Põe Prá Fora!

Chegou um tanto mais cedo do que o costumeiro ao apartamento. Sorte ocasional de trânsito ameno em dia insuspeito. Abriu a porta, dando duas voltas na chave. A precavida Alberta ainda não devia ter chegado da faculdade. Caminhou pelo corredor já sem os sapatos ordens da amada deixados no móvel da entrada. Ela pedia que não levasse sujeira da rua para dentro de casa. Ouviu ruídos vindos da cozinha e antes que perguntasse alguma coisa, ouviu claramente a voz da companheira: “põe prá fora!”. Dois metros após, através dos elementos vazados que separavam a copa da sala, Herval, pasmo e paralisado, viu sua mulher a iluminar com a boca o pênis de um rapaz que não conhecia.

Sem conseguir sair de onde estava, assistiu à felação que Alberta realizava com dedicação-gemidos, contra pontuados por ohs-e-uaus longos e expressivos do sujeito. Cinco minutos depois, conseguiu mover um dos pés apesar dos duzentos quilos que pesava. E outro, até se arrastar de costas pelo mesmo caminho que percorreu até a boca de cena. Agarrou seus sapatos, fechou a porta com cuidado. Desceu pela escada os seis andares até ser agredido pelo sol outonal que se embrenhava entre as árvores da praça em frente ao edifício. Não chegou sequer a ouvir a interpelação do Seu Silas, o porteiro, antes que quase atropelasse os carros que riscavam o asfalto.

Herval desabou sobre um dos bancos de cimento, o corpo-carne assentado em massa disforme, a crer por um momento que sua visão de míope se misturava ao lusco-fusco que a tudo esmaecia. Quedou ausente de si por uns três minutos e, como se retornasse à consciência após um desmaio, reviveu passo a passo todos os seus movimentos até o ato presenciado no apartamento. Como a justificar o que viu (ou imaginou ver?) intimamente tentou desmerecer o que Alberta fazia mero ato de fricção de mucosa com mucosa, língua com glande, banhada por muita saliva sem nenhuma implicação a não ser o prazer físico, a mesma sensação que se tem ao comer o arroz com feijão da mãe.

Pensou, a comida não carrega somente os bons efeitos sensoriais, mas acresce-se a satisfação psicológica, carreada por lembranças e bons eflúvios já vividos, como revelava o olhar que ela dirigia ao parceiro devocional de joelhos, mãos unidas em oração. Seria um caso antigo? Um amigo do curso de Letras, em seu último semestre? Antes de conjecturar outras questões, Herval viu o tipo saindo do prédio e entrando em um carro. Olhou para o relógio, que registrava o mesmo horário que costumava chegar do escritório. Envergonhado, se encaminhou para a entrada, sob o olhar solidário de Seu Silas, sabedor das idas e vindas das vidas que passavam por sua portaria.

Desta vez, fez barulho ao entrar, caminhou em meias pelo longuíssimo corredor e encontrou Alberta na pia, de costas para os elementos vazados. Seus belos pés, um deles apoiado sobre os dedos de bem-feitas unhas vermelhas acariciava o piso branco a compor um quadro de dilacerante poesia. Voltou-se com seu sorriso-de-luz a saudá-lo como sempre: “Oi, meu amor!” Acreditou que o dito fosse verdadeiro… e era. Não a beijou. Sentou-se na cadeira mais afastada da etérea presença. Alberta ficou de frente para ele e percebendo sua fisionomia pesada, perguntou: “Algum problema?” Herval não conseguiu responder “Me diga! O que aconteceu? Põe prá fora!”…

Herval fitou Alberta, vidrado. Duas grossas lágrimas afloraram por baixo das lentes. Regredindo em rápida viagem ao momento do flagrante, se recordou que o tal sujeito estava calçado…

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