29 / 09 / 2025 / Camaleão*

De tempos em tempos, durante toda a minha vida, mudava o visual, buscando brincar com a imagem um tanto andrógina que apresentava. Isso confundia quem me conhecia, mas não ajudaria em nada se dissesse que homenageava a David Bowie. Para contrariedade de meu pai e dúvida da minha mãe quanto a minha sexualidade, colocava brinco, pintava o cabelo, depois o tosava a zero, deixava crescer até o ombro e, por aí, caminhava.

Diferente de hoje em que a calva avança e só tenho a barba para mudar. Quando abracei o vegetarianismo, ao 17 anos, emagreci bastante e, com o surgimento da AIDS, não foram poucas vezes que alguém achava que eu fosse aidético. Por essa época, numa entrevista para emprego, apesar de ser bem qualificado para tal, fui dispensado sem explicação. A minha imagem não colaborava — magro e careca. Quando adotei os cabelos compridos (e desgrenhados), algumas vezes fui parado pela Polícia para apresentar a identidade. Ser branco e articulado me ajudou a não sofrer como alguns amigos pretos, que nem podiam dar um pio. Mas viver na Periferia nos equalizava. Sempre havia alguma favela próxima a qual poderia pertencer, o que me qualificaria como suspeito.

Quase aos 30, casei, tive filhas, vivi altos e baixos. Montei uma pequena empresa, quase morri duas vezes. Assim, estou chegando quase à sexta década de vida sobrevivendo a uma Pandemia e a outras doenças graças à má gestão da Saúde Pública. Mamãe fazia questão de manter as nossas carteirinhas de vacinação em dia. Graças ao Ensino Público cheguei à Universidade, que desenvolveu a minha capacidade de discernimento entre a boa e má Política — a arte da convivência. Eu me orgulho de ser um cidadão que respeita as Leis, sabendo que podem ser melhoradas para atender às demandas da população. Sei que morrerei antes que veja este País mais justo. Assim como cria que aconteceria aos meus 20 anos. Eu estava enganado, então. Pode ser que esteja enganado outra vez, de modo diverso. Oxalá!

Foto por Egor Kamelev em Pexels.com

*Texto de 1961, mas depois de quatro anos, pouca coisa mudou, apesar de quase tudo ter mudado.

O Espelho*

Em casa, tenho um espelho favorito.

Não por acaso, é o mais antigo.

É meu amigo.

Ele sempre está a me mostrar a minha melhor face.

É como se não incorporasse as minhas rugas,

outras marcas da idade na pele

e os sinais de todos os dissabores por quais já passei.

Nesse espelho, sou melhor.

Fico bem, mesmo muito mais velho e envelhecido.

Não pareço tão envilecido

pelas falhas de caráter as quais reconheço

e aquelas que nem sequer suspeito – as que detecto

quando sou posto diante das diversas situações da vida…

Logo, lembro de Dorian Gray, conquanto o quadro se inverta.

Enquanto eu me degrado fisicamente,

o espelho ainda sustenta o olhar do sujeito sonhador,

crente em melhores dias para todos…

Tento ser convencido pelo nobre

que se posta do lado oposto

que o amor ainda é a melhor solução para contrabalançar o mal…

Mas já não consigo amar a todos e qualquer um…

Termino sempre a minha inspeção visual

com a nítida sensação de que estou condenado

ao desprezo do tempo que passa, enquanto a senilidade

jamais alcançará a alta imagem pessoal

do meu espelho favorito…

*Poema de 2017, com imagem de 2023.

BEDA / A Janela*

Vivia o homem em cavernas e as desejava protetoras, sem possibilidades de serem devassadas. No escuro segredado por elas, desenhava em suas paredes o mundo que acontecia lá fora. Com a evolução dos grupamentos humanos que foram se tornando em gregários, na sua grande maioria, as habitações foram sendo construídas para atender as necessidades específicas de cada grupo. E ter janelas — comunicação visual com o mundo exterior — pareceu ser uma solução perfeita para muitos deles.

De simples recortes na madeira ou buracos nas paredes de pedra, o homem passou a criar janelas mais sofisticadas em variações de formatos, tamanhos e soluções para devassar o mundo o mantendo protegido do sol, da neve, do vento ou da chuva. Em alguns lugares, como em igrejas, vitrais tinham a intenção de jogar luz para o interior da nave, criando imagens coloridas pelo reflexo que buscavam uma experiência visual transcendente de religiosidade e misticismo.

Tão aferrada à captação da realidade pelos olhos humanos, as janelas foram adaptadas para as máquinas desenvolvidas para transportarem o homem. Navios, veículos automotores e aviões precisaram apresentar esse item muito mais pela necessidade de contato visual do transportado do que pela praticidade. A não ser pelos veículos que são conduzidos por quem os dirige, quem confiaria entregar sua vida nas mãos de um condutor de “olhos fechados”?

Complementares às janelas envidraçadas, surgiram as cortinas para obstar a luz excessiva, proteger o interior da casa de olhares indiscretos, embelezar a moldura da janela, entre outras funções. Cortinas dão um toque de requinte e aconchego, muitas vezes retratados em desenhos infantis, como os que eu mesmo fazia em criança. Cortinas são tão perfeitas para as janelas que se não soubéssemos que estas surgiram antes, poderíamos dizer que elas só existem para poderem abrigar àquelas…

Dessa forma, quando passo em frente à loja d’A Janela — Cortinas, sorrio sempre, como se me sentisse portador de uma estranha sabedoria, como se desvendasse cada segredo abrigado por trás de cada cortina de cada janela, guarnição adentro…

Imagem: Foto por Marta Wave em Pexels.com

*Texto de 2015

Participam do B.E.D.A.:

Lunna Guedes / Cláudia Leonardi / Mariana de Gouveia /

Darlene Regina / Adriana Aneli / Roseli Pedroso