
Virgílio esperou, até tarde da noite, a saída do amigo da “Sala de Padronização”. Após duas horas de sessão, Gervásio pareceu bastante abatido. “O que aconteceu lá dentro?”… O anteriormente alegre Gegê, baixou a cabeça. Preferiu não responder, envergonhado. Virgílio sentiu cheiro de fezes. A calça do amigo estava manchada.
Ele era mais um dos moradores com condutas “desviantes” do Condomínio Brasília que passava pelo processo de equalização comportamental, desde que o Comandante Jair assumira o cargo de síndico. Em uma eleição acirrada, a voz tonitruante do ex-soldado se fez ouvir como a opção mais apta para equilibrar as contas do erário condominial.
Jairzão, como antes era conhecido, era um sargento aposentado que vivia a repetir palavras de ordem contra o desequilíbrio social e o desrespeito aos bons costumes. Era visto como um tipo inofensivo, apesar das bravatas que cometia com frequência. Após assumir o poder, mostrou na prática tudo o que professava.
Cachorros e gatos foram banidos do Brasília (muita sujeira). Roupas extravagantes foram erradicadas da circulação entre muros. Beijos na boca resultavam em pesadas multas. Comportamentos tidos como indecentes, segundo regras aprovadas em ata, após reuniões com escasso comparecimento dos condôminos, resultavam em visitas à “Sala de Padronização”.
Para auxiliar o Comandante em sua empreitada, contava-se com parrudos jovens entusiasmados que viam, na disciplina militar, o melhor caminho para tornarem as vidas dos moradores mais felizes, pacíficas, seguras e retas mercê os melhores hábitos de salubridade social. Professavam que qualquer traço de criatividade conspurcaria a tradição edificante proposta pelo Comandante, o que poderia acarretar no surgimento de sistemas espúrios na construção da sociedade ideal que propunha.
A tropa de choque ganhou adesões cada vez maiores. Todas as manhãs, os moradores eram despertados, aos primeiros raios de sol, com a Canção de Brasília Melhor. Garotos e garotas – uniformizados-perfilados-peitos-estufados – entoavam, com força, cada estrofe como se fosse um hino devocional. No resto do dia, se revezavam na vigilância de interditar discrepâncias na obediência às regras promulgadas como lei.
Secretamente, ainda que visse algumas medidas como exageradas, mais da metade dos condôminos apoiava a legislação padronizadora. Quem estivesse em desacordo, que mudasse. Perceberam que o comportamento dos pequenos também se transformara. Confusos quanto à educação que davam aos filhos, a assustadora figura do Comandante era evocada para auxiliá-los. A qualquer malcriação, era citado o nome do Jairzão.
O episódio da moça do livro foi o começo do fim do sonho do Comandante em levar adiante sua revolução moralizadora. Mariana gostava de ler. Já fora advertida pelos pais que não o fizesse na praça central do condomínio. Eram liberais, mas depois de batalharem tantos anos para conseguirem quitar o apartamento, não viam possibilidade de mudarem tão cedo dali.
Querendo promover um ato de repulsa ao que estava acontecendo no Brasília, Mariana sentou-se em um dos bancos da praça, com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” nas mãos. Foi advertida por Angelina, sua antiga companheira de festas e idas ao cinema, que deveria parar de lê-lo, colocado que estava no índex de proibidos para a juventude brasiliana. Recém convertida ao credo padronizador, era uma entusiasta do novo regime. Acreditava que a nova diretriz a tenha salvo da vida sem propósito que levava.
Ao receber a recusa de Mariana, Angelina, de posse de um pequeno cassetete – distribuído aos “Jovens Padronizadores” – desferiu apenas um golpe na têmpora da leitora, que veio a óbito quase imediatamente. Como despertados de um sonho ruim, os condôminos se revoltaram e derrubaram o síndico-ditador. Com um pouco mais de percepção e conhecimento, saberiam que tudo já estava escrito nos livros.
Ao final, faltou dizer, qualquer semelhança para com a realidade não é mera coincidência, é apenas realidade mesmo. rá
Triste realidade, Lunna.