Mês: Julho 2020
Amor Na Feira
Ao vê-lo, logo demonstrou interesse. O seu corpo passou a reverberar a atração, vibrando das pontas dos pés à ponta do nariz. Ele, mais contido, permaneceu estático, mas com o olhar fixo de quem vira a expressão mais excelsa da beleza. Foi amor à primeira vista. Passado o primeiro momento do encontro, ela buscou acariciá-lo. Mais um instante, saíram correndo entre as gentes, contentes com a presença um do outro, alheios aos afazeres prosaicos dos humanos. Foram e voltaram algumas vezes, sempre atentos aos movimentos de seus amigos cuidadores. Mais um pouco, ao chamado destes, se despediram, a se olharem com as cabeças voltadas para os extremos da rua que se alongava cada vez mais. Na próxima terça, dia de feira, talvez voltem a se encontrar…
Sobre Platão E Gengibre
Segundo a teoria platônica, as formas (ou ideias), que são abstratas, não materiais (mas substanciais), eternas e imutáveis, é que seriam dotadas do maior grau de realidade – e não o mundo material, mutável, conhecido por nós através das sensações.
Colhemos gengibre. Lavados, um dos pedaços, a depender da posição que o colocava, ora parecia ser um cachorro, brincando com algo entre suas patas; ora, um cavalinho trotando campo a fora. Pode ser a minha imaginação exacerbada, porém talvez seja um bom exemplo de como podemos distorcer algo que vemos, ouvimos ou sentimos. Afinal, o certo mesmo é que se trata, apenas, de gengibre. Nesse caso, alguns gostam muito, outros, não gostam nenhum um pouco. E gosto, não se discute, já que as sensações são eminentemente pessoais e intransferíveis.
Contudo, há aqueles que gostam de impor seu gosto como padrão, entre todos os demais gostos. Mas essa é outra história, com efeitos que vão desde relacionamentos a preferências político-ideológicas. Pessoalmente, eu não apreciava gengibre. Assim como não gostava de comida japonesa, por puro preconceito – não conhecia e não queria conhecer. Até que “abri o meu coração” ao sabor, textura, aparência e todos os demais detalhes que me levaram a me tornar um fã incondicional. Hoje, consumo o gengibre e me afeiçoei a sua ardência em chás, em pequenas postas e da forma que mais vier a aparecer. Diria que essa raiz termogênica e picante é quase como se apaixonar – queima e vicia.
Os Meninos E A Bola*
Campos vazios, agora.
Minutos antes, os meninos que nós fomos, corremos atrás da bola de futebol ̶ a disputamos em divididas; a passamos para os companheiros do nosso time; a perdemos para o time oponente; a chutamos para a meta adversária; nos defendemos de seu avanço contra a nossa meta; a saudamos pelos gols feitos por nós; a amaldiçoamos por vê-la ultrapassar por nossos defensores; a rejeitamos por surpreendê-la dócil aos pés de outro amante; a desejamos cada vez mais a cada rejeição… Ao sairmos do campo, deixamos os meninos que nós fomos para trás e nos encontramos crescidos ̶ jogo ganho ou perdido.
Voltaremos para as nossas casas, para as nossas mulheres, para os nossos filhos, para os nossos afazeres, à espera do futuro em que seremos meninos, novamente…
* Texto de 2015, quando ainda jogava futebol com os companheiros. Hoje, só em sonho…
As Meias E Suas Aventuras

Passei a tarde de hoje a lavar e estender roupas de cama, mesa e banho — camisas, blusas e peças de uso pessoal, como cuecas, calcinhas, sutiãs e meias, muitas meias. A tarefa mais desgastante foi reunir os pares, todos misturados em uma grande barafunda. Dificilmente consigo encontrar imediatamente a meia e a sua exata correspondente. Por experiência própria, sei que muitas se deslocam para a dimensão paralela onde se refugiam sempre que podem. Essa rebeldia das meias, já foi cantada em verso em prosa por todo o mundo, inclusive por mim. A surpresa se deu quando a primeira meia que separei, solitária desde então, começou a conversar comigo, quando faltava vários pares a serem reunidos.
— Oi! Oi! Meu amigo, você não vai me colocar para secar logo? Quero aproveitar o sol um pouco…
— Eu a conheço! Já fiz um texto tendo você como personagem – “Hoje, carreguei as estrelas em minha mãos…”…
— Bonito, mas e o meu caso? Você não vai encontrar o meu suposto par neste cesto… Ou ele está em outro ou ainda será lavado… Ou…
— Já sei! Foi para a Dimensão das Meias!… – Ri, pensando que fazia piada.
— Ah, então você já sabe sobre isso?
— Hã? Então, esse lugar existe realmente?
— É claro! Mas apenas algumas meias conseguem penetrar nesse universo paralelo. Muitas vezes, por puro acaso. Eu, não quero. Estou bem por aqui.
— Que impressionante! O estranho é que são sempre apenas uma das meias do par que escapam para lá…
— Somos meias de um par, mas somos autônomas, independentes umas das outras. Somos sociáveis. Gostamos de nos relacionar com outras roupas, com vários pés que nos calçam. Crescemos com a experiência do toque da pele humana. Captamos a energia que vibra de suas auras. Faço a festa aqui nesta casa. Estou sempre mudando de pés.
Imediatamente lembrei das quatro mulheres da casa, que vivem trocando de pares de meias entre elas…
— Eu pensei que vocês apreciassem a parceria constante…
— Não! Nós, meias, gostamos de bagunça compartilhada…
— Percebo certa ironia de sua parte, Meia Estrelada…
— O que você está ouvindo pelo fone?
— Música? Conhece?
— Sim, meu caro! Suas filhas ouvem muita música! Qual o tipo de música que ouve?
— Todos os tipos: Pop, Ópera, Jazz, Rock, MPB, Instrumental… Sou eclético…
— Como você, nós não nos prendemos a essa à organização que os seres humanos querem nos impor. Essa falsa regularidade que vocês querem dar à vida. Por nós, mudaríamos de pares sempre que possível, para trocar experiências. Não nos importamos com o tamanho, cor ou textura. Eu por exemplo, sou louca para sair com uma meia fina…
Enquanto conversávamos, eu continuava a separar os pares para pendurar no varal. Ao término, sobraram três pés de meia sem par, incluindo a Estrelada. O seu par realmente não se encontrava entre elas.
— Eu não disse? Pode me colocar junto com as outras duas. Tenho certeza que elas não se importam, ao contrário. Eu as conheci no troca-troca da máquina de lavar. Oh, loucura! Vou adorar passar esse tempinho ao sol com elas… Ah, agradeço o papo!
Eu a posicionei como ela pediu e continuei a estender roupas até bem depois desse interessante diálogo. Vez ou outra, passava em frente da Estrelada, mas ela parecia estar dormindo sob o contato aconchegante dos raios solares do inverno. A Estrelada, apesar de sua atitude independente, não percebeu que a falta de seu par poderia condená-la ao ostracismo. A não ser que o estilo das minhas filhas mude e elas comecem a usar meias que não combinem o padrão. Talvez, este texto as ajudem nessa decisão…