Projeto Scenarium 6 Missivas / Fev-19 / Carta A Uma Amiga

S…, como me dói lhe escrever como amigo, apenas. Apesar de nunca imaginar que isso viesse a acontecer, afinal dizia, caso terminássemos, nunca seria seu amigo… Mas não consigo deixar de lhe falar, saber do que acontece em sua vida. Ainda que venha a conhecer seu novo amor, gostaria ao menos que me colocasse em sua estante de amigos favoritos, como os livros que ama tanto. Afinal, você me lê tão profundamente…

Talvez tenha sido por isso que tenha me deixado. Não tenho mais mistérios a serem desvendados, surpresas a lhe oferecer. Eu achava suficientemente surpreendente que meu amor se mostrasse tão cristalino. Mas não se preocupe. Nunca mais perguntarei porque não me deseja mais. Imagino que seja algo que aconteça, ainda que eu não alcance a razão… Sei que o amor não tem razão. Começa e termina porque o coração quer, porque não quer mais… Apenas não me lembro de quando não a amei. Ou se amei outra pessoa na vida…

De vez em quando, gostaria que me chamasse para ouvir música como fazíamos durante tardes inteiras – Zizi, Gal, Bethânia, Elis… Juro que nunca mais a tocarei, a não ser para um abraço terno. Por alguns instantes, quero ouvir seu coração batendo em meu peito. Quando precisar de mim, pode me chamar – dia ou noite – até por sinal de fumaça, se a Internet não funcionar ou tudo mais falhar. Contudo, não quero parecer um intruso. Por este momento, sei que quer se distanciar de mim. Aceito. Não, sem dor, confesso…

Como a amo tanto, não quero que fique só, como disse que faria. Eu me sentiria muito mal que prefira a solidão a ter a mim como amante. Mas me esforçarei para entender que queira se entender sem mim. Caminhar sem ter meus passos ao lado dos seus, minha sombra a se confundir com a sua… Que queira se sentir única em vez de unida a alguém… ainda que esse alguém seja eu.

De seu antigo amor e, agora, amoroso amigo…

D…

https://www.youtube.com/watch?v=Z3v-K0YQ4vI

Projeto Seis Missivas Em Seis Meses — Scenarium
Participam: Mariana Gouveia, Lunna Guedes

O Vício E Eu

 

Não sou fumante, mas posso falar de cátedra sobre o vício de fumar, pois a minha mãe fumou até morrer. Ela começou tarde, por volta dos 36 anos, quando se encontrava exilada conosco, meus irmãos pequenos e eu, na Argentina. Sentia falta do marido, que havia voltado para o Brasil e do resto da família, muito apegada que era aos irmãos. Nunca mais parou. E, dessa forma, começou a minha saga como fumante passivo e “traficante”, já que era eu quem, no começo, comprava os maços de “Continental” sem filtro para ela. Em determinado dia, a revolução se deu. Ousadamente, para os meus doze anos, me recusei a ir comprar veneno para quem amava, resolução que mantive dali adiante. Isso não impediu que Dona Madalena continuasse com o vício.

 

Quando vieram as netas, pedi a ela que não fumasse diante das meninas e acho que cumpria a solicitação, não sem muito esforço, pois as amava muito. Por ocasião do aniversário de 1 ano da minha caçula, ela saiu da festa direto para o hospital, em decorrência de insuficiência respiratória. Depois desse susto, aparentemente, parou de fumar, pelo menos por algum tempo. O seu aspecto físico e mental melhorou a olhos vistos. No entanto, soubemos depois, voltou a fumar escondida de todos, com a conivência da auxiliar doméstica, sua cúmplice e parceira no fumo. Ao menos, parecia ter diminuído o consumo, já que não sentíamos tanto o típico odor de nicotina no seu vasto cabelo. Ela escondia os cigarros com tanta maestria que quase nunca os encontrávamos. Era danada a minha velha mãe…

 

Um dia suas condições gerais não puderam ser revertidas, principalmente porque os pulmões não suportaram suprir a demanda extra de oxigênio exigida. Nessa época, eu era bem mais condescendente com o seu vício, não por aceitá-lo, mas por compreendê-lo. Sabia que o apego ao cigarro, prioritariamente na mulher, é muito mais difícil de ser revertido, por sua própria constituição fisiológica. E também porque, três anos antes de seu passamento, eu mesmo quase morri por causa do meu próprio vício – por açúcar – o que me levou a desenvolver Diabetes, a ponto de chegar a um índice de 715 mg/dl de glicemia e consequente crise.

 

Fiquei internado por uma semana, e saí do hospital disposto a mudar radicalmente a conduta, entendendo melhor o quanto o vício desrespeita nosso conhecimento daquilo que nos faz mal. Ao contrário, fazemos o perigoso “jogo do auto”. Primeiro, a auto enganação, propagando que podemos parar quando quisermos. Depois, passamos a desculpar as nossas deficiências com a autoindulgência, encontrando sempre uma justificativa e jogando a responsabilidade nos outros ou nas circunstâncias. Logo, chega a fase da autocomiseração por nossa lamentável condição de viciados e, finalmente, revoltados com os inimigos que nos apontam o vício, chegamos à autossuficiência social. Não nos importamos mais com a opinião dos que nos cercam e atacamos quem “nos ataca” ou ataca o nosso motivo propulsor do  prazer. É muito comum um fumante se sentir extremamente ofendido quando se fala do malefício do cigarro. É como se estivessem falando mal da pessoa amada.

 

E, então, de uma hora para outra, somos colocados diante de nossa mortalidade. Alguns nem sentem tanto medo de morrer, mas percebem o amor que algumas pessoas lhe dedicam e, por elas, decidem: eu vou parar! Um pouco antes de eu chegar à fase mais aguda da doença que desenvolvi e motivou a minha internação, no final de outubro de 2007, morreu Paulo Autran, no dia 12. Eu ficara, então, impressionado com o relato de Karin Rodrigues, então esposa do grandíssimo ator, quando disse que o último pedido dele foi fumar um cigarro, o mesmo que ocasionou o desenvolvimento do câncer que o vitimou. Pensei comigo mesmo que, como ele, eu deveria parar de tomar refrigerantes, comer doces, de acrescentar açúcar ao achocolatados que consumia, entre outros atentados ao meu pâncreas. Talvez já estivesse sentindo o que poderia ocorrer, caso continuasse agindo da maneira que agia, quase como se quisesse me matar. Rapidamente, os sintomas da hiperglicemia se fizeram presentes – diminuição da acuidade visual, a boca extremamente seca, o cansaço, a micção constante e a extrema irritabilidade, entre outros sintomas.

 

Minha esposa chegou a me dizer, posteriormente, que não estava mais aguentando ficar ao meu lado. Pior, anunciou para minha mãe que se separaria de mim caso eu continuasse a agir da maneira que estava agindo, já que aquele comportamento parecia revelar um permanente traço de personalidade. Na verdade, estava passando por um processo chamado de Cetoacidose Diabética, que proporciona tal desequilíbrio metabólico, cuja a exacerbada irritabilidade é uma das funestas consequências. Aliás, a participação da Tânia nesse momento foi decisiva pois ela percebeu que os sintomas se enquadravam no quadro de Diabetes, a tempo de me levar para o hospital e salvar a minha vida.

 

Anos depois, ao trabalhar num festejo de “bodas de vinho” (70 anos de casamento), encontrei uma pessoa com o sobrenome Autran. Perguntei se era parente do grande ator, que ela confirmou. Durante a conversa tomei coragem de perguntar sobre a circunstância incrível relacionada à sua morte que ainda reverberava em mim devido à sincronicidade dos fatos. Ela abertamente relatou que o câncer em Paulo Autran estava tão avançado que o diagnóstico estava fechado. Não havia mais o que fazer. Ele sabia que iria morrer a qualquer momento e o seu último desejo foi o de morrer unido ao seu companheiro mais íntimo – o cigarro…

Columbas livias de Sant’Anna

Columbas

Sant’Anna fervilhava em plena hora do almoço com o vai-e-vem dos passantes e passageiros – somos todos passantes e passageiros. As pombas, já satisfeitas com a abundante alimentação proporcionada por aqueles outros seres que jogam restos de comidas nas calçadas e áreas de uso comum do terminal do Metrô, estavam reunidas em uma alegre confabulação em um ponto determinado do jardim. Ou simulacro de jardim, já que se apresentava pelado de grama devido às pisadas de homens e mulheres que dividem a praça com elas vivendo igualmente do lixo humano.

Chamou-me a atenção o comportamento daquele grupo específico de Columbas livias, já que se assentavam como galinhas poedeiras, calmas e descontraídas, em substituição á postura normalmente atenta e desconfiada. Realmente, pareciam prosear sobre o dia, as aventuras, os achados alimentares ou sobre a chuva que sabiam que cairia mais à tarde. Não creio que os homens ocupassem tanto o tempo da pauta. Talvez apenas não entendessem tanta faina daqueles estranhos seres que, presos ao chão, se deslocavam incessantemente em busca de seu próprio sustento.

As pombas desconheciam que o que aqueles bípedes sem plumas secretamente mais desejavam era o que de mais simples realizavam e que, naquele momento, desdenhavam: voar como elas…

Inconfidência: Perdão

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Ele

Olho em seus olhos e percebo que sorriem, brilhantes. Depois de todos esses anos, a vejo solta, gestual descontraído, muito à vontade em minha presença. De certa forma, me sinto bem por fazê-la crer que tudo ficou bem depois da sua revelação de dez anos antes. Após o choque inicial, demonstrei solidariedade, mas por dentro ocorria uma revolução. Fisicamente, senti como se estivesse caindo. Esse processo perdurou por alguns meses, até sentir o baque da queda, a dor excruciante de ver a minha ilusão desfeita, ainda que suspeitasse há muito que algo não se encaixasse… Consegui fazer com que parecesse solidário com o sofrimento que carregou por ocultar por tanto tempo que traiu. Aliás, busquei revalidar essa expressão – traição – uma tentativa em reverter o vazio que deixou: uma bomba de nêutrons – destruiu a vida, porém preservou a estrutura aparente.

Naquele dia, morri um pouco. O passado ganhou novas definições. Fatos indeterminados em significância se aclararam. Vislumbres circunstanciais se solidificaram como revelações. A verdade, tão bela quanto aguda, ganhou clareza filosófica. Em defesa de minha integridade emocional, acabei por desenvolver intimamente a concepção de que ninguém é de ninguém. Publicamente, aqui e ali, repetia que o prazer é pessoal e que ninguém tem o direito de interferir nessa questão… até mesmo, quem assumiu um compromisso de fidelidade. Mesmo porque, quem promete algo em um momento não será a mesma pessoa ali adiante. Assim como não será para aqueles com a qual se relaciona a promessa. Mudamos e nos mudamos. Literalmente, nos tornamos outras pessoas. Morremos e renascemos, estimulados pelas mútuas experiências, vivências internas e externas.

Eu já usara esses argumentos antes de saber o que soube. Você achava que fosse uma possível desculpa para alguma falta de minha parte. De certa maneira, intuitivamente eu sabia o que acontecera no começo de nosso relacionamento. Deixei passar porque a amava. Aceitei, de antemão, o possível peso do acontecido. Com o passar do tempo, cheguei a esquecer de minhas suspeitas. Quando finalmente me foi revelado, apesar do período passado, tudo foi como se fosse no presente…

Agora, neste momento que perdemos Ufo, nosso filho de quatro patas, preferi deixar tudo às claras. Não queria demonstrar diante dele a minha mágoa. Se bem que conversasse, em sua ausência, sobre o nosso relacionamento. Mas não se preocupe. Nunca falei nada sobre o segundo ano de casamento, quando tudo aconteceu… Ele se foi sem saber… Tanto, que sempre buscou nos unir, ainda que sempre ficasse na cama entre nossos corpos, atrapalhando nosso namoro.

Você se lembra como o encontramos. Depois da crise, que quase nos separou, o vimos jogado no meio-fio na rua… Tão pequenininho, sujo e abandonado, ainda com a placenta da mãe grudada no pelo. Parece que chegou para nos ajudar. Nos entreolhamos e, mesmo sem dizer palavra, sabíamos que tínhamos que cuidar dele. Trouxemos o seu pequeno corpo quase desfalecido para cá e aquele “objeto voador não identificado” voltou a nos unir.

Há três anos, você achava que eu tivesse interessado em outra pessoa e, talvez, até estivesse… Então, tirou da cartola o truque definitivo – me contou sobre o Carlos, justamente naquela época… Poxa, meu amigo, companheiro de futebol e cervejadas… Se livrou de um peso, dando para que eu o carregasse. Acho que fez isso porque talvez ainda me amasse – revelar que traiu para ser uma mulher melhor para mim, ser verdadeira, inteira… Deveria saber que a minha pretensão em parecer magnânimo me subjugaria… Ainda que soubesse estar sendo manipulado, aceitei caminhar com os pés cada vez mais afundados na lama… Hoje, revelo o que sinto – na verdade, eu nunca a perdoei…

Com o Carlos, ainda mantenho uma relação de amizade. Ele não sabe que eu sei… Quis manter essa postura para espezinhá-la também. Mas isso só piorou as coisas… Quis que você sofresse e vivia, disfarçadamente, a buscar os seus olhares sobre nós, quando nos reuníamos. Porém, odiava quando parecia não se importar. Ainda imaginava que fosse apenas simulação… Que você contou que me contou… Que talvez ainda se encontrasse com ele. Nesse caso, você terá sido muito mais cafajeste. O certo é que nunca se importou mesmo, né? Satisfeita que estava em continuar a usufruir de um relacionamento confortável e amável, sob os olhares externos. Adoraria lhe dizer que me vinguei a traindo com algumas de suas amigas, contudo, isso nunca aconteceu… E saiba que não foi porque elas não quisessem… Não vou dizer quais…

O nosso casamento… acabou… Não devemos nos enganar. Tudo o que aconteceu… não consegui superar… o meu rancor… Só decidi ficar junto consigo por causa do Ufo, principalmente depois que ele adoeceu. O mútuo sofrimento nos uniu, mas aquele casal acabou por morrer junto com ele. Não faça essa cara de espanto choroso… Eu diria que quase não me importo por não conseguir lhe perdoar… De fato, sinceramente, eu mesmo me peço perdão e o aceito…

Ela

Eu já o perdoei por outras coisas e vou perdoá-lo por isso, também… Tem razão, eu não me importava tanto quanto deveria com você. Ufo trouxe um novo alento à nossa união, mas Carlos fez muito mais… Em nosso segundo ano, você ainda não havia demonstrado que se importasse com alguém além de você mesmo. Estávamos juntos, porém você ia sempre a frente, gostava de ser o centro das atenções… Me puxava pela mão, mas me deixava logo depois, quando encontrávamos nossos amigos. Eu me ressenti bastante de sua ausência. Até que Carlos olhou pra mim… Lembra daquele churrasco na casa do Zé? Foi lá que ele me seguiu quando fui para o quarto da Leninha e do Fábio. Não disse nada. Por trás, me puxou pela cintura, beijou o meu pescoço, mordiscou as minhas orelhas, agarrou os meus cabelos e me beijou sedento, como se eu fosse o último copo d’água… Tão inesperado quanto intenso! Nós nos possuímos na cama do casal… Depois, nunca mais nos separamos. Conheci um homem, não um menino de trinta anos.

Com a chegada do Ufo, comecei a perceber algo mais em você, além do escritor narcisista. O meu olhar mudou. Carlos, como prova que me queria, continuou solteiro. Ele o ama, também, não queria magoá-lo… Quando soube que contei a você, ficou arrasado ao imaginar que se afastasse. Como continuou a encontrá-lo, sem reservas, apenas sentia certa melancolia por trair a sua confiança, sabendo (como me disse) que não conseguia deixar de me amar e de me desejar, igualmente. Eu o amo, muito… Se não fosse por ele, que sabia que eu servia de esteio para o seu equilíbrio emocional, nós já teríamos nos separado, mesmo com o Ufo vivo. Contar o meu caso de amor para você talvez resolvesse o imbróglio, mas o Ufo ficou doentinho… O tratamento para que permanecesse bem, mesmo sabendo que seria inútil para lhe dar sobrevida, impediu que eu saísse de casa. Quando ele começou a perder o seu lindo pelo por causa dos remédios, ainda assim você o acarinhava como se fosse o cão mais lindo do mundo! Voltei a me enternecer por você e ele precisava de nós… juntos…

Agora que se revelou tão rancoroso, me deixa satisfeita que tenha evoluído – expressar totalmente o que sente – e abriu caminho para me desvencilhar de nossa história. Quero que sofra, não por querer puni-lo. Quero que mergulhe verdadeiramente em si e não use os seus personagens como anteparo e sublimação. Nossa vida, a vivemos com os seus altos e baixos. Você disse que para se defender, começou a aceitar de que ninguém é de ninguém. Eu discordo dessa ideia. Eu pertenço ao Carlos e Carlos a mim. Vivemos a nossa humanidade. Não fugimos da nossa precariedade como seres. Gostamos muito dos prazeres que os nossos corpos nos proporcionam. A sua postura em se colocar acima das coisas mundanas só o torna pedante… Mesmo porque, a sua aspiração à elevação espiritual é posada… Não trepa e nem sai de cima…

Depois de algum tempo, como eu estava cada vez mais apaixonada por outro, comecei a desejar que você tivesse alguém mais. Sempre soube que algumas das minhas amigas o achavam interessante. Algumas sabem que estou com o Carlos. De certa maneira, até as incentivava que o assediassem. Talvez, fosse uma maneira de aliviar a sua atenção sobre mim, não sobre minha culpa. Mas você não aceitava as insinuações e não acho que fosse por princípios, mas por vaidade. Ainda que desejasse a outras mulheres, quis manter a pose de inacessível. Maldito ego, que o impede de usufruir dos bons prazeres da vida…

Ah, não cheguei a me emocionar por você jogar tanta merda sobre mim… Foi por pena, porque eu o amo, não da forma que você gostaria, mas apesar de tudo como companheiro de vida e pai do Ufo. Se não consegue me perdoar, sinto muito… por você… Quando vier a amar mais alguém além de você mesmo, um ser humano com o qual não queira competir em atenção, como amou ao Ufo, me compreenderá… Aceite que estes olhos brilhem, ainda que não seja por você…

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Nós Dois / Nós Todos

Nós dois fomos muitos. Todos vocês, seres especiais que estão ou passaram por minha vida, desde Tarzan, Cloé e Fofinha, me tornaram uma pessoa melhor. Tive envolvimento pessoal com cada um de vocês, amigos naturais. Saberia reconhecê-los se ou quando nos reencontrarmos, com personalidades memoráveis sob manifestações diferentes?

Nós Dois (2)
Betânia

Betânia, pequena tão presente como se fossem vinte ao mesmo tempo. Ciumenta, banguela de um canino, a lhe conferir um sorriso involuntário, quase de escárnio, chega a ser simpática. Grandes orelhas, desproporcionais à pequena cabeça, chegou em casa menor ainda, uma “ratazana” abandonada. Com o tempo, mais experiente, está deixando de confrontar a autoridade das mais velhas, substituindo o comportamento belicoso por outro, mais conciliador… às vezes. Da espécie “Cat-Dog”, sobe com facilidade a mesas, telhados e muros, sobre os quais passeia com a agilidade de uma felina e a curiosidade de uma alcoviteira. Minha companheirinha de escrita e leitura, igualmente, troca rapidamente minha atenção por qualquer movimento inusitado denunciado por algum som vindo de fora. Através de sua “irmã”, Romy, está ganhando notoriedade nas redes sociais com a alcunha de “Cu Preto”. Inquieta, antes de dormir, emite um longo suspiro digno da inocência em pessoa.

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Frida

Frida, nós dois vivemos tantos momentos juntos… Agora que a chama que lhe animava o corpo se foi, está mais presente do que nunca. Resta a falta que faz seus olhinhos de avelã, sua timidez, sua invisibilidade. Sim, porque você conseguia se esgueirar silenciosamente por entre os obstáculos e se postar debaixo dos pés das cadeiras e mesa de jantar ou no canto terá sido apenas a irresponsabilidade de alguém que descia a cem por hora em uma rua de bairro? Frida – ainda que permanentemente invisível – estará sempre em meu coração.

Nós Dois (3)
Domitila

Domitila um dia caiu em uma vasilha de comida das cachorras de casa. Não sabemos como se deu. Apenas encontramos um bicho com sarna, banhado de tinta por obra e arte de crianças ou adultos descerebrados. Tão feinha, com a pele toda enrugada, que a apelidei de “Etezinho”. Ganhou o nome de Domitila. Nunca imaginamos que ficasse tão garbosa. Cresceu linda e forte, a ponto de chamar a atenção do Sultão, o altivo galã-cachorro da nossa rua. De seu caso de amor, nasceu alguns filhotes, entre elas, Frida. As duas, inseparáveis. Ao fazer carinho em uma, teria que fazer em outra. Um hábito que desenvolveu foi se acercar de mim assim que eu começava a varrer o quintal. Como a afastava com chamegos, associava uma coisa a outra. Sem problema. Atrasava minha tarefa, mas ganhava meu dia com sua alegria de criança crescida. Estes últimos dias, tem estado mais quieta com a falta da filha-amiga.

Nós Dois (4)
Penélope

Penélope foi o ser mais amoroso que conheci. Bem… talvez gatos não pudessem dizer o mesmo. Mas ela amava tanto aos humanos que eu tentava encampar a mesma visão. Em vão. Mas sou imperfeito. Ela era perfeita, da cor negra perfeita, sempre disposta a brincar e receber a contrapartida em massagens no dorso e pescoço. Recebia os novos membros do grupo, nesse caso, sempre alguma cadela rejeitada por aqueles que levam seus preconceitos muito a sério, com a guarda protetora de uma mãe. A Rainha da nossa família viu minhas filhas crescerem e doou-se com amor e dor para tornar nossa vida mais terna possível. Já velhinha, nos causou preocupação de membro da família. Fizemos todos os esforços possíveis para tornar seus últimos dias mais confortáveis. Nós a queríamos entre nós. Talvez fosse egoísmo – amor egoísta. Ela nos amava e sabia que faria a falta que faz. Resistiu o quanto pode. Quando finalmente se entregou, eu estava ao seu lado… foi tão pouco por tanta dedicação que devotou a nós.

Nós Dois (5)
Lola

Lola gosta de dormir. Interesseira, não importa com quem. Quer apenas encostar seu corpo do lado de alguém e se sentir protegida. Apesar de seu egoísmo, basta olhar para nós – olhos nos olhos – para nos rendermos. Encerra sua chantagem com lambidas para garantir sua conquista. Em sua atual fase preguiçosa, nem parece que foi encontrada por minhas filhas correndo de um lado para o outro da avenida, totalmente desorientada, em desabaladas carreiras. “Corra, Lola, corra!”. Ganhou seu nome. As meninas a trouxeram para cuidarmos um pouco dela para depois doá-la. Na época, uma delas namorava um rapaz que a quis como mascote. Decidimos que ficaria com ele. O casal – minha filha e ele – a tratava como a uma filha. Quando se separaram, como seu cuidador foi para outro Estado, ela começou a passar parte do tempo conosco e uma parte na casa da “avó”, mãe do rapaz – guarda compartilhada. Hoje, vive conosco e faz visitas ocasionais à outra família. Lola é uma sobrevivente.

Nós Dois (6)
Sandy & Dona Madalena

Sandy viveu conosco desde pequena. Quer dizer, ela nunca cresceu o suficiente sequer para um poodle, raça da qual devia descender. Fazia visitas a casa ao lado até que decidiu não voltar mais. Como a passagem de um terreno para o outro era livre, não foi difícil. Na verdade, os dois terrenos pertenciam a nossa família. Nós morávamos em uma casa, em outra, minha mãe. Ardilosamente, Dona Madalena foi cooptando a Sandy através de subornos na forma de comidinhas, petiscos e muito, muito amor. Minha mãe era um ser que tinha o dedo verde, falava com as plantas, amava os animais. Ao mesmo tempo, conseguia reunir em torno de si pessoas que apenas em sua presença conseguiam se tolerar. Sandy, aos poucos foi se tornando tão territorial que tentava impedir que os próprios filhos humanos beijassem a mãe. Quando Dona Madalena adoeceu definitivamente, após um tempo de internação, veio a falecer. Durante esse período, ela passou todo o tempo junto ao portão, esperando a sua volta. Certo dia, ela desapareceu. Apesar de nossas buscas, nunca mais a vimos. Foi em busca de seu grande amor…

Nós dois (8)
Dorô

Dorô – Dourada – amor de todos nós, da Família Ortega. Não podia deixar de falar de você. Sim, vale infringir as regras e ultrapassar a postagem das seis fotos para homenageá-la. Filha única da Lua – sua mãe – como que surgida por magia da noite, foi a nosso xodó, antes mesmo da Penélope. Amiga-filha-irmã, ajudou a Tânia a encontrar sua conexão com os cães, quando adoeceu, já velha. Tânia começou a entender que esses seres se expressavam de uma maneira diferente, por gestos sutis e olhares profundos. Isso a comoveu definitivamente. E se tentamos, todos nós, compreender qual seria o papel (em nossa mentalidade utilitarista) dos cães, suponho que seja a de nos ensinar a amarmos sem entender o porquê. Amor, sendo amor, por amor…

Participam dessa interação

Ale Helga | Maria Vitória | Mariana Gouveia | Lunna Guedes