São João

São João
Conta-se que Isabel estava grávida de São João Batista e combinou com sua prima, Maria, que quando o bebê nascesse, ela acenderia uma fogueira sobre um monte para comunicar a novidade. A partir de então, todas as festividades do Santo possuem uma fogueira para iluminar a noite.

Vivemos o mês de junho, transição entre o outono e o inverno no Hemisfério Sul. Mês das festas populares de São Antônio, São João e São Pedro. Hoje, é Dia de São João. Nunca dancei quadrilha em festas juninas. Quando garoto, oportunidades não me faltaram, mas a minha timidez… Como eu reagiria ao tocar a mão da minha parceira de dança? E se todos achassem que ela fosse a minha namorada? E se ela quisesse conversar comigo, como eu responderia? E se eu errasse os passos? Como poderia sequer caminhar com todos os olhos circundantes a me observar? Sei que perdi grandes chances de me expressar como pessoa, principalmente nesses eventos populares, de festas, mas carregava comigo a vergonha de ser um menino tão desajeitado…

Eu via mais sentido em parecer triste do que contente, ainda não conhecia o “Samba da Benção”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell, que me redimiria de me sentir melancólico, de vez em quando, o que não impediria de me sentir feliz por não ser tão alegre. Estava convicto de que as pessoas eram “sim” ou “não”, “preto” ou “branco”, “bom” ou “mau”, “bem” ou “mal”. A zona cinzenta onde todos os sentimentos, emoções e desejos residem em perfeita desarmonia ainda não era vislumbrada por mim. Ou era “herói” ou “covarde” ou “bandido” ou “mocinho”.

Ainda hoje, tento conviver com o fato de que tudo apresenta os seus meios termos, que o fogo que queima é o mesmo que aquece, dependendo muito da proximidade ou do objetivo que destinamos a ele. Pular a fogueira, aprendemos em criança. Hoje, é prática corrente, sendo Dia de São João ou não…

 

Algo Diferente

ALGO DIFERENTE

Cartazes em muros anunciavam-perguntavam – “QUER COMER E VIVER ALGO DIFERENTE?” – a respeito de um evento em um centro de convenções e feiras. Como a palavra “ALGO” estava um tanto encoberta, na primeira vez que a li experimentei certo estranhamento. Querer viver e comer (algo) diferente tem um forte apelo a muitos insatisfeitos com a sua própria existência. Comer poderá nos transportar para tempos findos ou acrescentar sensações novidadeiras. Pelo paladar, olfato e tato, para além do simples olhar, viajamos para fora do corpo, o que se espera muito mais do que meramente viver.

Obviamente, ao se tratar de um enunciado promocional-comercial, conhecer novos sabores e viver outras possibilidades de vida devem se restringir aos limites do aceitável, devidamente controlados para que o desejo não mate o desejoso-consumidor. É o que esperamos quando vamos ao parque de diversões para voltearmos em montanhas-russas, adentramos às casas de espelhos, viajamos pelos trens-fantasmas e romanceamos em rodas-gigantes.

Após a sensação de vertigem, brincadeiras com a nossa aparência e sustos provocados pelas ameaças fictícias proporcionados pelos elementos de horror – distorção e escuridão – reinventamos o círculo da vida, saímos sorridentes e voltamos aliviados à rotina diária de nossa labuta pela sobrevivência, essa, sim, plena de situações que nos deixam verdadeiramente descompensados.

A fuga da realidade é um programa tão atraente que a arte do entretenimento a tornou um importante vertente de sua produção. Consumimos artigos aprimorados para nos distrair do comezinho dos dias e nos afastarmos de nossas limitações e precariedades. Quando travestido de arte engajada, a diversão acresce-se de um poder sedutor que aplaca nossa eventual vergonha pelas injustiças sociais por nos sentirmos bem em meio ao caos.

Estímulos exteriores-sensoriais são habilmente utilizados para despistar os nossos sentidos de estarmos onde estamos e de fazermos o que fazemos. O deslocamento de si depende da profundidade dos efeitos exteriores ou do quanto a pessoa se deixa seduzir pela experiência de deixar-se sem ir. O grande deslocamento se dá quando chegamos a acreditar que não somos quem somos.

Por outro lado, há movimentos que tentam nos colocar diante de nós mesmos, nos enfrentarmos até vencermo-nos para alcançarmos a verdadeira e fundamental mudança. Para tanto, devemos navegar contra a corrente para buscarmos o caminho da autoconsciência, o que implicará em deixarmos de dar importância a certos valores. Custará caro: abandonar o que é supérfluo. O grandioso ato de coragem – nos desnudarmos e nos darmos – nos coloca em grande perigo de extinção… do ego.

Enquanto não damos o grande passo, podemos recorrer aos joguinhos momentâneos que nos distrairão de nossa grandeza e nos farão esquecer de nossa verdadeira natureza…

Vandos

Saio debaixo de chuva para cumprir compromissos inadiáveis. Desço a rua, transformada em passarela de pequenos riachos surgidos por obstáculos e irregularidades do asfalto. Chego ao lugar onde deveria estar o poste do ponto de ônibus, que se encontra “despontado”. Pergunto a um sujeito que se protege debaixo da marquise de uma loja se ali seria a parada de ônibus. Ele responde que sim. Indica o poste caído junto ao meio-fio e com certo ar de desdém, completa: “‘Foi’ os ‘vandos’…”. Imediatamente, começo a sentir saudade do tempo em que Vandos apenas cantavam: “Você é luz…”.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Serendipitia / Três Horas Por Três Minutos

Há situações que ainda que não esperemos de nenhuma forma, acabam por nos trazer um grande prazer, muitas vezes pelo ineditismo da situação ou porque, se fôssemos imaginar que acontecesse, seria um exercício de impossibilidades, como ganhar no jogo, principalmente quando não jogamos, a se concretizar de maneira tal que talvez só um sonho explicaria.

Em um desses sábados, pelo Whatsapp, Weslei Matta, jovem cineasta – diretor, roteirista, editor de imagens, cinegrafista – que conheci através de minha caçula, em um desses encontros de contemporâneos intemporais, me consultou sobre a disponibilidade de atuar como Don Alighieri, um mafioso do futuro. O ator que o faria, ficara impossibilitado. Acertado para a manhã de quinta-feira seguinte, restaria a mim, em cinco dias e meio, decorar as falas, encontrar o tom de expressão exato de alguém poderoso, convicto de sua invencibilidade e… morrer.

Serendipity (1)
RONIN: Eu achei que você seria um desafio, Don, mas estou decepcionado… DON ALIGHIERI: Você trapaceou… Seu hacker maldito!

O set para a realização das cenas “no armazém” teria lugar no Instituto Criar de TV, Cinema E novas Mídias, fundada em 2003, aproveitando construções típicas do início do século XX, comum na região, de indústrias ou armazéns desativados remanescentes do surto desenvolvimentista paulistano do início do século passado. O Bom Retiro, um dos bairros mais antigos da região central de São Paulo, sofre um rápido processo de especulação imobiliária voltada a edificações de condomínios residenciais. Os antigos conjuntos de graciosas casas operárias pouco a pouco deverão se extinguir e as ruas por hora tranquilas darão lugar ao esquemático tom monocórdico dos novos empreendimentos.

Serendipity (6)

Não seria a primeira vez que atuaria sob o convite de Wes, como eu o chamo (em referência a outro cineasta – Wes Craven). Na outra oportunidade, Wes me dirigiu, mas desta vez a direção caberia a Pedro Oliveira, que eu conheci como cinegrafista de “Da Sacada”, clipe baseado em uma canção de Marcos Wilder, pela mesma St. Jude Produções. Por alguma razão insondável, acharam que poderia atuar daquela sorte e diante do imprevisto, voltaram a me chamar. Acordei cedo, com a cidade lavada em um típico dia paulistano dos bons tempos da garoa e lá fui eu para a região do velho Bom Retiro, para as cenas programadas.

Serendipity (2)
Instituto Criar de TV, Cinema E novas Mídias

Wes conhecia o espaço porque estudou no “Criar”. A diária estava programada para até às 14h30. Cheguei a tempo de poder ver outras cenas já gravadas do primeiro episódio de “2099”, que se passa num futuro pós-apocalíptico em que os jogos virtuais se tornam fonte de disputas entre forças antagônicas. Na trama, sou Don Alighieri, capo da realidade virtual que enfrenta Ronin, um matador de aluguel, personagem manipulado-incorporado pelo jogador Jon no mundo real. Ficamos à espera dos outros atores participantes das cenas. O ator amador se sentia estranhamente tranquilo, um veterano, não apenas na idade. A expectativa era que tudo corresse bem, principalmente porque sabia do talento dos jovens envolvidos no projeto. O que veio a se confirmar plenamente.

Serendipity (3)

Durante as filmagens, a discussões sobre como se desenvolveria as tomadas dos planos e ângulos das ações eram interessantes e demonstravam a capacidade de cada um dos envolvidos. Todos demos sugestões – atores e realizadores – acatadas aqui e ali –, mas o respeito pela liderança de quem conduzia a filmagem era inquestionável. O saber se sobrepunha à vaidade e a busca das melhores soluções para que chegássemos ao melhor resultado me permitiu viver uma realidade virtual-exemplo do que poderia ser a realidade palpável deste País. Como referência cruzada, o escritor não pode deixar de notar que até um livro de Bukowski – O Amor É Um Cão Dos Diabos – fez as vezes de apoio da câmera para proporcionar o ângulo exato para a realização de uma cena.

Serendipity (14)
Como um ser humano comum levanta um outro pelo pescoço com apenas uma das mãos?

Poucas vezes me senti tão bem. O velho encontrou, entre pessoas que carregavam um terço a metade de sua idade, o amor pela realização da arte – transformar ideias e pensamentos em algo vivo-em-movimento. O jogo entre realidade pós-apocalíptica e virtualidade de alguma maneira encontra ressonância nos tempos que vivemos. Por três horas trabalhamos para que três minutos de ação se tornassem uma visão consubstanciada de algo concreto – ilusão de outra vida – espírito ganhando um corpo. Iludir para entreter-fazer-pensar é um sucedâneo para a existência iludida imposta cotidianamente por mistificadores-algozes que grassam na cena brasileira.

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“E você me inventou e eu inventei você e é por isso que nós não damos mais certo.” (camas, banheiros, você e eu…; p.129) – Charles Bukowski, in O Amor É Um Cão Dos Diabos, 1977