Dulce

Dulce — doce, em espanhol — era realmente uma presença doce. Pequena, com as patinhas defeituosas, o peito e a barriguinha peladinha, ela não sobreviveria se vivesse livre. Sendo uma calopsita, de origem australiana, não encontraria espaço e clima ideais para viver por aqui. Nós a recebemos novinha e ficou com conosco por pelo menos 13 ou 14 anos.

Discreta, nos últimos anos estava sozinha, sem o companheiro, Horácio, que faleceu inesperadamente. A relação entre eles não era muito harmoniosa ou, pelo menos não era interativa. A gaiola onde ficava, nós a colocávamos para fora de manhã e a recolhíamos à tarde. Quando a temperatura estava mais alta, ficava até mais tarde e, às vezes, até passava a noite fora.

Acredito que ela gostasse de ficar no quintal, já que reclamava quando não a púnhamos em contato com os outros pássaros, as árvores e plantas do quintal, principalmente quando percebia movimento na casa. Ao encontrá-la, ela esticava uma das patinhas e uma das asas, que eu soube se tratar de um ato de satisfação. Normalmente, colocava comidinha no seu potinho, mas quando esquecia, também se fazia ouvir, reclamando.

De vez em quando, a soltávamos dentro de casa. Mas ela não gostava de que a pegássemos, dando picadinhas delicadas, como se protestasse. Vez ou outra, conversava com ela através de assovios, porém nunca consegui me comunicar convenientemente. Era comum, a Bethânia correr em direção à sua gaiola para assustá-la, por pura diversão. Quando a gaiola se esvaziou de sua presença, ela correu, mas parou assim que percebeu a sua ausência. Assim como ao passar no corredor que ela ficava, também a senti.

Ela compunha a nossa paisagem emocional e visual. Tentava me aproximar dela e entender o que ela estaria “pensando”, “sentindo”. Será que a sua solidão seria igual à nossa? Será que sabia estar presa a um espaço restrito ou aquele mundo era suficiente para sua expressão? Já que sempre viveu assim, institivamente sequer “imaginaria” que seus irmãos voassem livres, buscassem o seu próprio alimento, namorassem, procriassem e estavam à mercê de predadores, principalmente os seres humanos? Era feliz ou felicidade é uma quimera tipicamente humana?

Ontem, a Tânia fez um memorial com a gaiola da Dulce. Ela a preencheu com plantas. Acho que é uma linda homenagem à vida. A nossa promessa é que nunca mais teremos pássaros presos em nossa casa, mesmo porque tudo começou em atendimento a um desejo das meninas quando mais novas, que receberam calopsitas de presente. Em nosso jardim, temos pássaros constantemente a nos presentear com seus cantos e voos. Prendê-los para mim é um ato de pura inveja pelas asas que possuem.  

Tartarugas Escaladoras*

Jabuti-piranga, aos quais sempre chamamos de tartaruga

A imagem acima registrou o passeio pela casa de uma das tartarugas, que devagar e sempre, passou por cinco cômodos para vir a estacionar num cantinho da sala. Quando criança, tinha sonhos recorrentes, verdadeiramente, pesadelos, com tartarugas. Neles, eu via várias delas caminharem em minha direção, com os seus passos lentos, porém constantes. Cercavam-me devagar e, mesmo que subisse sobre os móveis, elas vinham em minha direção escalando paredes, cama, camiseira e guarda-roupa. Provavelmente, essa mesma tartaruga e sua companheira, devem ter me inspirado esses pesadelos, já que estão na família há mais de 70 anos. Deixei de ter esses pesadelos (que pareciam tão reais) quando vim a perceber, ainda dentro do sonho, que eram apenas sonhos. Descobri, apesar da minha imaginação que me fazia voar sobre as casas do meu bairro, que tartarugas não sobem ângulos retos… Elas não sobem, não é mesmo?…

*Texto de 2014

A Pipa*

Perdeu, playboy!

Quando eu era garoto, adorava empinar pipas (papagaios, pandorgas…). No início, quando não tinha tanta habilidade ou recursos, aprendi a fazer “capuchetas”, com folhas de jornal. Ficava feliz quando encontrava um papel mais firme para fazê-las e era uma vitória emérita quando conseguia colocar uma no ar. Com o passar do tempo, aprendi a confeccionar pipas mais complexas.

Para tanto, tinha que conseguir um pedaço de bambu, que separava em varetas, que deixava na espessura, lisura, peso e flexibilidade ideais, com uma faca de cozinha mesmo. Preparadas, confeccionava a minha pipa, com linha, cola e a disposição ideal das varetas, no desenho e na distância necessária para que ela planasse de acordo com o perfil que desejava e a aplicação requerida — agressiva, para um combate no ar ou mais abrandada, simplesmente para vê-la voar. Escolhia o papel de “seda” na cor preferida, às vezes com sobreposições, feitas com cuidado para que a pipa não ficasse “pensa” — desequilibrada.

O “estirante” também contribuía para que a dirigibilidade não ficasse comprometida, além da “rabiola”, que tinha que ter o tamanho e o peso certos para que ela pudesse subir. A aspiração de todo garoto era conseguir comprar a linha “nº 10 – Coats Corrente” para empinar, além da lata de pêssegos em caldas perfeita ou outro enlatado de tamanho proporcional para que a enrolássemos.

Geralmente, depois de tanto envolvimento, acabava por dar um nome às pipas e sentimento de perda intensa quando a via partir devido a um rompimento da linha, pela força do vento ou por ser “cortada” por outra pipa. Apesar disso, nunca corri atrás de uma “mandada”, porém compreendo a descuidada busca por pipas perdidas. É comum vermos crianças de todas as idades correrem pelas ruas de forma imprudente, chegando a pularem muros e subirem em telhados. No “meu” tempo não havia tantos carros na periferia, mas cães bravos sempre foram onipresentes. Todo esse trabalho fazia parte do aprendizado da atividade de “empinar” pipas, o que conferia um prazer imenso ao vê-las ganhar os ares e uma dor equivalente quando as perdíamos.

Atualmente, para a maioria das crianças, vendem-se pipas prontas, feitas “em série”, sem envolvimento emocional ou desenhos diferenciados, a não ser pela exposição de logotipos esdrúxulos, que denunciam, antes de tudo, uma espécie de perda simbólica da inocência…

*Texto de 2012

O Mais Pesado Que O Ar

Noite feita,
quase relego ao esquecimento
a imagem da tarde…
Crepúsculo recuperado,
o passado
se faz presente e arde…
Revejo a nave que não sei se chega ou se parte…
Pinceladas compostas de água e luz — a arte —
pontua o fundo da paisagem
ao oeste.
Eu, poeta do poente,
sei que apenas o amor é combustível poderoso o suficiente
para fazer voar
o mais pesado que o ar…