Pégasos* Ao Entardecer

Cavalos alados no céu da Cachoeirinha…?

Em 2015, nesta mesma época, publiquei no Facebook: “O tema tem se tornado repetitivo — o entardecer, o sol se pondo (somos nós que nos vamos à bordo da nave mãe), as estações que se sucedem, as nuvens que brincam de formarem seres mutantes e de se desfazerem em promessas de chuva que não virão. Enquanto isso, poucos param para observá-las, porque não se importam com a mesmice da apresentação, porque não percebem a bela notícia que a rotina do cotidiano traz — o amanhã tem futuro!”.

Nos comentários, há observações, assim como a da Tânia: “Vi vários cavalos alados…”; Alessandra da Mata pôs como resposta uma música de Jorge Mautner, com Moraes MoreiraA Lenda do Pégaso. Ao que respondi: “Maravilhosa lembrança! Dessa canção, que ouvi pouco, eu só me recordava do refrão. Incrível letra do Jorge Mautner que, ao lado de Tom Zé, Jards Macalé, Walter Franco e outros ‘esquisitos’ da MPB, aguçaram a minha imaginação nos anos 70. Você, tanto quanto eu, pega o azul nos céus do Brasil!”.

Enquanto Suzy Pavlov comentou sobre o céu craquelado, Marineide de Oliveira postou versos de uma canção da Banda Pau E Corda, do álbum “Vivência“: “Quem nasceu lá e viveu / Crescendo percebeu / Viu descer o amor / No céu de cada tarde”. E confirmou: “Também vi cavalos alados!”. Stela Maris, concordou: “É verdade, somos nós que vamos a bordo da nave mãe… E sim, o amanhã tem futuro!” e ainda Cleide Sporto afirmou sobre o crepúsculo: “Nunca será repetitivo o suficiente”.

Foram retornos estimulantes a uma simples postagem de um entardecer. De alguma maneira, as pessoas consideravam importante trocar impressões, conversar sobre a tarde que se esvaía em cores, fazer as correlações entre as linguagens. Parece ter sido coisa de outra vida, quando tínhamos “tempo mental” — algo que caracterizo como um espaço não apenas temporal ou mental, mas igualmente de energia fraternal. Não que as pessoas não gostem tanto mais umas das outras.

Creio que o afastamento físico, que não era impeditivo para encontros virtuais, também tenha se tornado concreto pela perda de estímulo de algum entendimento ou desilusão. Talvez seja o formato (Facebook) que não tenha mais o apelo que tinha antes, diante de tantas outras expressões virtuais. Talvez sejamos nós, menos “inocentes”, a nos punirmos com a cegueira dimensional. Pode ser que o desinteresse pela simplicidade vital tenha crescido. Ou os temas tenham ficado repetitivos. Ou o encanto tenha se perdido… Ou a ideia de futuro tenha esquecido seu sentido…

Sabe o que é mais estranho? Ou esqueci que tenha os visto ou definitivamente nunca consegui enxergar, na imagem acima, os tais cavalos alados…

*Pégaso (em grego: Πήγασος; romaniz.: Pégasos), na mitologia grega é um cavalo alado símbolo da imortalidade. Sua figura tem origem no mito de Perseu e Medusa, nascido do sangue da Medusa quando foi decapitada por Perseu. (Wikipédia)

Eva

Eva Wilma (data indefinida)

Na época em que Eva Wilma estourou como protagonista de Ruth e Raquel, na versão de 1973 de Mulheres de Areia, eu não costumava assistir a TV Tupy, onde a novela foi produzida. O garoto de periferia metido a besta ficava entre a TV Paulista, depois Globo; TV2 Cultura, de belos programas musicais e do maravilhoso Teatro 2; e Bandeirantes, onde gostava de assistir a filmes europeus. Tudo em preto e branco. O primeiro televisor em cores viríamos a ter apenas em 1982, comprado por minha mãe para a Copa do Mundo da Espanha.

Quanto a Eva, eu a conheci prioritariamente através da Revista Intervalo, onde resgatei sua biografia. Eu havia herdado uma coleção inteira dessa revista da minha tia Raquel. Como lia até bula de remédio, não deixou de acontecer com a Intervalo que usava como se fosse compêndio da história da música, cinema e televisão do Brasil e do mundo, desde o início dos anos 60 até o início dos 70. Eu me apaixonava em série por absolutamente todas as mulheres artistas e, mesmo sendo tão novo, sabia que isso não era normal. Principalmente porque eram todas mulheres mais velhas, muitas da idade da minha mãe, o que não impedia que eu vivesse a fantasiar romances impossíveis.

Eva era uma dessas mulheres. Ainda que não tivesse o apelo sexual de Marylin ou de Bardot, eu a considerava absurdamente atraente. Desde sucesso inicial de “Alô, Doçura!”, série baseada em “I Love, Lucy!” até o show Casos E Canções (em que canta), produzido um pouco antes da Pandemia de Covid-19, passando pelo início como bailarina, eu a acompanhei mesmo que à distância. Aliás, no último espetáculo, aderiu ao uso da nova tecnologia online para levar cultura ao público ausente presencialmente por conta das restrições sanitárias. Eva Wilma foi uma personagem importante no desenvolvimento da minha-nossa trajetória cultural, participando em todas as frentes, do âmbito público-político ao profissional — TV, Cinema, Teatro e Internet — como protagonista.

Eu tive a sorte de vê-la atuar em um ambiente totalmente inesperado. Eu fazia o curso de História na USP e tive oportunidade de participar como figurante de Feliz Ano Velho, filme produzido em 1987, baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva e direção de Roberto Gervitz. Eva interpreta Lúcia, esposa do deputado desaparecido, pai do protagonista. A locação era uma das salas de aula da USP, transformada em auditório. Fui escolhido para ficar nas primeiras fileiras da plateia que a assiste falar emocionada sobre as circunstâncias da retirada truculenta do marido de casa pelos agentes da repressão, para nunca mais voltar. No filme editado, a câmera passa por um microssegundo por meu rosto comovido não apenas pela bela interpretação da atriz, mas também porque o depoimento me fez lembrar da minha própria experiência pessoal como filho de um perseguido político pela Ditadura Militar.

O fantasioso moço de 25, que amava Eva, então com 54 anos, quase cometeu a loucura para um sujeito tímido de me aproximar dela para demonstrar a minha admiração. Após o término da gravação, ainda a vi permanecer alguns minutos conversando com os atores, antes de sair do alcance da minha visão. Mas nunca saiu da minha imaginação…

Eva Wilma (Lúcia), em cena com Marcos Breda (Mário), em cena de Feliz Ano Velho (1987)

Põe Prá Fora!

Chegou um tanto mais cedo do que o costumeiro ao apartamento. Sorte ocasional de trânsito ameno em dia insuspeito. Abriu a porta, dando duas voltas na chave. A precavida Alberta ainda não devia ter chegado da faculdade. Caminhou pelo corredor já sem os sapatos ordens da amada deixados no móvel da entrada. Ela pedia que não levasse sujeira da rua para dentro de casa. Ouviu ruídos vindos da cozinha e antes que perguntasse alguma coisa, ouviu claramente a voz da companheira: “põe prá fora!”. Dois metros após, através dos elementos vazados que separavam a copa da sala, Herval, pasmo e paralisado, viu sua mulher a iluminar com a boca o pênis de um rapaz que não conhecia.

Sem conseguir sair de onde estava, assistiu à felação que Alberta realizava com dedicação-gemidos, contra pontuados por ohs-e-uaus longos e expressivos do sujeito. Cinco minutos depois, conseguiu mover um dos pés apesar dos duzentos quilos que pesava. E outro, até se arrastar de costas pelo mesmo caminho que percorreu até a boca de cena. Agarrou seus sapatos, fechou a porta com cuidado. Desceu pela escada os seis andares até ser agredido pelo sol outonal que se embrenhava entre as árvores da praça em frente ao edifício. Não chegou sequer a ouvir a interpelação do Seu Silas, o porteiro, antes que quase atropelasse os carros que riscavam o asfalto.

Herval desabou sobre um dos bancos de cimento, o corpo-carne assentado em massa disforme, a crer por um momento que sua visão de míope se misturava ao lusco-fusco que a tudo esmaecia. Quedou ausente de si por uns três minutos e, como se retornasse à consciência após um desmaio, reviveu passo a passo todos os seus movimentos até o ato presenciado no apartamento. Como a justificar o que viu (ou imaginou ver?) intimamente tentou desmerecer o que Alberta fazia mero ato de fricção de mucosa com mucosa, língua com glande, banhada por muita saliva sem nenhuma implicação a não ser o prazer físico, a mesma sensação que se tem ao comer o arroz com feijão da mãe.

Pensou, a comida não carrega somente os bons efeitos sensoriais, mas acresce-se a satisfação psicológica, carreada por lembranças e bons eflúvios já vividos, como revelava o olhar que ela dirigia ao parceiro devocional de joelhos, mãos unidas em oração. Seria um caso antigo? Um amigo do curso de Letras, em seu último semestre? Antes de conjecturar outras questões, Herval viu o tipo saindo do prédio e entrando em um carro. Olhou para o relógio, que registrava o mesmo horário que costumava chegar do escritório. Envergonhado, se encaminhou para a entrada, sob o olhar solidário de Seu Silas, sabedor das idas e vindas das vidas que passavam por sua portaria.

Desta vez, fez barulho ao entrar, caminhou em meias pelo longuíssimo corredor e encontrou Alberta na pia, de costas para os elementos vazados. Seus belos pés, um deles apoiado sobre os dedos de bem-feitas unhas vermelhas acariciava o piso branco a compor um quadro de dilacerante poesia. Voltou-se com seu sorriso-de-luz a saudá-lo como sempre: “Oi, meu amor!” Acreditou que o dito fosse verdadeiro… e era. Não a beijou. Sentou-se na cadeira mais afastada da etérea presença. Alberta ficou de frente para ele e percebendo sua fisionomia pesada, perguntou: “Algum problema?” Herval não conseguiu responder “Me diga! O que aconteceu? Põe prá fora!”…

Herval fitou Alberta, vidrado. Duas grossas lágrimas afloraram por baixo das lentes. Regredindo em rápida viagem ao momento do flagrante, se recordou que o tal sujeito estava calçado…

Clubes De Leitura

Em outra vida, antes do advento da Pandemia de Covid-19, Lunna Guedes, editora da Scenarium, convidou algumas pessoas para montar um grupo que se dispusesse reunir uma vez por mês para debater sobre um livro proposto por ela um clube de leitura. Uma das obras indicada por ela foi “O Clube De Leitura De Jane Austen”, de Karen Joy Fowler, sucesso de vendagem em todo mundo e que acabou por gerar um filme do mesmo nome, também muito bem aceito.

A trama, que se passa na Califórnia, começa quando Jocelyn, uma criadora de cães da raça Leão da Rodésia, decide montar um clube de leitura para discutir as obras de Jane Austen. Ela escolhe a dedo os integrantes: Sylvia, sua melhor amiga desde quando as duas tinham 11 anos; Allegra, filha de Sylvia; Prudie, professora de francês na escola local; a falante Bernadette, conhecida por ter se casado várias vezes; e Grigg, o único homem autorizado a participar.

Ao longo de seis meses, o grupo se reúne para conversar sobre um livro de Jane Austen de cada vez. Eles começam na casa de Jocelyn, com “Emma”; passam para “Razão e sensibilidade”, escolha de Allegra; emendam em “Mansfield Park”, por sugestão de Prudie; se encontram na casa de Grigg para comentar “A abadia de Northanger”; debatem “Orgulho e preconceito” enquanto escutam Bernadette; e encerram com “Persuasão”, voltando à residência de Sylvia.

Enquanto mergulha no universo de Jane Austen, o sexteto vive suas próprias histórias. Os leitores acompanham dramas como o divórcio de Sylvia, a morte da mãe de Prudie e o rompimento do namoro de Allegra. Mas nem tudo é tristeza: as irmãs mais velhas de Grigg dão uma ajuda para que ele se aproxime de sua paixão secreta; Bernadette encontra um novo marido e Jocelyn tem a chance de redescobrir o amor.

A condução da trama se faz na terceira pessoa, a qual não consegui identificar, como se qualquer um dos participantes do clube pudesse ser o narrador. Ou como se cada um deles assumisse a narração a cada etapa das leituras das obras de Jane Austen, que permeia os acontecimentos em paralelismos com a vida das personagens. A escrita dos livros da mulher que viveu na passagem do Século XVIII para o XIX, tem sido cada vez mais incensada como atemporal, apesar das tramas se passarem duzentos anos antes. A fina ironia com a qual construiu suas narrativas a fez crescer aos olhos de críticos e estudiosos ao longo do tempo, além de atrair leitores aficionados.

Não apenas por lembrá-la, mas também por me fazer lembrar de uma época em que podíamos circular, aprender, congregar, conversar, abraçar pessoas e conhecimento, escolhi “O Clube De Leitura De Jane Austen”. As épocas mudam, porém certas circunstâncias são similares, não importa se estamos nos séculos XVIII ou XXI. Atualmente, neste quadrante, estamos segregados a pequenos grupos, normalmente familiares. Assim como Jane Austen conviveu em um círculo restrito de pessoas, prioritariamente familiares. Poucos conseguiriam criar, como a escritora inglesa o fez, algo que se firmasse tão ostensivamente bom com tão poucos detalhes à disposição. Ela passeia pela alma humana, ao mesmo tempo que brinca com as estruturas comportamentais de sua época, ultrapassando gerações.

Estou com saudade de um clube de leitura que tenha pessoas ao meu redor e não apenas pela tela de um computador…

Texto participante das postagens de Interative-se, com a participação de

Alê Helga / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Gouveia / Isabelle Brum

Escritores Homens

Homens que escrevem são diferentes de homens que não escrevem? Por terem a sensibilidade de manipular palavras na construção de mundos particulares que tentam explicar o mundo comum ou em comum com os outros seres viventes, serão mais abertos aos sentimentos mais nobres a ponto de serem especiais? Ou quando adentram nas zonas sombrias da mente humana, também são tão sombrios quanto criminosos comuns?

Um desses homens, Ernest Miller Hemingway, nasceu em Oak Park (Illinois), a 21 de Julho de 1899, foi um escritor  que trabalhou como correspondente de guerra em Madri durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Esta experiência inspirou uma de suas maiores obras, “Por Quem Os Sinos Dobram“. Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi viver em Cuba. Em 1953, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção por “O Velho E O Mar” e, em 1954, ganhou o prêmio Nobel de Literatura. Em 02 de Julho de 1961, se suicidou com uma espingarda, em Ketchum (Idaho), um pouco antes de completar 62 anos de idade e três meses antes de eu nascer.

Escritor genial e genioso, o filme baseado em seu romance homônimo — Por Quem Os Sinos Dobram — passado na televisão quando eu era adolescente, me apresentou Ingrid Bergman, por quem me apaixonei. Tanto que uma das minhas filhas ganhou o nome dela em homenagem. No filme, seus olhos faiscantes e cabelos curtos me deixaram atordoado. Fazia, aos 32 anos, o papel da jovem militante espanhola que luta ao lado da República, Maria, pela qual Robert Jordan, um americano que vai até a Espanha para lutar contra a ditadura, se apaixona. Sua missão é explodir uma ponte. Mas ao se apaixonar, começa a questionar sua perigosa tarefa e seu lugar em uma guerra estrangeira.

No romance, Hemingway usa como referência sua experiência pessoal como participante voluntário da Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos e faz uma análise ácida, com críticas à atuação extremamente violenta das tropas de ambos os lados: os Nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e nazista alemão e os Republicanos, pelas brigadas internacionais e União Soviética Critica também a burocratização e o panorama de privilégios rapidamente instaurado no lado da República.

Mas, acima de tudo, o livro trata da condição humana. O título é referência a um poema do pastor e escritor John Donne, que se encontra na obra “Poems on Several Occasions” que em português intitulou-se “Meditações“. Invoca o absurdo da guerra, mormente a guerra civil, travada entre irmãos. “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”. Em várias passagens do texto, os personagens se desconhecem ao desempenhar papéis bizarros que se veem forçados a assumir durante a guerra e fraquejam, ao ver nos inimigos seres humanos que poderiam estar de qualquer um dos lados da guerra.

Ao longo da vida do escritor, o tema do suicídio aparece com frequência em escritos, cartas e conversas. Seu pai se suicidou em 1929 por problemas de saúde e financeiros. Sua mãe, Grace, dona de casa e professora de canto, o atormentava com a sua personalidade dominadora. Ela enviou-lhe, pelo correio, a pistola com a qual o seu pai havia se matado. O escritor, atônito, não sabia se ela queria que ele repetisse o ato do pai ou que guardasse a arma como lembrança. Aos 61 anos, enfrentando problemas de hipertensão, diabetes, depressão e perda de memória, Hemingway decidiu-se pela primeira alternativa.

Todas as personagens deste escritor se defrontaram com o problema da “evidência trágica” do fim. Eu, pessoalmente, sou adepto pela opção do suicídio como direito, se a pessoa tiver plena consciência de seus atos. Como no caso da eutanásia, por doença sem remissão. Porém, creio que se deva buscar todas as alternativas possíveis até que alguém “são” escolha a morte como solução. Porém, não sou juiz a ponto de culpar quem o faça por considerá-lo covarde. Para muitos, na verdade suicídio é um ato de coragem. No caso de Hemingway estimo que tenha sido por pura vaidade… apenas não sei avaliar se é um motivo tão bom quanto qualquer outro.

Maratona da Interative-se de Maio, com

Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Alê Helga / Isabelle Brum