas me assombram em sonhos em que revivo as suas vidas cortadas do pergaminho revido os deixando no ostracismo extraviados à beira do caminho são papais noéis vampiros arrependidos assassinos em série empresários depauperados moças vencedoras mas tristes olhos verdes em poemas involuntários paixões irrealizadas amores perdidos não os fiz completarem os seus ciclos viverem suas vidas ainda que acabadas em fim trágico conflito ou alegria e festejos por que sedutoramente as deixo sem final algum? por que a palavra não tantas vezes reiteradas? autor por que nos matou antes de nascermos?
Na falta de cabelos, carrego amores perfeitos na cabeça…
Há, dentro de mim, uma briga Momentos em que o meu coração grita Debate-se dentro do peito Com o pulmão se atrita Rebela-se contra os órgãos que abastece de sangue Autoritário, tenta impor as suas certezas Rumar contra as correntezas Chega a sugerir que sonhe a mente Mente que não aguentará outras aventuras Que sofrerá com outra aversão Confia na sua característica demente A da mente que se engana facilmente Porque sabe que ela não se exprime Para além dos sentidos Aprecia pela visão Enternece-se pelo som Subjuga-se pelo toque Submete-se pelo gosto É uma mente limitada Ao mundo que apreende pelas demandas do corpo
Porque é mais simples buscar o sentido de tudo Pela experiência sensorial? Onde está a minha alma, Que não assume a posição de senhora? A tentar reencontrar a minha alma perdida Pelas vidas afora A cada manhã e aurora De mim, para mim Amém?