Visão Espelhada

Há muitas maneiras da realidade se revelar. No mínimo, devemos sempre contemplar pelo menos duas visões – a nossa e a do outro lado do espelho. A cada situação que se coloca como dilema ou dúvida, exercito a dualidade que se apresenta e costumo exercer essa prática mesmo em questões aparentemente simples e menos sérias.

Uma das oportunidades em que me senti provocado ocorreu quando em um vídeo, um homem diz para o cachorrinho: “eu tenho uma notícia prá te dar: você é cachorro, você não é gente” – após o que a fisionomia do companheiro denotaria surpresa. Postado no grupo da família, escrevi que “se souberem que nós somos gente e não cachorros, seria capaz de deixarem de nos amar…”.

Refletindo sobre isso, não acho que esses seres especiais considerem diferenças entre as nossas espécies como fundamentais. Aliás, movidos por sentimentos irreprimíveis de afeição, “sabem” que pertencemos ao mesmo grupo, sem nenhuma distinção. O elo que nos une é o amor demonstrado sempre que possível, mantido por fidelidade “canina”, apesar de nossas falhas.

A base de sustentação da frase dita pelo tutor parte da ideia de que ser gente teria uma importância superior à de ser um cão. A depender de certas premissas, isso é bastante discutível. Por mim, a surpresa do cachorro poderia se dar mais pelo fato dele fazer menção a uma circunstância que sequer deveria entrar no contexto. Ao amarmos um ser, o desejo é o de nos comunicarmos com ele, que o compreendamos e nos façamos ser compreendidos.

A comunicação pelo olhar em muitos casos é mais evidente do que por palavras e suas devidas gradações de tons. Assim como a linguagem gestual igualmente pertence ao rico diálogo entre nós. Essa relação só nos aprimora como seres humanos. As lições que nos dão são muito mais efetivas do que as impostas como mandamentos.

Antes desse episódio, em conversa com a Tânia, que reclamou do cheiro da Bethânia que insistia dormir em nossa cama, rebati que eles não se importam com o nosso cheiro, apesar de muitas vezes não nos parecerem tão bons para nós mesmos. Ao contrário, sentem falta de nosso “perfume” por ser uma das formas mais poderosas para nos identificar.

A partir daí, procurei não fazer tanta conta dos odores emitidos pelos cães, ainda que alguns não me agradasse eventualmente. A Bethânia tem um cheiro específico que mesmo após o banho, perdura. É famoso o odor de salgadinho de suas patinhas. Nós nos perfumamos com olores que não nos pertencem desde séculos antes, mesmo em grupos mais primários. Ainda assim, os cachorros conseguem diferenciar o nosso cheiro por trás de nossas manobras para despistá-los e nos amam ao sermos apenas nós mesmos.

Eu me sentiria bem triste se um companheiro canino me dissesse: “ei, tenho uma notícia para lhe darvocê não sabe amar como um cachorro!”.

Nubibus

As nuvens são e não são.
Visíveis, porém diáfanas.
Colossais, contudo fluídicas.
Mutantes, mas constantes.
Terrenas, todavia aéreas.
E sempre generosas,
a permitir que o Sol
queime a despedida do dia…
Especialmente ontem,
senti que seu olhar de fogo
me despia a alma
antes que fosse acobertado de minha visão.
Nesse ínterim,
foram devassados-confessados
os meus pecados…

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Vistas

Ver, rever, visto, revisto. Ser objeto de observação, observar. Ver verdadeiramente ou apenas passar os olhos sem se aprofundar. Vistas, certas imagens, ganham a dimensão de algo mais a depender de quem as vê. Carregadas de referências pessoais, ver algo é como se pudesse vê-lo para além da percepção imediata e restrita a esse algo — uma visão transcendente. Não vejo como possa ser de outra forma.

Bethânia e eu…

Uma coisa que me intriga é a visão dos outros animais em relação aos mesmos objetos e paisagens que vemos e como são interpretados, dentro de suas referências perceptivas. Que não se restringem apenas à visão, mas incorporam o olfato e o ouvido apurados, o que colabora para que apreendam de uma maneira mais completa o que apenas vislumbramos na superfície ou que valoramos por critérios idealizados. Essa riqueza perceptiva, fora de nosso alcance, é como se fosse uma overdose de vida. Todos os momentos são tão intensos em termos sensoriais que não seja de surpreender que durmam tão profundamente quando se sentem abrigados e seguros. (Periferia, em 2021)  

Rua Santa Ephigênia, onde as antigas construções abrigam lojas de equipamentos de ponta em vários setores da tecnologia. É uma festa para os meus olhos, mas não nesse aspecto. Para mim, o que é precioso reside nas edificações… É comum aproveitar a abertura de algum portal do Tempo e viajar para o Passado. São breves instantes de percepção extra-sensorial em que capturo algum momento especial, testemunho a História a acontecer em décimos de milissegundos e volto a caminhar entre carros, pessoas e luzes de LED… (Voltando no Tempo, 2016)

A luz foi engolida por grossas camadas de nuvens escuras, repentinamente. O calor ameno deu lugar ao frio que se projetou por nossas peles desprotegidas. O ser humano vem a perceber, nesses momentos de humor ciclotímico do tempo, que é muito frágil diante do clima, diante da Terra. Será por inveja que queremos destrui-la? (São Caetano do Sul, 2015)

Observo do ponto que estou, no alto de um prédio, que o vento movimenta as nuvens como se fora ondas no mar, enquanto no recife de corais abaixo, pululam seres em suas fainas diárias de nadarem contra a corrente, em busca de alimento. (Comunidade de Paraisópolis, 2014)

Caminhando pelos calçadões do Centrão, costumo me perder em olhares por seus descaminhos confusionais de Tempo e Espaço. Assim como citei acima sobre a Santa Ephigênia, apesar de gostar de me sentir desconfortável por não estar onde estou, vez ou outra me sinto surpreendido por observar essas construções tão velhas quanto eu com um olhar novo. Neste caso, talvez seja pela fluídica árvore nova, a destoar do ambiente concreto. Depois de observar melhor, o edifício ao lado parece ter uma forma alternativa que só poderei confirmar ao voltar a vê-lo. Quanto ao prédio protagonista, é ele que sinto me observar por seus muitíssimos olhos. (Vista desde a vazia Rua Marconi, em 2021).

Duque de Caxias, empunhando o seu sabre, cavalgando eternamente o seu cavalo. Conheci esse monumento ainda bem menino e ele continua por lá, impassível, rumo ao futuro.” escrevi sobre essa imagem, em 2014. O monumento do Duque Caxias está estacionado na Praça Princesa Isabel. Ambos, são nomes de referência do Segundo Império. Enquanto a Redentora está sofrendo um cancelamento por parte do movimento negro, apesar de ter assinado a Abolição da Escravatura, a atuação de Caxias tem sido revisada como senhor da guerra. Guindado à condição de grande nome do Exército, talvez a sua fama de estrategista e honradez tenha sido convenientemente inflada ao logo do tempo para alimentar o herói. A praça em si, está ocupada por desvalidos, moradores de rua, drogados, pessoas que perderam a guerra contra o Sistema, escravizados pelo vício.

Participam:

Lunna Guedes

Mariana Gouveia

Roseli Pedroso

Amor Cego

quando a toquei
cego pelo amor
desvelei os véus
da percepção humana
para além do sentido
barato e velado da visão

ultrapassei a pele
alcancei a alma
meu corpo se tornou todo potência
energia sem identidade
dor orgástica-holística prazer 
perfeita desorganização
do sentido do sentir

unidos a roçar
terminações nervosas hipersensibilizadas
drogados pelo cheiro gosto  
escuridão clarividente
paixão eterna profunda
muito mais que amor
perene platitude

consubstanciado em línguas
dedos mamas bundas genitálias
bocas mordeduras arranhões
impressões digitais
impermanentes renovadas
toques estoques vibrações

invasão de novos territórios
para além da vida penetrações
atraídos por buracos negros
onde se consomem
fótons fantasias
glúons gulosos
quarks aquartelados
neutrinos sanguíneos
constelações galáxias inteiras

suor golfo úmido rocio
em pelos vaporizados
resfolegar arpejos
brotar plena consciência
corpo epiderme campo fértil
da breve morte bem-vinda
big crunch em um último beijo
no tempo que não existe mais…

O Pancadão De Van Gogh*

Sentado numa cadeira na varanda, esperava o entardecer avançar sobre nós. Ansiava que nuvens, que até então não se faziam presentes, viessem a adornar o crepúsculo de final de outono. Sempre a provocar excitantes e variadas formas como pano de fundo que avivam a imaginação. Uma brisa fria me deixava desperto ainda que o Sol intenso me forçasse a fechar as pálpebras-cortinas do palco de 80% da minha percepção sensorial. Sobre elas, a luz dos olhos meus não competia, mas adivinhava o brilho daquela estrela que emprestava o calor gerador da vida na Terra.

Observar o entardecer era um ritual que repetia sempre que estava em casa, mas que consegui exportar para outros lugares sempre que o tempo e o horizonte aberto me permitissem presenciar o efeito da revolução terrestre que cotidiana e silenciosamente ocorre sem que os seres que se dizem inteligentes a sintam. Sapos, tubarões, viúvas negras, borboletas, abelhas, alces e elefantes, golfinhos e beija-flores a sabem por uma questão de sobrevivência. As aves, seres revolucionários, descendentes diretos dos senhores do planeta por milhões de anos os dinossauros a conhecem para poderem migrar de um ponto a outro do hemisfério ou até entre os hemisférios. Baleias, salmões e tartarugas a usam para encontrarem o lugar ancestral para procriarem. Resta a mim, como um mísero animal ignorante dessa sofisticada ciência, aplaudir os ocasos como mapas de percurso.

Como era sábado, outros rituais humanos menos silenciosos que o meu, principiavam. Para além do estímulo visual, a audição ganhava preponderância. O som de gêneros musicais diversos e seus praticantes forrozeiros, sambistas, sertanejos e funkeiros competiam para ver quem venceria uma batalha perdida. Era como se para se deslocarem da vida comum necessitassem de colossais massas sonoras para se transportarem. O Sol, tão distante quanto pode ser um astro-rei, se despregava de seu ponto ilusório até outro. Abstraído-encantado, me ausentava de onde estava, surdo para as brigas de casais, o molejo da morena, as descidas até o chão e arpejos de sanfoneiros verdadeira barafunda de acordes em desacordos.

Mal pude acreditar quando pela chegada discreta da nebulosidade e do vento alto que a dispersava, a visão do entardecer se transformou em obra impressionista, em que fios de cabelos luminosos vangoguiavam a paisagem. Por mais furioso que tivesse o volume sonoro, nada impedia que me sentisse embevecido pela Natureza a reproduzir na tela rota da Periferia de Sampa, pinceladas do triste e belo pintor holandês, ao ritmo do pancadão.

*Blogagem Coletiva 
Tema: o que faz brilhar seus olhos?

Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso