Quimera

Figura in: https://www.oversodoinverso.com.br/misteriosa-lenda-da-quimera/

Ouviste certa vez o chamado atávico e o teu corpo
Transformaste em instrumento de vida dos pés ao metacarpo
Resultado de encontros de vultos de épocas anteriores
Estavas preparada para aceitares a vocação de sonhadores
Os teus pés, adaptados para saltar, além de caminhar
Deslizavam, além de se mover, comoviam, quando te viam transpirar
Transpôs o óbvio com os teus passos construídos de dor
Quando tinha que comer, viveu apenas de ar e bebeu apenas suor
Segurou o ar quando tinha que se expressar, calou a palavra
Para emudecer de emoção uma multidão com a arte de tua lavra
Leoa com andar de serpente, és um monstro, uma quimera
Quem pensa que a conquista, em verdade não considera
Que é consumido pelo fogo da qual é filha, mãe e senhora
Concedes a atenção obsequiosa de quem é servil portadora
Da graça suprema de seduzir e encantar, de prometer o Paraíso
Ao alcance do olhar, de sereia que faz o navegador perder o juízo
Mas vives na terra, apesar de viajar pelo amplo, para além, para o espaço
E fulguras, diminuta figura com as asas de Ísis, a voar para além do chão escasso.

Desapego

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Matéria X Energia

Passei o dia na larga varanda revirando objetos, revisitando tempos. Estava a tentar organizar o espaço, arrumar prateleiras, dispensar quinquilharias, emudecer lembranças. Uma caneca suja, de asa amputada, na eminência de ser descartada, anunciou-se a mim: “PARA UMA SUPER NETA… Lembranças de Águas de São Pedro – SP” – presente de minha mãe à Romy. Quase imediatamente, Dona Madalena se fez presente. Ela estava ali…

Eu me senti tão bem com sua visita, principalmente porque foi natural e sem preparação. Minha mãe era assim, não impunha a sua presença, apenas tornava-se imprescindível. Recordei da ocasião que, com sua irmã mais velha, Raquel, minha tia mais odiada que amada em nossa família, foi visitar a cidade de fontes hidrominerais e voltou com aquele souvenir.

Imagino que ao avistar a caneca, tenha se sentido impelida a acreditar que aquele simples objeto demonstraria todo o amor que sentia. Pois Mamãe era daquelas pessoas que ao tocar a matéria a transformava em energia. Percebi essa verdade consubstanciada na arquitetura atemporal da caneca, agora suja e desasada. Cheguei a tremer. Talvez, uma reação carnal à eletricidade mística que transmitia. Talvez, delírio de um filho que recebia o toque suave da saudade…

O Síndico

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Está tudo nos livros…

Virgílio esperou, até tarde da noite, a saída do amigo da “Sala de Padronização”. Após duas horas de sessão, Gervásio pareceu bastante abatido. “O que aconteceu lá dentro?”… O anteriormente alegre Gegê, baixou a cabeça. Preferiu não responder, envergonhado. Virgílio sentiu cheiro de fezes. A calça do amigo estava manchada.

Ele era mais um dos moradores com condutas “desviantes” do Condomínio Brasília que passava pelo processo de equalização comportamental, desde que o Comandante Jair assumira o cargo de síndico. Em uma eleição acirrada, a voz tonitruante do ex-soldado se fez ouvir como a opção mais apta para equilibrar as contas do erário condominial.

Jairzão, como antes era conhecido, era um sargento aposentado que vivia a repetir palavras de ordem contra o desequilíbrio social e o desrespeito aos bons costumes. Era visto como um tipo inofensivo, apesar das bravatas que cometia com frequência. Após assumir o poder, mostrou na prática tudo o que professava.

Cachorros e gatos foram banidos do Brasília (muita sujeira). Roupas extravagantes foram erradicadas da circulação entre muros. Beijos na boca resultavam em pesadas multas. Comportamentos tidos como indecentes, segundo regras aprovadas em ata, após reuniões com escasso comparecimento dos condôminos, resultavam em visitas à “Sala de Padronização”.

Para auxiliar o Comandante em sua empreitada, contava-se com parrudos jovens entusiasmados que viam, na disciplina militar, o melhor caminho para tornarem as vidas dos moradores mais felizes, pacíficas, seguras e retas mercê os melhores hábitos de salubridade social. Professavam que qualquer traço de criatividade conspurcaria a tradição edificante proposta pelo Comandante, o que poderia acarretar no surgimento de sistemas espúrios na construção da sociedade ideal que propunha.

A tropa de choque ganhou adesões cada vez maiores. Todas as manhãs, os moradores eram despertados, aos primeiros raios de sol, com a Canção de Brasília Melhor. Garotos e garotas – uniformizados-perfilados-peitos-estufados – entoavam, com força, cada estrofe como se fosse um hino devocional. No resto do dia, se revezavam na vigilância de interditar discrepâncias na obediência às regras promulgadas como lei.

Secretamente, ainda que visse algumas medidas como exageradas, mais da metade dos condôminos apoiava a legislação padronizadora. Quem estivesse em desacordo, que mudasse. Perceberam que o comportamento dos pequenos também se transformara. Confusos quanto à educação que davam aos filhos, a assustadora figura do Comandante era evocada para auxiliá-los. A qualquer malcriação, era citado o nome do Jairzão.

O episódio da moça do livro foi o começo do fim do sonho do Comandante em levar adiante sua revolução moralizadora. Mariana gostava de ler. Já fora advertida pelos pais que não o fizesse na praça central do condomínio. Eram liberais, mas depois de batalharem tantos anos para conseguirem quitar o apartamento, não viam possibilidade de mudarem tão cedo dali.

Querendo promover um ato de repulsa ao que estava acontecendo no Brasília, Mariana sentou-se em um dos bancos da praça, com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” nas mãos. Foi advertida por Angelina, sua antiga companheira de festas e idas ao cinema, que deveria parar de lê-lo, colocado que estava no índex de proibidos para a juventude brasiliana. Recém convertida ao credo padronizador, era uma entusiasta do novo regime. Acreditava que a nova diretriz a tenha salvo da vida sem propósito que levava.

Ao receber a recusa de Mariana, Angelina, de posse de um pequeno cassetete – distribuído aos “Jovens Padronizadores” – desferiu apenas um golpe na têmpora da leitora, que veio a óbito quase imediatamente. Como despertados de um sonho ruim, os condôminos se revoltaram e derrubaram o síndico-ditador. Com um pouco mais de percepção e conhecimento, saberiam que tudo já estava escrito nos livros.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Junho

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Amanhecer na estrada para junho…

Junho me engoliu. Descobri que passeava pelo mês, quando já havia deglutido o primeiro dia em sua metade.  No feriado, ocorrido no último dia do mês finado-passado, trabalhei vinte horas seguidas. Acordei na sexta-feira passada, pensando que fosse segunda. Mandei mensagem para a minha podóloga, informando que perdera a hora da consulta, às 13h. Apaguei, logo que percebi a discrepância. O motim dos caminhoneiros, ajudou a tornar o início de Junho prenúncio de algo novo –– só não sei dizer o que será…


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Domitila

Junho me deixa preguiçoso.  E invejoso, de tanta paz que alguns sentem ao vivenciá-lo. Apenas penso que será um mês atribulado, com Copa do Mundo e eventos relacionados à esse acontecimento. Nunca observei tanta pouca acolhida ao torneio de futebol quanto neste ano. Talvez reflexos de certo 7 X 1, na Copa passada. Prefiro acreditar que o brasileiro sabe que teremos grandes problemas a enfrentar no decorrer do ano. Que vencermos um evento esportivo não definirá nosso futuro tanto quanto as eleições que se aproximam.


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Mês branco…

Junho é um mês branco. Em sua maior parte, nasce e morre sem outra cor. O outono se esvai em sangue cada vez mais ralo, à espera do inverno que se aproxima. A cidade cinza se diferencia das cores manipuladas pela mão do homem, em paredes e janelas. Nesta paisagem de São Paulo antiga, do Vale do Anhangabaú, pintada em um prédio na Avenida Tiradentes, o branco do céu real se confronta com o azul do céu fictício.  A cidade se sobrepõe em camadas, em avessos e vice-versa.


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Paisagem suspensa…

Junho começou com visitas à Santa Efigênia, região onde busco suplementos e equipamentos de trabalho. Vez ou outra, adentro a espaços em que quinquilharias se acumulam sem propósito aparente, a não ser de servirem como cápsulas do tempo. Já consegui peças e dispositivos com bons preços nesses lugares. Ontem, cheguei a ver o mar, ainda que mal pintado. Surpresas deste mês frio.


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Nudez…

Junho desencarnado se reflete em visões nuas. Como a parede deste belíssimo prédio. Praticamente abandonado. Aparentemente, está para ser reformado. O mês de junho está para ser reformador. Janelas e portas escancaradas para nos conscientizarmos de nossas possibilidades como povo. Poderia começar com as festas juninas queimando as fogueiras do descaso à vida, da insolvência da lei, do descumprimento das normas básicas de convivência social. Que as quadrilhas dancem apenas os temas folclóricos.


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O multi-Homem que não sou…

Junho antecipou emoções que esperava viver apenas em seu final. Solicitações de todas as ordens fez com que eu tivesse que multiplicar minha atenção. Nem mesmo a minha personalidade dada a brincar com personagens para atendê-la em sua diversidade, está conseguindo lidar com todas as questões que este mês tem me pedido. Há datas que gostaria de ser três pessoas, pelo menos, para estar onde gostaria de estar. Dia 23 de Junho será um desses dias…

 

|Lunna Guedes| Aline Calai | Cilene Mansini | Maria Vitoria |
Mariana Gouveia | Mari de Castro Obdulio Nuñes Ortega |

Amar Em…

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Invólucro…
2040 – estamos na estação das chuvas ácidas…
O clima mimetiza as relações tácitas,
enquanto enormes exaustores de chumbo
executam a tarefa de limpar o ar imundo…As precipitações corroem os cimentos e as ferrações.
Tampouco parece poupar pessoas, corações…
Não batem por outros seres, apenas anseiam por novos jogos,
lançamentos que são comemorados com fogos…

Brinquedos simulam vidas as quais os participantes não vivem.
Eletrodos conectados ao cérebro estimulam emoções eclodirem…
Imaginam, sem se tocarem, que amam profundamente
seus próximos, ainda que distantes remotamente…

Estou perto dos oitenta. Reformei recentemente o meu envoltório,
com as modernas técnicas científicas do território.
Cortei metade da idade, para adequar meu corpo à mente.
Revolucionário, quero amar em plenitude, como se fazia antigamente

Me apaixonar sem higiene high-tech, me embebedar de sumos corporais…
Gozar através dos meus poros, esvair por meus terminais…
Suar, ejacular palavrões, subverter este mundo do amor em decadência.
Quero borrar a maquiagem da amante, ser um herói da resistência…