A Corrente

Abílio, rico empresário do setor imobiliário, viu declinar alguns porcentos o seu lucro por conta da Pandemia de Covid-19 e ficou um tanto contrariado por seu patrimônio crescer menos do que havia imaginado. Tinha por objetivo conseguir o seu terceiro bilhão antes dos 50 anos e percebeu que não conseguiria. Quem o conhecesse à distância até diria se tratar de uma pessoa “gente como a gente”, como diziam. Mas, de perto era temido por sua postura rígida e seca. Intimamente, ele se considerava justo. Um homem que dava valor ao trabalho.

Gostava de ir ao Litoral Norte, onde tinha duas belas casas em encostas opostas em uma bela enseada. Uma à Oeste, outra à Leste. Em dias limpos, gostava de ficar na primeira para ver o Sol nascer. Na segunda, para apreciar o astro tocar o mar no crepúsculo. Enfim, a Natureza o deixava extasiado, principalmente porque podia pagar para melhor apreciá-la. Sempre que podia, se utilizava de um dos seus iates para acessar baías afastadas e calmas, onde ficava à vontade para trazer empresários para fechar negócios e brincar com algumas das moças de Madame Vivi, a quem tratava com deferência por tê-lo ajudado a fechar grandes empreitadas. Certa ocasião, Abílio ganhou a amizade eterna de um empresário da área de produtos de alumínio, que se apaixonou por uma das meninas num desses encontros de negócios recreativos. Hoje, exibida como troféu, frequenta os melhores ambientes.

Diferente da sua esposa, mulher plana, sem arroubos, filha de uma das mais tradicionais famílias de São Paulo, que gostava de jardinagem e era admirada por sua singeleza. Ele até gostava, porém isso não a fazia distinguida para além do reconhecimento de boa dona de casa e boa mãe para seu casal de filhos. Os dois estavam a salvo na Oceania, estudando. Pensava neles, quando Abílio encontrou na imensa garagem da Casa Leste, as bicicletas que usavam nas temporadas de férias de verão. Decidiu pegar uma delas e andar na ciclovia à beira-mar construída, aliás, sob o seu patrocínio E saiu sem a presença escancarada dos seguranças. Há muitos anos sem pedalar, sentiu certa dificuldade, apesar de se cuidar fisicamente, principalmente por causa da coordenação motora. No mais, estava sendo uma experiência agradável até que a corrente da bicicleta se rompeu. Sabia de uma bicicletaria próxima e após a avaliação, o conserto foi orçado em 7 Reais. Achou caro. Sabia que a pecinha de conexão da corrente não passaria de 0,50 centavos. Pediu para que o rapaz resolvesse um probleminha na marcha para compensar. Como estava sem dinheiro e cartão, deixou a bicicleta e foi buscá-los em casa, que ficava a 1Km de distância. Aproveitaria para realizar uma caminhada.

A sensação de se sentir um homem comum, sabendo que não era, estava sendo uma brincadeira bem gostosa, percebeu. Deveria fazer isso mais vezes. Ao chegar na Casa Leste, lembrou que a sua carteira estava na do Oeste. De qualquer maneira, nela não carregava trocado. Ao ver Seu José, o jardineiro, responsável por boa parte dos elogios que as casas recebiam, perguntou se ele não teria 10 Reais trocados. Seu José tinha uma única nota, mas a estava reservando para comprar feijão quando voltasse para a casa. Garantiria o jantar e o almoço e o jantar do dia seguinte da família. Pensou em negar, mas o Seu Abílio estava tão natural e até sorridente, que não teve como recusar. Certamente, ele a devolveria mais tarde e até (quem sabe?) lhe desse algo mais.

Abílio agradeceu e não disse mais nada. Foi até a bicicletaria, pagou o conserto, exigiu o troco e resolveu voltar para a Casa Oeste, 3Km de distância da do Leste. Depois de chegar, tomou um banho quente. Relaxado, tirou um cochilo. Mais tarde, saiu com a mulher para comer em um restaurante especializado em frutos do mar, especialmente camarão e lagosta. No dia seguinte, voltou para São Paulo para visitar os seus novos empreendimentos. Seu José ficou sem comer feijão por aquele e pelos próximos dias. Estava distante do dia de pagamento e se virou trabalhando autonomamente em outros jardins nos horários livres. Quando Abílio soube dos bicos, através de um conhecido que usou os seus préstimos, o demitiu sem direitos. Sabendo disso e conhecendo que quem lhe merecesse a reprovação sofreria a sua ira, ninguém mais na região voltou a empregar o jardineiro.

Brenda*

Brenda, a minha homenageada…

Esta é a Brenda…
Há quanto tempo ela está conosco,
nos acompanhando?
Há 13, 14, 15 anos?
Hoje, está na casa vizinha,
com a minha irmã.
Vou visitá-la.
Ao me aproximar,
a amiga abana o rabo
e tenta erguer a cabeça.
Percebo a sua dificuldade
e me agacho
para acariciar o seu dorso magro
de pelos duros e embranquecidos.
Passo a mão delicadamente,
sabendo que a sua estrutura
enfraquecida
sente os toques de meus dedos
com o peso dos anos,
apesar do amor.
Antes de sair,
ainda a ouço emitir um latido fraco,
de despedida…
Ela se foi pouco tempo depois
desse nosso último encontro…

*Texto de 2016

Duas Faces*

Trabalho em eventos. Sou locador e operador de equipamentos de som e luz para bandas e, eventualmente, sou tocador de música mecânica. Não confundir com DJ, que considero uma atividade que envolve o estudo de processos interativos entre as músicas, a transição bem feita entre os andamentos e os temas, além da produção de “tracks”, quando o profissional conhece melhor o trabalho pelo lado da sua construção. Semelhantemente àquele que trabalha na composição de quadros sonoros, trabalho sobre a canção invisível que ouvimos quando uma paisagem se apresenta diante de nossos olhos. Eu me expresso no coletivo, mas percebo que não sou acompanhado por tantos assim. Poucos são os que presenciam harmonia no caos ou fortes rumores de vida na calma visão de um panorama natural. Trabalhei neste final de semana em dois lugares diferentes por dois dias seguidos. O primeiro local, foi em uma sala no 16º andar de um prédio na região da Avenida Paulista, símbolo da expressão do que é esta cidade. Há menos fotos dessa primeira sessão em relação à segunda, porque creio que se tornaria uma “batida” repetitiva e sem nuances, já que estava cercado por todos os lados pelo mesmo diapasão. O segundo, foi na região da Represa Guarapiranga, na extrema Zona Sul, que não parece, mais ainda é São Paulo — seu perfil campestre. Uma de suas faces, de muitas. Pelo caminho e já no lugar, qualquer detalhe me chamava mais atenção do que o apelo urbano me causava. Em cima desses dois temas, espero que apreciem a música visual que estou a tocar.

Região da Avenida Paulista

Pela janela, cercado de cimento e vidro. Ouço conversas de janelas para janelas.

Abóboda no teto do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista
Região da Avenida Paulista

Vista da torre de uma igreja, em meio aos prédios. E, ao longe, à direita, o antigo Banespão, no Centro Velho ou Centrão.

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Ainda manhã, na transição entre o escuro da noite e a claridade do dia que se anunciava, estava a caminho do lugar onde trabalharia mais tarde.

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Estrada, árvores e cerquinha branca…

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Já clareando o dia, a neblina deu a nota neste tema.

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

A luz do dia a “nascer” e o sol a parecer brincar de esconde-esconde com o observador…

Região do Parque Ecológico da Represa da Guarapiranga

Finalmente, o astro-rei se elevou esplendoroso dentre o arvoredo. No entanto, isso é tudo ilusão. Na verdade, o Sol é apenas uma pequena estrela na Via Láctea e é a Terra que se desloca pelo espaço, enquanto gira sobre si mesma. Porém, a canção que ouvimos é bela e queremos ser envolvidos por seu andamento.

*Texto de 2015

Dez Vezes Escritor

Imagem parcial da biblioteca com títulos da Scenarium Plural — Livros Artesanais

Tudo começou com latas de manteiga que meu pai usava para guardar pregos, parafusos e itens similares. Comecei a desenhar as letras, uma por uma, em meu caderno de brochura da pré-escola. Ao terminar a página, passava para a outra sem o “vale” existente entre as duas me impedisse.

Nos primeiros anos escolares, lia os livros de todas as matérias até a metade do ano, por pura curiosidade e sede de conhecimento, não importando o tema. Excetuando as matérias exatas. No primeiro ano primário, como mudei de escola, li os dois de alfabetização, diferentes entre si.

Eu buscava o “Excelente!” das professoras como se fosse um prêmio para o meu artesanato na escrita. Ganhei alguns e percebi que gostava de agradar às minhas “primeiras leitoras”.

Quando ajudava o meu pai como “catador de papel”, entre os 12 e os 14 anos, recolhi vários livros jogados fora como lixo, o que me proporcionou formar a minha biblioteca particular. Alguns deles, guardo até hoje.

Quando garoto, apresentava algumas habilidades artísticas inatas: lia e escrevia com facilidade, desenhava razoavelmente bem e sabia modelar com massa e cheguei a usar barro para fazer algo parecido com “esculturas”, além de arte em relevo em madeira. Para completar arranhava bem o violão. Mas escrever começou a ganhar cada vez maior espaço. O meu mundo interior ganhava clareza no uso das palavras, as quais comecei a cultivar com carinho crescente. Namorava termos e sentenças. Buscava os efeitos inusitados e passei a amar livros e escritores que me estimulavam mais fortemente.

Porque escrevia bem, segundo avaliaram, fui escalado como candidato a um concurso de leitura. Eu e outro colega “duelamos” para representar a nossa escola. Fiquei tão incomodado com aquilo que não me esforcei para vencer. Depois da decisão, feita pelo professor, me perguntaram a razão de estar sorrindo. Não sabia responder. Ao ler em público, percebi que além da timidez, tinha uma maneira não linear de ler. Era como se eu tentasse “escrever” o texto ao mesmo tempo que lia. Achava estranho quando a ideia era desenvolvida diferentemente do que eu estava imaginando. Tive que me disciplinar para que pudesse ler “realmente” o que propunham os escritores, ainda que saiba que ler também é reescrever uma história.

Como adorava cinema, pensei em me tornar um cineasta. Mas sabia que a “sétima arte” no Brasil era precária. Depois, me imaginei um publicitário. Isso, antes de não querer mais “participar do sistema” de forma alguma, a partir dos 17 anos. O máximo que cheguei perto “fazer um filme” foi participar como figurante de “Feliz Ano Velho”, em 1987, quando fui aluno de História, na USP e lá recrutaram quem quisesse fazer parte da filmagem. Mas desde o início meu foco recaía na criação e desenvolvimento literário por trás da expressão cinematográfica.

Em certa época, encetei a possibilidade de me tornar Frei Franciscano. Não cheguei a frei, mas franciscano sou até hoje. Enquanto lia obras sacras relacionadas aos temas para a preparação seminarística, continuava a ler os livros seculares ou mundanos. Os de Machado de Assis, por exemplo, eram sagrados para mim.

Ao me casar, diminuí bastante a atividade da escrita, até praticamente deixar de escrever. Depois de vinte anos “parado”, voltei a exercitar a palavra escrita com o surgimento das redes sociais. Alguns anos depois, Edward Hopper e Maria Cininha me juntou a Lunna Guedes. Sob sua orientação, percebi que tinha que reaprender a escrever.

Aos 55 anos, lancei o meu primeiro Livro — “REALidade”. Mais dois — “Rua 2” e “Confissões” — se sucederam, pela Scenarium Plural – Livros Artesanais. É bem possível que um quarto venha à luz ainda este ano — 2121 — também conhecido como segunda edição de 2020.

Isabelle Brum – Darlene Regina – Lunna Guedes

A Chegada Da Páscoa Ou Análise Do “Big Crunch” Pelo Efeito Comercial-Temporal Observável*

O Big Crunch não haverá! “O Big Crunch é uma teoria segundo a qual o Universo começará no futuro a contrair-se, devido à atração gravitacional, até entrar em colapso sobre si mesmo. Até 1998, pensava-se que a velocidade com a qual as galáxias se afastam deveria diminuir com o tempo, devido à atração gravitacional entre elas. A este princípio, alguns astrofísicos chamam de ‘memória elástica’ universal.” (Wikipédia).

A partir de 1998, através da observação de supernovas muito distantes, os cosmólogos descobriram que a velocidade da expansão universal está cada vez mais rápida e aparentemente não há condições de ser revertida. Estudos recentes tentam buscar explicação na implicação da matéria escura e energia escura.

De qualquer maneira, um possível efeito que podemos observar em nosso cotidiano é a sensação da passagem cada vez mais acelerada do Tempo, associado à estrutura espacial. Essa sensação é corroborada pelo apelo comercial que, com maior frequência, oferta-nos cada vez mais cedo campanhas publicitárias exaltando a próxima temporada de comemorações. Normalmente de origens religiosas, com o avanço do Capitalismo, ganharam contornos mercantis com o passar do Tempo. Aliás, a associação entre Fé e Comércio é tão antiga que, há mais de dois mil anos, um certo Profeta se revoltou contra isso e expulsou os vendilhões do Templo.

Nos supermercados — templos designados à outros deuses — já podemos observar a chegada dos ovos de Páscoa, enquanto sobras de panetones do Natal dividem espaço com os enfeites de Carnaval. Mais um pouco, os doces e temperos das Festas Juninas conviverão com os chocolates de Abril, enquanto as chamadas para o Dia das Crianças e do Halloween, estarão coladas a do Natal, com o indefectível Papai Noel à frente, a disputar espaço entre as gôndolas, em uma briga colossal, digna do Final dos Tempos.

Por essa e por outras, é que uma dona-de-casa ou qualquer outro cidadão comum, têm muito a ensinar a qualquer teórico físico quântico ou astrônomo que vive a observar galáxias distantes, sobre a aceleração da expansão do Tempo-Espaço…

*Texto de 2016

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