BEDA / Scenarium / Lógica

Lógica

Lógica tem dois significados principais: discute o uso de raciocínio em alguma atividade e é o estudo normativo, filosófico do raciocínio válido. No segundo sentido, a lógica é discutida principalmente nas disciplinas de filosofia, matemática e ciência da computação.

De início, o uso do raciocínio, a depender de quem o utiliza, passa por caminhos insuspeitos, redundando desde criativas análises estruturais a mirabolantes teorias da conspiração. Para esses, “raciocínio válido” é o que vale para explicar porquê as coisas “são” o que “estão”. Os argumentos são apoiados em ideias coletivas normalmente orquestradas externamente.

Deve ser mesmo difícil para quem não encara de maneira racional os acontecimentos cotidianos ver escapar de suas mãos os rumos alternativos aos seus paradigmas. Uma gripe vinda da China, de cepa mais virulenta, poderá significar desde indício de guerra biológica até a um projeto comunista específico para derrubar o governo de um país latino americano do outro lado do mundo. A morte de centenas de milhares de pessoas no planeta inteiro é apenas um mero detalhe.

Contra a determinação do estabelecimento da Quarentena de afastamento social, esses seres “lógicos” levantam a bandeira do prejuízo econômico resultante, sem levar em conta que a elevada mortandade igualmente causa não apenas revezes financeiros como psicológicos. A escolha pela vida é mais ética. Todos os governos sérios a estabeleceram como prioridade. Também filosoficamente falando, é a decisão mais lógica a ser tomada para impedir a progressão da Covid-19.

Porém, por estes lados, para os seguidores do governo central, o isolamento trata-se de um conluio de opositores para derrubar o líder supremo. Da maneira que vejo as atuais circunstâncias, por mais que sejam políticos (portanto, dignos de desconfiança), os chefes dos executivos estaduais e municipais adotaram as medidas corretas. Melhor para eles – em termos de repercussão política a longo prazo – que, em sendo da oposição, enfrentem a rebeldia psicótica do Capitão.

Da mesma forma que é lamentavelmente muito ruim para a população brasileira, já que muitos vagueiam entre atenderem ao chamado para permanecer em casa e o de saírem às ruas para angariar recursos para pagarem as contas. O risco de perder a vida é colocada como possibilidade distante, isso até acontecer com o amigo, com o pai ou a mãe, o marido ou a esposa, consigo. Ser soldado de uma causa não o torna mais nobre, apenas mais um número na operação de soma… ou seria de subtração?

A lógica, em termos filosóficos, me leva à metafísica – exame da natureza fundamental da realidade, a relação entre mente e matéria, entre substância e atributo e entre potencialidade e atualidade. Esse processo me eleva acima das circunstâncias comezinhas, as quais que chamo de crispações na superfície do oceano. Igualmente, me salva do sentimento de me ver como um elemento dispensável no jogo da vida – ainda que seja. Prefiro, se for para morrer de forma tão estúpida, que o faça contrapondo a minha capacidade mental lógica à perfídia de servir de peça num jogo irracional e vaidoso. Política é a arte da convivência. O que se apresenta hoje como cenário é da convivência sem abraços, sem toques e beijos somente à distância – para sobrevivermos. Para podermos voltar a viver, em futuro novo, uma vida plena.

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / Velho E Sorriso – Parte II

Velho estava acostumado a dormir pouco. Ainda que em dias de baile voltasse às 5h, às 8h se punha de pé. Não encontrou Sorriso. Gato pedia para sair para o jardim e foi atendido. Ao abrir a porta, viu Sorriso passando pelo portão com leite, frios e pãezinhos nas mãos. Ao vê-lo, sorriu.

– Bom dia, Velho! Não tinha quase nada, a não ser café. Fiz umas comprinhas.

– Bom dia, Sorriso! Não precisava… Nos últimos tempos, estou habituado a tomar apenas café, pela manhã.

– Também não estou acostumada… Vamos mudar um pouco. Tome um café da manhã completo, comigo, por mim, tá?

Sorriso, ao verbalizar seu pensamento, percebeu então sua ousadia. E se o que estivesse pedindo fosse demais? Será que ele a considerava tanto quanto imaginou?

– Se fosse fazer algo por alguém, seria por você, Sorriso… e pelo Gato, claro…

Seu rosto se iluminou no sorriso mais aberto. Entraram.

Se era uma coisa que Sorriso sabia fazer era café. Desde bem pequena, aprendeu a preparar a bebida para sua mãe. Em casa, mesmo cansada da noite do trabalho pelas esquinas do Centrão, encontrava prazer nesse cuidado de filha. Ao contrário do que acontecia com a maioria das pessoas, bastava Helena tomar a sua dose encorpada de café para se sentir torporizada. Dormia a manhã toda, enquanto Sorriso cuidava dos três irmãos. Sorriso acabou por ficar só quando dois deles morreram de parada respiratória por uso de cola e o terceiro sumiu sem deixar vestígios, todos antes dos dez anos. Sucessivamente, como praga dos deuses, Helena caiu gravemente enferma e morreu. Ainda antes mesmo de completar doze, já oferecia o corpo em troca de subsistência. Seu Zé, dono do cortiço onde morava – que ela via como uma espécie de pai – teve essa ideia para pagar o aluguel. Foi o primeiro a usá-la. Depois, passou a oferecê-la para outros homens. Fugiu. Vez ou outra, algum homem solitário a chamava para morar um tempo consigo. Ficava o tempo até perceber que se tornara uma empregada mal paga: de cama, mesa e limpeza, além dos eventuais espancamentos. Nunca quis ser uma “típica dona de casa”.

Desta vez, foi Sorriso que tomou a iniciativa de ficar com Velho. Percebeu que tinha uma imensa ternura por aquele homem experiente e triste. Queria cuidar dele, se assim permitisse. Alternativa que pareceu ser aceita quando, após o cheiroso café da manhã, Velho disse para Sorriso ficar à vontade e permanecer o tempo que quisesse. Completou que não impediria que ela continuasse o seu trabalho, se assim desejasse. Pela primeira vez, Sorriso desejou que alguém demonstrasse certo sentimento de posse por si…

Com o correr dos dias, semanas, meses, a relação dos dois se transformou em algo bem mais rico do que apenas uma mescla de simpatia e ternura que sempre existiu. E foi essa situação que os dois filhos de Velho – Júlio e Juliano – encontraram quando foram visitá-lo: um casal feliz. Aquela conjuntura os pegou desprevenidos. Mais uma vez, estavam decididos em convencer o pai a deixar a casa e ir para um asilo. Logo a vista do jardim redivivo, com flores novas a brotar nos canteiros, os deixaram desconcertados. Era como se Dona Nina estivesse esperando com suco, café e bolo. A saudade aumentou ao sentirem os mesmos aromas ao chegarem à porta.

Velho não havia lhes alertado sobre a nova situação quando avisaram que iriam encontrá-lo. Entretanto, preveniu Sorriso sobre como eles se comportariam. Experiente no trato com as pessoas, promotor e relações públicas durante cinco décadas, conhecia a natureza humana. Nada e ninguém o surpreendia. Suspeitando da insistência dos filhos em tirá-lo da casa na qual cresceram e onde ele viveu os últimos sessenta anos, procurou se informar e soube que aquela área estava cada vez mais valorizada e o terreno que abrigava a sua residência valia muito dinheiro. Era disso que se tratava. Nada de desvelo ou preocupação com o velho pai, ainda que se enganassem mutuamente que assim fosse. Nada de desejar o melhor para aquele que os sustentou, educou e se esforçou para que chegassem à faculdade. Apenas interesse econômico. Ele valia mais morto do que vivo. Já vira isso acontecer durante seu trabalho com o pessoal da terceira idade. Tornou-se confidente de muitos velhos – homens e mulheres.

– Como vai, papai? – perguntou o mais velho, Júlio, que aliás carregava o nome do pai.

– Bem! Como pode perceber…

Realmente, Velho parecia ter rejuvenescido uns dez anos. Continuou:

– Eu apresento a vocês, Sorriso, minha companheira…

Literalmente, com os queixos caídos, os Jota-Jota, como eram conhecidos, gaguejaram coisas como “pensamos que se tratasse de uma empregada ou cuidadora”; “o senhor nunca foi disso, se envolver com uma garotinha”; “deve ser uma aproveitadora, de olho em sua grana”…

Sorriso fez que não ouviu e mostrou porque carregava aquela alcunha. Disse de maneira bastante suave e até alegre:

– Fiz bolo de cenoura, café e suco. Por que não se sentam?

Como se tivesse lhes dirigido impropérios, os filhos de Velho começaram a gritar:

– Que é isso? Você não é Mamãe! Quem pensa que é? Putinha!

Velho apenas se dirigiu à porta e pediu que saíssem, com o coração apertado, intuindo que os filhos, para atingi-lo, impediriam que visitasse os netos.

– Isso não vai ficar assim, Velho! Vamos interditá-lo!

Quando saíram, Velho desabou no sofá e quase agradeceu por sua Nina não estar viva para presenciar aquela cena. Sorriso se sentou em seu colo e o abraçou afetuosamente.

O encontro com os filhos se deu no início de 2020. Ainda que doloroso, não quebrou a feliz rotina do casal. Velho e Sorriso, meses antes haviam se tornado assíduos frequentadores dos salões da noite paulistana. Velho reviveu as suas melhores noites. Para Sorriso, que com ele aprendeu seus primeiros passos de dança de salão, se descortinou uma vida que sequer imaginara. Em meados de Março, os bailes de casais começaram a ser cancelados com a chegada do novo corona vírus, com a promessa da progressão da Covid-19. Para evitar o seu avanço, a Quarentena foi instaurada. Não era difícil para o casal ficar em casa, com Gato a lhes acompanhar. Quem pudesse vê-los ocasionalmente, logo identificaria a cumplicidade natural daqueles que se amam.

No início de Abril, Velho começou a se sentir cansado e a tossir um pouco. Logo, percebeu que não estava nada bem. Disse a Sorriso que não queria ir para o hospital, nem que avisasse aos filhos. E pediu a ela que o deixasse sozinho para que não se infectasse com a doença que sentia progredir rapidamente. Sorriso o olhou dentro dos olhos, como gostava de fazer para ali encontrar o brilho do homem gentil e amoroso. Percebeu que estavam um tanto embaçados. Disse:

– Eu nunca mais sairei do seu lado…

Velho sorriu um sorriso de velho que era. Sorriso se deu conta que o estava perdendo. Tomou uma decisão, cujo desfecho só foi conhecido dias depois. Gato, que miava incessantemente no jardim frontal, pedindo para entrar, chamou a atenção dos vizinhos que passavam. Ao se aproximarem, sentiram um forte cheiro vindo de dentro da residência. Chamaram os bombeiros, que arrombaram a porta. Encontraram uma jovem de vinte anos e um senhor de oitenta, abraçados na cama de casal. Mortos. Um leve odor de gás evidenciou a causa dos óbitos.

Ao saírem com os corpos, os soldados passaram por Gato, assentado na cômoda da ante sala. Sonolento e indestrutível.

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / Velho E Sorriso – Parte I

O velho homem, entre tantos no salão de baile, não era percebido. Não mais. Antigo promotor de eventos, ainda sorri quando é reconhecido por poucos saudosos de seus bailes. Na maior parte do tempo, observa aos dançarinos, a dançar com os olhos em lugar dos pés cansados. Quase sempre, é um dos últimos a deixar o espaço como se ele mesmo se esvaziasse.

Num desses dias, madrugada alta, a caminhar para casa, o Velho passou mais uma vez pela mocinha sorridente. Costumeiramente, naquela área, ela se oferecia como a alegria passageira de homens e mulheres que pagassem 20, 10 Reais, durante anos-noites seguidas. Por vezes, sumia por semanas outras. Apesar do sorriso fácil, quase um cacoete, como se fosse um cachorro que abanasse o rabo entre as pernas por medo de ser atacado, Sorriso se abria em lábios de forma sincera para o velho. Em troca, recebia sempre um sonoro “boa noite” ainda que a manhã ameaçasse surgir.

Naquela madrugada, ocorreu algo diferente. Velho parou diante da moça que, surpresa, estancou em sorriso-esgar.

– Como vai você?” – ele perguntou.

Desacostumada a falar, a não ser para oferecer serviços e valores, pareceu não entender. Percebeu que a pergunta não havia sido mera formalidade.  Respondeu sinceramente:

– Hoje, não estou bem, Velho… – Ao se ouvir, Sorriso parou de sorrir, denunciando seus olhos tristes.

– Faturou pouco?

– Nem tanto…noite de muitos solitários…

– Quer amainar a solidão de mais um? Mas não quero entrar nesse cubículo escuro. Moro a uma quadra daqui. Sozinho. Gostaria de me acompanhar?

Sorriso não estava habituada a ser bem tratada. Via a Velho, como era conhecido por todos, sair acompanhado cada vez com menos gente ao seu lado. Ultimamente, ninguém. Aceitou o convite. Os dois caminharam sem mais nenhuma palavra. No entanto, pareciam conversar a cada olhar evidenciado pela luz artificial. Velho morava em uma casa baixa, uma das mais antigas da região, quase toda tomada por novas torres de moradia.

Passado o portão, o jardim escuro escondia o roseiral que sobrevivia apesar de não ter mais os cuidados de D. Nina, falecida há três anos. Os dois filhos, desde então, pressionavam pai viúvo a sair de casa para um retiro, já que viviam em apartamentos que não suportariam a presença de mais um, ainda que ele não tivesse problemas de saúde aparentes; ainda que fosse um avô amoroso. Em contrapartida, era pouco visitado.

Restou como único companheiro o gato angorá, tão antigo quanto alguns dos móveis da casa. Portento de resistência e pelos, postado sobre a cômoda que ficava no corredor de entrada, Gato foi a primeira coisa que Sorriso viu ao avançar com seus passos tímidos casa adentro. O miado quase inaudível foi acompanhado do olhar sonolento. Confirmada a presença de seu velho cuidador, Gato fechou os olhos de brilho preguiçoso.

Sorriso tinha diante de si uma casa ampla e de opressora solidão. Tudo cheirava a cortinado e mobiliário antigo. Velho disse para que Sorriso ficasse à vontade. Indicou o banheiro caso quisesse usá-lo e a cozinha, se estivesse com fome. Sorriso já não sabia quando estava com fome. O estômago, porém, o sentia continuamente vazio. Disfarçava com uma pedrinha de vez em quando ou, com sorte, um pó. Não gostava de maconha, por causa da larica. Após lavar as mãos, foi ver o que poderia encontrar na cozinha. Com pão amanhecido e queijo branco um tanto amarelado, fez um sanduíche simples. Perguntou se Velho gostaria que preparasse alguma coisa. Respondeu que poderia ser o mesmo que o dela. Para incrementar, ela esquentou o pão na frigideira e ao queijo acrescentou um tomate perdido na geladeira. Disfarçou a velhice do queijo com orégano e o serviu com a última lata de cerveja.

Aquela ação enterneceu o coração de Velho. O preparo do lanche simples o fez viajar para anos antes, quando Nina ainda conseguia erguer os braços e caminhar. As dores reumáticas começaram a impedir que pudesse fazer o mínimo esforço sem muito sofrimento. Desgostosa em não poder mais servir ao seu companheiro de meio século, definhou até falecer. Quando aconteceu, os filhos não estavam presentes, em férias, o que deixou Velho bastante abatido. Desejou acompanhá-la na viagem sem volta e só não o fez pelo compromisso assumido: cuidar de Gato.

Após o lanche, Sorriso perguntou o que ele queria que fizesse. Velho, franco e jovial, sorriu. Por um instante, ela chegou a vislumbrar o jovem que o velho um dia foi através da luz do tempo emanada de sua boca. Disse que queria que Sorriso tirasse a roupa e se deitasse ao seu lado. Acrescentou o convite para que dormisse ali, naquela noite.

– Atrapalha o seu trabalho?

– Não! Já estou no final do expediente. Há muito tempo, ninguém me espera!

– Ótimo! Não precisa acontecer nada. Estou cansado. Mas também vou tirar a roupa.

Ato contínuo, começou a despir-se do elegante terno preto de anos, mas bastante preservado. Deitou-se logo após. Sorriso pousou uma das pernas sobre o corpo de Velho e, se sentindo realmente segura e confortável, dormiu quase imediatamente.

Velho, comovido, fechou os olhos. Com a pele jovem a lhe tocar pernas e púbis, inesperadamente, teve uma ereção. Sentiu-se homem de novo. Adormeceu.

Beda Scenarium

 

BEDA / Scenarium / 8 Ou 80, Revisitado

80 tiros charge

Há fatos que se sucedem em avalanche uns sobre os outros de tal maneira que mal conseguimos respirar, se a opção for a de nos mantermos atentos aos tempos que correm. Porém, o mais comum, é que esqueçamos o que se passou há uma semana, há um mês, há um ano antes. Como no caso sobre o qual escrevi em 2019, neste mesmo mês de Abril – o mais terrível dos meses – segundo o poeta T.S. Eliot. Olhando em perspectiva, podemos perceber elos que se encadeiam a explicitar o momento político-social que vivemos. A chegada da Covid-19 apenas pôs a mostra a chaga aberta no Estado brasileiro. Muitos não enxergam. Precisamos, mais uma vez, descobrir o Brasil.

Somos o País do tudo ou nada. Ou quase nada de tudo, se esse “tudo” for o melhor possível. Por outro lado, apresentamos o pior de tudo, muitas vezes.

Se podemos escolher nossos dirigentes, votamos nos mais inaptos. Se temos uma empresa entre as maiores do mundo, será uma que arranca sua riqueza da forma mais mortal e predatória. Se temos um dos maiores movimentos de emancipação GLBTQIA+ do planeta, ao mesmo tempo somos os que mais matamos os seus participantes. Se temos uma das maiores populações afrodescendentes fora da África, apresentamos as mais persistentes ações discriminatórias da Terra perpetradas por uma sociedade hipócrita ao se proclamar igualitária.

Se for para matar um homem preto, que despejemos oitenta tiros sobre ele. Oito, não bastam – a média de projéteis lançados por cada um dos dez atiradores que confundiram o alvo-negro-no-carro-branco com um suposto assaltante. Condenado por engano – se for para nos enganarmos que seja por muito – por um juízo de valor eivado de preconceitos, incompetência e poder de fogo, um pai de família foi fuzilado em plena luz do dia, diante de testemunhas, por armas que atiram projéteis 7.62 à velocidade de oitocentos metros por segundo, a uma curta distância. Fico a imaginar se houve tempo de Evaldo pensar na segurança de uma amiga e da família que também ocupavam o carro – sogro, filho e esposa – antes de ser assassinado…

Quando tudo aconteceu, há um ano, uma segunda-feira, havia trabalhado o dia todo em ambiente fechado. Soube no dia seguinte, depois de ter dormido quatro horas desde a sexta anterior. Acordei com a repercussão da notícia propagada pelo rádio despertador de cabeceira. Como muitas vezes acontece, pareceu que estava sonhando. Não era possível, mesmo para o “País do 8 Ou 80” que aquilo fosse real. A “notícia boa”, diante de tamanha gravidade foi que dos cinco alvos do alvo veículo que carregava seus ocupantes a um chá de bebê, apenas o músico foi atingido. Isso significa que a munição descarregada sobre ele não foi a esmo, mas dirigida. Os ferimentos no sogro, um efeito colateral. Luciano, um catador de papel que tentou alertar os atiradores sobre a família, também alvejado, morreu dias depois.

Em uma sociedade organizada, as funções de cada instituição são delimitadas de maneira que uma não invada a outra. Membros das Forças Armadas não deveriam exercer a função de Polícia. “O Exército tem como missão preservar e garantir a defesa da Pátria, zelar pelo cumprimento pleno da Constituição e pela manutenção da Lei e da Ordem. Em tempos de Paz, uma das principais funções do Exército é defender as fronteiras brasileiras, garantindo a Soberania nacional.” Foi o caso daquela segunda-feira?

Houve ordem de prisão contra os elementos envolvidos na ação. Só não ficou esclarecido quem teria sido o mandante do crime. Um soldado cumpre ordens. Faz parte do espírito da corporação militar obedecer a cadeia de comando, assim como existe uma natural sequência na cadeia alimentar. Vitórias e derrotas se sucedem dessa maneira. Assim como a sobrevivência das espécies. O triste é que os brasileiros parecem sobreviver caminhando sobre os corpos ensanguentados dos mais vulneráveis…

Um mês depois, os meios de comunicação anunciaram: “O Ministério Público Militar denunciou doze militares que dispararam contra o carro de uma família que se locomovia para um chá de um bebê, causando a morte do músico Evaldo Rosa e do catador de material reciclado Luciano Macedo, ferido enquanto tentava ajudar a família em Guadalupe, no Rio de Janeiro. Os militares foram denunciados pelo homicídio dos dois e pela tentativa de homicídio do sogro de Evaldo, Sérgio Gonçalves de Araújo, ferido na mesma operação. Também estavam no veículo a esposa, o filho e uma amiga do músico, que não foram atingidos.”

Em maio, o STM decidiu liberar os atiradores.

Passado um ano, após as sucessivas tragédias que vivemos, incluindo a que estamos vivenciando atualmente, Evaldo e Luciano foram poupados de verem crescer os efeitos da infestação dos vírus que tomaram conta do corpo brasileiro…

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / Independência Ou Morte*

Tiradentes
Há de se perder a cabeça para se tornar herói…

Neste feriado de 21 de Abril (não tem sido todos os dias, feriados?), alusivo à Inconfidência Mineira, comandada pelo traído Tiradentes, discorro sobre a Proclamação da Independência do Brasil. Esse texto está em REALidade*, meu primeiro livro, lançado pela Scenarium Plural – Livros Artesanais, em 2017. REALidade reúne crônicas que tratam sobre fatos “maiores e menores”, a discernir sobre uns e outros em sua real grandeza, a depender de pontos de vistas individuais.

“Todos os brasileiros que frequentaram a escola carregam gravado na memória o momento em que se deu a declaração da Independência do Brasil.

Desde a mesma tenra idade, nos é ensinada a História de como tudo aconteceu. Fizeram filmes e programas de televisão, escreveram livros e pintaram quadros em homenagem àquele ato decisivo, a mostrar D. Pedro – então Príncipe Regente do Brasil, ligado à Coroa Portuguesa — com a espada empunhada, a gritar às margens do Riacho do Ipiranga: ‘Independência ou Morte!’…

A Morte, no entanto, é a única possibilidade de Independência que podemos, de fato, vivenciar em um mundo cada vez mais atado a palavra do momento: globalização… que une mercados e informações, como se fôssemos vizinhos de muro. Um espirro dado na China é capaz de deixar o mundo todo gripado. Os Estados Unidos elegem um imbecil e as Bolsas de Valores enfrentam uma onda de desvalorização. O Estado Islâmico, — ilhado em um autodenominado Califado —, menor que a maioria dos Estados brasileiros, faz explodir homens-bomba no Oriente Médio… e corpos e ideologias se espalham em ondas pela crosta terrestre. Uma criança morre afogada nas águas da costa da Europa e todas as pessoas se compadecem como se seus pais fossem.

O tráfego de notícias é tão intenso que, se fôssemos nos ater detidamente a tudo o que acontece no planeta, ficaríamos presos em nossos casulos, a sofrer… encurralados pelas dores alheias e, em algum momento, nos esqueceríamos de nós mesmos. Recentemente, o assunto do momento girou em torno das ‘fatídicas’ eleições municipais. Eu — como tantos outros eleitores — fui obrigado a escolher um representante na seara de candidatos, que se dedicaram a apresentar suas ‘fórmulas mágicas’ ao longo da campanha.

Tarefa cumprida, acredito ter feito a minha parte e, se for imitar a maioria, posso me considerar livre para reclamar: do transporte, da saúde pública, educação… o cinza que cobre o grafite, a praça arrumada com ‘obras esquisitas’.

Acredito que, realmente, seja possível escapar das circunstâncias que restringem a liberdade… mas, para isso, é necessário um exercício diário de paciência… lutar contra os condicionamentos e conceitos — e não nos limitarmos ao lugar comum. Renovar-se e estar sempre pronto e disposto a questionar o novo, e também o velho. Estar receptivo aos processos…

Não é nada fácil dar o nosso grito de ‘independência ou morte’, afinal, quando chegamos à realidade, muita coisa já ‘estava pronta’. E nos acostumamos aos valores que nos são passados — impostos — sem questioná-los: somos ensinados a apenas repeti-los, até a Morte.”

Beda Scenarium