Jogos Por Ovos?

Comer ou jogar?

Há dois dias, enquanto limpava o meu quintal, na rua ouvi passar um veículo anunciando a venda de ovos. O alto-falante apregoava: – “Ovos, ovos fresquinhos, trinta ovos por R$ 10,00!”. O pregão completava: “Caso não tenha dinheiro, trocamos por Tele Senas!”… Apesar de lembrar que a minha mãe comprava muito, não estava a par do que se constituía a Tele Sena e pesquisei. Ela vem a ser vendida, na verdade, como um “titulo de capitalização”, com premiações eventuais em dinheiro para quem faz mais ou menos pontos, na “raspadinha”, no momento da compra ou até o prêmio de uma casa, em sorteios especiais. Ao final de um ano, mesmo que não ganhe nenhum prêmio, o portador recebe a metade do valor que “investiu”. Acrescentada à inflação, o retorno é, obviamente, um péssimo investimento.

Dadas essas características, o nome de título de capitalização se perde. Capitalizar, para mim, tem o condão de, pelo menos, preservar o poder de compra do dinheiro investido. A não ser que… A não ser que o portador seja um sortudo e que venha a ganhar um dos prêmios. O que, dado o universo de “investidores-jogadores”, tem uma chance muito pequena de acontecer. Fora o fato de ser um valor menor se tivesse, simplesmente o comprado diretamente, depois de economizar para isso. O componente do jogo faz com que aquele pedaço de papel adquira um poder mágico, proporcionado pela possibilidade de que seja sorteado para um dos prêmios.

Fiquei a imaginar no caso daquela pessoa que tem uma Tele Sena, ainda vigente e que não tem mais nenhum centavo em casa, além daquele papel e que esteja passando fome. Será que aquela pessoa viria a trocar os jogos por ovos? A possibilidade pela certeza? O “quem sabe?” pela omelete? O vazio no estômago pela satisfação? Para mim, a resposta é óbvia, se bem conheço o brasileiro. Eu não jogo, por isso, digo que ganho toda semana. Mas para quem tem o bichinho do vício no sangue, o embate íntimo ganharia proporções dramáticas e a troca da Tele Sena pelos ovos seria como uma tentação do Demo. Ao final, sei que aquele dia seria mais um dia de fome. O “quem sabe?” venceria…

Uma Mulher

Até o outro dia, eu vivia em minha cidade
Quem caminhava por aquelas calçadas
Tinha oito, dez, doze anos de idade
Sonhava cantar entre bocas caladas

Queria ser ginasta olímpica ou acrobata
Seria bailarina, atriz, cantora e modelo
Corria, saltando por sobre o muro do meu castelo
Princesa que eu era, moleca, brincava de pirata

Corria de carros e de touros, de gansos e de moços
Até que cresci e o perigo começou a me atrair
Descobri o poder que tinha de conquistar sem esforços
Lançava olhares ao redor, possuía e tinha vontade de partir

E parti em busca de sentimentos profundos e do mundo
Vivi amores, senti dores, provoquei desmoronamentos
Alcancei o céu e chafurdei no lodo imundo
Fui considerada excelente e fomentei lamentos

Eternamente apaixonada e quase sempre apaixonante
Capturei vítimas e me vitimei, fui muito amada e muito amei
Na curva da rua a menina que fui não mais ouviu o vento sussurrante
Deixou de subir em árvores e de ouvir respostas que clamou

Envelheci ao encontrar o meu amor definitivo?
Ao sentir que pertenço a alguém, deixei de sonhar?
O meu corpo, compartilhado, se sentirá permanentemente cativo?
Por que, em vez de certezas, agora só tenho o que perguntar?

Panem Et Circenses

Represa de Guarapiranga

O meu irmão e eu, somos locadores de equipamentos de sonorização e iluminação para a realização de eventos. O nosso trabalho envolve certas circunstâncias especiais e uma delas é o de tentarmos agir o mais seriamente possível em uma atividade que dá embasamento para a celebração da alegria e a descontração… dos outros. Como sempre digo, trabalhamos onde os outros se divertem. Desde a política do “Panem et circenses”, ao tempo do Império Romano, que buscava distrair o povo para os problemas sociais de então com um expediente que, de alguma maneira, o deixava sua liberdade à mercê dos poderosos, percebe-se que celebrar é uma poderosa maneira de dar vazão à alegria por estarmos vivos, comemorar um diploma, uma conquista profissional ou social, o aniversário, lançamento de produtos, casamento, congregar, etc.

Expressar alegria em público faz parte da história das civilizações e é uma característica humana ímpar, em todos rincões do planeta. Nós, da montagem da estrutura de base, chegamos antes e saímos depois. Enfrentamos acessos dificultados por condições precárias que vão desde à restrições de livre circulação por motivos de segurança ou conformação material, como corredores estreitos e escadarias íngremes — normalmente improvisações arquitetônicas de projetos que não contemplam os serviços como fundamentais — ainda que sejam. Assim como restrições implementadas por clubes, buffets e similares em que somos tratados como invasores e não colaboradores.

Para ganharmos o nosso pão, trabalhamos como os feirantes e os trabalhadores de circo — outras tradições de origem antiga — ou somos comparáveis aos povos nômades. Armamos o nosso acampamento, permanecemos por algum tempo em determinado lugar e, logo após o término do que viemos fazer, vamos embora. Afora registros como filmagem e fotos, quase não deixamos prova de que participamos de um evento real. Comparecemos como pano de fundo ou uma lembrança — substância de apelo tão fluido quanto pessoal. No final, quando desmontamos o acampamento e carregamos os equipamentos de nosso uso, resta-nos relaxar pelo trabalho bem feito e poder apreciar paisagens como a que registro aqui, observada junto à Represa de Guarapiranga, onde havíamos acabado de realizar uma festa de formatura.

Era um sábado, entrava o horário de verão e senti, naquele momento, que presenciava uma imagem como se fora o alvorecer do mundo. A ilusão seria mais completa se torres feitas pelas mãos dos homens não interferissem na ilusão da miragem.

Voo

Não sou flor,
mas uma borboleta me procurou…
Talvez sentisse
que eu fosse um porto seguro,
uma parada estável durante o seu voo
aparentemente sem rumo.
Sabia que ela vivia
os seus últimos momentos.
Passou a maior parte de sua existência
a esperar a liberdade.
A sensação de ser livre carrega a morte anunciada
em sua própria gênese.
Se todos nós morremos um dia,
que seja dessa maneira: um voo
lindo
para outra possibilidade de ser…

Sol & Água*

Se há alguém que gosta do Sol, sou eu. Quando era garoto e tentava entender o significado de divindade, olhava para o céu, como fizeram bilhões de homens antes de mim. Como eu, eles também entenderam que sem a luz solar a vida sobre a Terra não existiria. Antes que algumas civilizações impusessem a humanidade como a verdadeira representante de Deus, a estrela em torno da qual este planeta girava em torno, já era reverenciado como tal pelos simples de coração. Do alto de sua predominância, ele não deve ter se importado com as crenças que surgiram posteriormente que o colocava apenas como um coadjuvante no firmamento dos arrogantes seres humanos em suas fainas…

Porém, abro espaço para as nuvens escurecidas. Inauguro, em minha página, o gosto pelo céu fechado. Quero que o planeta Água, que o homem chama de Terra porque quer, volte a ter o fluídico elemento como o centro de sua atenção. Com efeito, nós mesmos, aqueles nos autorizamos como senhores deste planeta, somos em nossa maior parte compostos de água. Todos os estudiosos da Natureza afirmam que a água está se tornando um item cada vez mais raro e, por consequência, mais caro. Não se duvida de uma eventual guerra no futuro pelo controle desse elemento…

Cheguei a viver a época em que São Paulo ainda era a Terra da Garoa. Os mais novos sequer imaginam o que fosse uma garoa e talvez cheguem a confundi-la com uma chuva leve. A garoa era como se fosse um lençol úmido que nos abraçava, a ponto de umedecer as nossas roupas sem percebermos. Era como se fosse o ar feito água, que respirávamos como alimento de nossa identidade. Atualmente, vivemos apenas duas estações no ano – a do calor abrasador de Sol em asfalto, cimento e vidro ou a do frio de metal cortante em nossa carne mole. Perdemos as árvores, perdemos os rios, perdemos a nossa conexão com a divindade da Natureza, nos perdemos… Talvez, com a seca chegando à cidade mais desenvolvida economicamente deste país, o que já era urgente, se torne irreversível – voltarmos um tanto para trás, no bom caminho.

*Texto revisitado, de 2014.