O Assediador

Quem o olha de relance, estando só, sem saber o que faz, poderia dizer se tratar de um homem comum, talvez um executivo, vestindo de forma desleixada um terno caro. Se o visse cercado de seus comandados, logo perceberia que quem gira em seu entorno mantém um olhar atento, até nervoso, para o atender em seus mínimos gestos e intenções. O sorriso público esconde uma postura de um ser que não admite menos do que uma reverência de súditos para um rei. A exceção que abre é para o Imperador supremo, aquele que, apesar de ser maior em poder, é tão pequeno quanto ele, e lhe dá sustentação em sua administração em que o terror domina as relações humanas.

O Assediador se sente à vontade para avançar em sua pauta de monstro devorador de paz. Predador no topo da cadeia alimentar, feito um tubarão que encontra seu local de caça, quando está para chegar as presas fogem, os corredores se esvaziam, os banheiros se tornam celas de refúgio e apenas os desavisados topam de frente com o sorridente perseguidor de mulheres e homens, enquanto os cúmplices fazem questão de obter a sua atenção. Aos subordinados, a palavra dura e chula de quem quer demonstrar autoridade pela força do xingamento. Para as subordinadas, a ignomínia da palavra doce, o gesto delicado, mas invasor, a insistência na dominação dos corpos como referência. Como se fosse um galo solto no galinheiro, quer espargir o líquido de seu poder, como se participasse do coro dos anjos, impondo a soberania de seu desejo.

Criado no caldo de cultura do Patriarcado, encontrou no cargo de um governo exemplar nesse tipo de política, as circunstâncias especiais para que pudesse estar como “um pinto no lixo”. Foram anos em que pode exercer seu domínio sem que houvesse qualquer impedimento ou ressalva, até que se tornou tão sufocante que houve a iniciativa de alguns para que tudo mudasse. O assédio moral e sexual é parte de um grande concerto que foi permitido e até incentivado como demonstração de qualidades que deveriam fazer parte do perfil de comando. Para o homem crescido nesta Sociedade é quase natural que aja, diga ou minimamente insinue e por fim imponha esse caráter de “domínio superior”. Em alguns casos, há mulheres que assumem essa postura impostora imposta por tradição de chefia machista, “batendo o pinto na mesa” metaforicamente. Como se o falo fosse sinal de potência. Para todos nós, é muito penoso mudarmos as nossas ações e mentalidades, acostumados que fomos, desde a família na mais tenra idade, a estarmos cercados de tantos maus exemplos.

O importante é que mudemos de Política – a arte da convivência, segundo os gregos – para arejarmos nossos ambientes familiares, amistosos e profissionais. O organograma deve atender um direcionamento, com certeza. A linha de comando deve ser mantida, porém a prática deve obedecer a um bem maior, a do respeito à pessoa humana. Que o sorriso não seja de escárnio. Que a alegria não se dê por um malfeito. Que a felicidade de alguns não seja obtida à custa da expropriação de direitos da maioria. Que a revolução se dê na consciência de cada cidadão brasileiro. Que os assediadores sejam punidos por assédios morais, sexuais, comportamentais.

Parece que novos ares se avizinham no horizonte. Que 2023 não sejam números que apenas apresentem mais do mesmo dos últimos anos. Caso contrário, será cada vez difícil respirar, prática e socialmente, neste País.

Foto por Brian Jiz em Pexels.com

Bom Dia! (Ou Como Zeca Baleiro Salvou Duas Vidas) — Parte Dois

Carla entendeu que aquele seria o melhor horário para morrer — 7 horas da manhã. Quando Francisca chegasse, dali a uma hora, a encontraria em “boas” condições físicas, apesar do processo de autólise que se iniciaria assim que o coração parasse de funcionar. Naquela altura, seu corpo daria chance para que a vida explodisse em novas formas, habitado por moradores invisíveis. Ao pensar sobre isso, veio a perceber que o tempo não era o mais importante, mas a afirmação da vida, ainda que ínfima na duração e diminuto, o habitat. Começou a se sentir importante em se tornar o mundo de colônias de bactérias em um complexo ecossistema que se alimentaria dela até estarem exauridas as suas fontes de energia ela mesma, Carla.

Estaria morta a médica de 40 anos, bonita e desejada que, no entanto, não conseguia ultrapassar as barreiras dos relacionamentos com pessoas — homens e mulheres — que escolhia a dedo para feri-la. Ou talvez fosse ela, tão sensível desde a infância, que chorava por qualquer coisa. Pelas irmãs, era chamada de chorona e ranheta. Os namorados e namoradas, se afastavam assim que percebiam que não conseguiriam lidar com tamanha delicadeza em prantos, apesar da beleza física clássica. Vaidosa, para não ser encontrada mole pela podridão em paulatino avanço, não quis se matar à tarde, quando bateu a dor mais profunda por estar viva. Passara mais um dia a cuidar de pessoas que, estranhamente para ela, se agarravam à vida de maneira absurda. A contaminação pela Covid-19 voltara a aumentar. Dessa vez, os pacientes eram mais jovens que, como característica básica, se consideravam imortais. Mas para alguns, a doença se assenhorava do corpo como fosse uma casa abandonada invadida. Os estragos fisiológicos, caso sobrevivessem, seriam inevitáveis.

A falta de empatia ou, de outra forma, certa inveja por não ser contaminada pelo vírus, a deixava com raiva de si mesma. Carla se lembrava do quanto se importava com as pessoas e o desejo desde nova em se tornar médica. O curso, logo de início, foi a deixando cada vez longe do ser humano solidário para torná-la um ser de emoções amorfas. Ter sido estuprada por um grupo de colegas depois de uma aula de Anatomia, praticamente a matou por dentro. Até o presente dia, não se conformava por não ter delatado a corja, hoje, médicos renomados, de lindas famílias de comercial de margarina. Tinha pesadelos recorrentes sobre como a usaram para “estudar” os nomes das partes da sua estrutura físico-biológica viva — detalhes da cabeça, passando pelo tronco e membros — e seus sinônimos funcionais, no léxico popular e no médico. Oito mãos intrusas e quatro órgãos genitais usurpadores passearam sobre sua derme sem obedecerem aos seus recessos ou às recusas veementes, abafadas por estarem em um lugar isolado. Percebeu que o local onde se deu a “aula” de Anatomia fora escolhido a dedo e a ação, planejada.

Para nunca mais os ver, evitou se candidatar para trabalhar nos maiores hospitais de São Paulo, para onde foram. Jamais quis participar de festas de congraçamento pelo Dia do Médico ou de reuniões festivas da Turma de 2002 de Medicina da USP. Ao procurar atender na Periferia, sua atitude foi confundida com benemerência, o que lhe angariava simpatia e admiração. Morar em Santana a deixava perto dos hospitais da Zona Norte nos quais atendia como Dermatologista. Aquela casinha a lembrava de sua morada na vila da Zona Leste onde cresceu, o que lhe dava certo conforto mental pela evocação da lembrança dos pais amorosos. Afora isso, não conhecia os vizinhos das casas de fachadas iguais e muros baixos à direita e à esquerda. Não tinha tempo e, para ser sincera, não queria.

Um pouco antes de ligar o gás, Carla ouviu a campainha tocar. Pensou em não atender, mas decidiu ver pela janelinha quem era. Um sujeito mascarado estava junto ao portão. Usava roupas largas, uma camisa colorida tingida. A máscara não conseguia esconder uma espessa barba. Os cabelos, um tanto desgrenhados, a lembrou de um rapaz que conheceu na Mooca do qual gostara muito, mas sempre à distância. Era uma figura que parecia ter acabado de chegar diretamente dos Anos 70, pelo que já vira em filmes. Curiosa, abriu a porta e postada debaixo do batente, perguntou o que ele queria.

Oi, vizinha! O meu nome é Raul! Moro aqui do lado, na casa do meio. Queria lhe desejar um bom dia!

O tom de voz era sereno e o timbre profundo, de barítono. Antes que ela pudesse responder algo, o tal de Raul se dirigiu a dois portões à esquerda e tocou a campainha. Pouco depois, apareceu um homem preto que perguntou exatamente o que eu perguntara antes, como se fosse uma fala ensaiada. O sujeito repetiu a mesma linha:

Oi, vizinho! O meu nome é Raul! Moro aqui do lado, na casa do meio. Queria lhe desejar um bom dia!

O vizinho da esquerda foi mais ágil do que Carla e retrucou o cumprimento:

— Bom dia, vizinho!

Curiosa, Carla acompanhou os passos decididos de Raul até a esquina com a Dr. César. Intrigada e absorta em saber porque um vizinho que nunca vira antes, a fez descer a terra de maneira suave, como se fosse uma alienígena recém chegada. Assim como ela, o outro vizinho acompanhou o percurso de Raul até virar a esquina, à esquerda do Si, Señor! Quando voltou a cabeça, viu Carla e lhe desejou um bom dia, ao qual ela respondeu em tom surpreendentemente descontraído. Após o que, se apresentaram — “Carla, prazer! Prazer, Fábio!”. Durante vinte minutos conversaram como se fossem velhos amigos. O assunto, naturalmente, foi Raul. Nenhum dos dois sequer sabia que ele morasse na casa do centro. Era como se tivesse saído de uma fresta dimensional.

Quando deu por si, Carla viu Francisca chegar mais cedo que o normal. Teria que esperar mais uma semana para realizar o seu plano suicida. Não se mataria antes que ela saísse, para que seu corpo fosse encontrado apenas sete dias depois, quando voltaria para fazer a faxina da sua casa. Nem era tanto serviço assim. Usava pouco a casa, já que trabalhava todos os dias e passava os finais de semana dormindo como se fora uma refugiada. Isso, quando não fazia plantões pontuais. Não recebia ninguém. Não cultivava amigos. As irmãs não sabiam do seu endereço. Os pais, estavam mortos. Francisca e seus doentes eram as pessoas com quem mantinha um contato mais íntimo. Com os colegas de trabalho apenas trocava informações profissionais, sem maiores proximidades. Até que Raul lhe deu bom dia e invadiu seus pensamentos…

Na Voluntários da Pátria, Raul comprou flores. De lá, se dirigiu ao corpo de bombeiros, na Braz Leme. Em frente à corporação, perguntou a um soldado pelo comandante. Informado que estava na sala de comando, pediu para entrar e lhe entregou um belo buquê de flores. Uma variação aceitável da letra original de “Telegrama”. Quando garoto, Raul até pensou em ser bombeiro. O importante é que o comandante, pego de surpresa, sorriu desmascarado de qualquer rejeição. Ele não perguntou em nome de quem entregava as flores, Raul não disse nada ao ofertá-la. Um momento mágico entre dois homens. Acenos de cabeça e saída do entregador como se flutuasse.

Caminhando pela mesma Braz Leme, Raul foi em direção da Casa de Pães. Uma das coisas que lhe dava maior prazer físico, além do sexo, era comer pães. Gostava de quase todos os tipos, mas os italianos eram os seus preferidos. Conhecia o proprietário  e se alguém merecia um beijo, esse era o padeiro. Ser padeiro, não lhe desgostaria tornar-se um. Estava como que caminhando sob o comando de seus desejos adolescentes ao fazer o trajeto de centenas de metros entre um ponto e outro. Uma vida toda em que abraçou o humanismo como profissão de fé, a atividade da espécie no planeta como sentido que buscou compreender e empreender. Em que momento tudo se tornou demais? Em que ocasião ser humano não representava mais nada? O asfalto duro, a calçada esburacada, as árvores na ilha central, as pessoas caminhando para algum lugar… o que significava, realmente? Sentiu reacender a chama pela busca pelos significados, uma curiosidade por si mesmo e pelo mundo. Sua divagação foi cortada por uma frase dita espontaneamente em voz alta:

— Que linda mulher, a minha vizinha…

Porém, naquele momento, ele mantinha apenas um propósito: beijar o português da padaria.   

Tudo o que precisa ser dito…

Ódiocracia

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Um traço comum une a todos, no Brasil, à direita, ao centro e à esquerda – um ódio genuíno à Democracia, ao diálogo, à alternância do poder, à flexibilidade em relação à orientação ideológica de seu semelhante, que, como qualquer um, tem direito à voz. O consenso, por meio do diálogo, é uma quimera, uma ilusão, um ponto inalcançável no mapa – Utopia.

Hoje, ao ouvir o noticiário pela manhã – uma maneira radical de despertar – diante de tanta ignomínia à torto e ao reto, percebi claramente que, ao basear a minha perspectiva de que estávamos em busca do equilíbrio; a fugirmos da instabilidade; do defeituoso; do que causa sofrimento ao próximo se consubstanciava numa visão pessoal distorcida em relação a nossa sociedade. Sem chance para a sua pacificação. O que a maioria deseja, intimamente, é o confronto.

E esse desejo não permanece apenas na falta de compreensão, mas bandeia abertamente para a conflagração sob a desculpa de defesa de bandeiras supostamente bem-intencionadas, mas que sob a manipulação de uns poucos, disfarçam interesses corporativos escusos e/ou particulares das diversas partes, partidários e compartilhados do bem imposto, muitas vezes, à revelia de quem seria eventualmente beneficiado.

Esse cidadão hipoteticamente aquinhoado com a ajuda, a ponta fraca do elo, também não é incomum se aproveitar de sua condição de fraqueza para tentar receber o máximo de benefícios possíveis – uma questão de sobrevivência, certamente –, mas de características ardilosas. Macunaímas nunca estiveram tão vivos. Não faltarão quem os defenda sob a justificativa de que cresceram sem chances de boa educação, da obtenção de uma base para o crescimento pessoal e social. Esses excluídos são disputados como ouro e são ou serão eleitores a elegerem seus supostos defensores, os quais se utilizarão dos que entram no jogo com as melhores intenções, sendo alegremente enganados. Vivi tempos que sabia que era manejado, mas preferia fazer algo do que nada. Porém, cansei, principalmente depois de ver crescer cobras que eu suponha serem apenas minhocas fertilizantes.

Aos eleitos, muitos deles, não interessam que os seus eleitores subam de patamar. Por que perder essa manada de bons cordeiros? Aos eleitores, sem perspectiva de melhoras a curto prazo, resta a batalha diária em conseguir o ganha-pão que o sustente por aquele ou pelos próximos dias, se tanto… O famoso expediente “me engana que eu gosto” ganha, cada vez mais, contornos de sustentação para relacionamentos pessoais e sociais. Mentimos o tempo todo de nós para nós mesmos. E assim, construímos o Brasil sob a égide da infra-verdade, da pós-verdade, da pré-verdade, da mentira fantasiada de verdade festiva.

A busca pelo bem público é um sofisma, já que não há intenção que ele venha a alcançar a todos, e se assim for, não deve deixar de passar pela chancela de algum arcabouço ideológico, de posse de um grupo tal e qual populista ou popularizador. Não conheço nenhuma dessas agremiações com as quais convivemos na vida nacional que escape da minha análise ácida. A chegada ao poder de um deles se configura na chance de aparelhar o sistema para trabalhar sob diretrizes de coordenadores e atender às demandas de apoiadores e/ou investidores que rastejam no lodaçal do baixo-comércio de mentes a venda. Se detêm algum verniz intelectual, no entanto, estas conseguem uma avaliação um pouco melhor, mas nunca bem barato…

A bem da verdade, quem chega ao comando dos postos mais altos, provavelmente já construiu uma corrente tão extensa e grossa de compadrio e atendeu a tantas contingências de grupos afins que posso declarar, sem medo de errar, que um chefe político pode ser comparado a um chefe quadrilheiro – um capo mafioso. O atendimento de tantos esquemas de sustentação acaba por envenenar os corpos administrativos das cidades, dos estados e do País de tal forma, que acabamos reféns de uma doença que, enquanto progride a alimentar as suas células, por fim, mata o hospedeiro. A tendência de quem é dependente do poder central, é o de protegê-lo como um soldado escuda o comandante da tropa.

A progressão desse mal não é intrínseca a Democracia, mas no Brasil adaptou-se a ela ao longo do processo de sua adoção, através de um desenvolvimento político espúrio, que continuou a utilizar práticas antigas e jeitosas do país do pau-brasil torto. Se há possibilidade de reversão, só se dará através de medidas que envolvem a adoção irrestrita da Educação pública de qualidade, com resultados apenas a longo prazo – uma geração, talvez…

Obviamente, devido à brevidade deste texto, estipulo uma visão geral e generalizante. Há movimentos que se pretendem sérios e, em sua origem, o são, fundamentalmente. Sem a ação desses diversos grupos de cidadãos que objetivam o auxílio aos seus companheiros de jornada, tenho certeza de que o corpo social teria se esboroado há muito tempo. O problema são as patrulhas com os seus líderes e os patrulheiros, a seus serviços. Muitas vezes, mais reais que os próprios reis, a executar atividades que apenas imaginam que os seus supremos mandatários pensam. Quando não querem, eles mesmos, assumirem posturas que atraiam seguidores. A vaidade é uma poderosa aliada da conduta humana.

Outro dia, eu estava a caminhar por uma avenida do bairro e avistei uma carroça, com o seu proprietário ao lado, um catador de recicláveis, a recuperar papelões de um amontoado despejado por cidadãos inconscientes na esquina com uma rua local. Na traseira da carroça, os dizeres “DIGA NÃO ÀS DROGAS. DEUS SEJA LOUVADO” – escrito corretamente. O rapaz devia ter uns 25 anos, no máximo. Passamos por uma crise econômica mais aguda, mas fiquei a pensar que se tivéssemos implementado uma Educação pública de qualidade há 30, 20, 10 anos antes, é bem provável que esse rapaz e todos nós não precisaríamos estar a catar restos nos lixões do Sistema.

 

O Síndico

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Está tudo nos livros…

Virgílio esperou, até tarde da noite, a saída do amigo da “Sala de Padronização”. Após duas horas de sessão, Gervásio pareceu bastante abatido. “O que aconteceu lá dentro?”… O anteriormente alegre Gegê, baixou a cabeça. Preferiu não responder, envergonhado. Virgílio sentiu cheiro de fezes. A calça do amigo estava manchada.

Ele era mais um dos moradores com condutas “desviantes” do Condomínio Brasília que passava pelo processo de equalização comportamental, desde que o Comandante Jair assumira o cargo de síndico. Em uma eleição acirrada, a voz tonitruante do ex-soldado se fez ouvir como a opção mais apta para equilibrar as contas do erário condominial.

Jairzão, como antes era conhecido, era um sargento aposentado que vivia a repetir palavras de ordem contra o desequilíbrio social e o desrespeito aos bons costumes. Era visto como um tipo inofensivo, apesar das bravatas que cometia com frequência. Após assumir o poder, mostrou na prática tudo o que professava.

Cachorros e gatos foram banidos do Brasília (muita sujeira). Roupas extravagantes foram erradicadas da circulação entre muros. Beijos na boca resultavam em pesadas multas. Comportamentos tidos como indecentes, segundo regras aprovadas em ata, após reuniões com escasso comparecimento dos condôminos, resultavam em visitas à “Sala de Padronização”.

Para auxiliar o Comandante em sua empreitada, contava-se com parrudos jovens entusiasmados que viam, na disciplina militar, o melhor caminho para tornarem as vidas dos moradores mais felizes, pacíficas, seguras e retas mercê os melhores hábitos de salubridade social. Professavam que qualquer traço de criatividade conspurcaria a tradição edificante proposta pelo Comandante, o que poderia acarretar no surgimento de sistemas espúrios na construção da sociedade ideal que propunha.

A tropa de choque ganhou adesões cada vez maiores. Todas as manhãs, os moradores eram despertados, aos primeiros raios de sol, com a Canção de Brasília Melhor. Garotos e garotas – uniformizados-perfilados-peitos-estufados – entoavam, com força, cada estrofe como se fosse um hino devocional. No resto do dia, se revezavam na vigilância de interditar discrepâncias na obediência às regras promulgadas como lei.

Secretamente, ainda que visse algumas medidas como exageradas, mais da metade dos condôminos apoiava a legislação padronizadora. Quem estivesse em desacordo, que mudasse. Perceberam que o comportamento dos pequenos também se transformara. Confusos quanto à educação que davam aos filhos, a assustadora figura do Comandante era evocada para auxiliá-los. A qualquer malcriação, era citado o nome do Jairzão.

O episódio da moça do livro foi o começo do fim do sonho do Comandante em levar adiante sua revolução moralizadora. Mariana gostava de ler. Já fora advertida pelos pais que não o fizesse na praça central do condomínio. Eram liberais, mas depois de batalharem tantos anos para conseguirem quitar o apartamento, não viam possibilidade de mudarem tão cedo dali.

Querendo promover um ato de repulsa ao que estava acontecendo no Brasília, Mariana sentou-se em um dos bancos da praça, com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” nas mãos. Foi advertida por Angelina, sua antiga companheira de festas e idas ao cinema, que deveria parar de lê-lo, colocado que estava no índex de proibidos para a juventude brasiliana. Recém convertida ao credo padronizador, era uma entusiasta do novo regime. Acreditava que a nova diretriz a tenha salvo da vida sem propósito que levava.

Ao receber a recusa de Mariana, Angelina, de posse de um pequeno cassetete – distribuído aos “Jovens Padronizadores” – desferiu apenas um golpe na têmpora da leitora, que veio a óbito quase imediatamente. Como despertados de um sonho ruim, os condôminos se revoltaram e derrubaram o síndico-ditador. Com um pouco mais de percepção e conhecimento, saberiam que tudo já estava escrito nos livros.