
Como vai, Bento? Você não me conhece, mas eu o conheço. Na verdade, muita gente o conhece, ainda que talvez não saiba. Culpa sua, que divulgou sua passagem pela Terra. Com o passar do tempo, no entanto, a sua figura acabou por se tornar secundária em sua própria história. Mais adiante, falarei sobre isso.
Já me disseram que pareço com você. Pode ser. Há algumas similaridades. Você fez seminário, eu flertei com a possibilidade de me tornar frei franciscano. O meu orientador voltou para a Bélgica e tive lhe dar com um novo que pediu mais tempo para me conhecer. Disse que não poderia esperar mais um ano. Conheci a minha futura esposa logo em seguida.
Nunca quis seguir Direito, que supostamente busca a justiça. A única equivalência possível é que nasci sob Balança, de pratos sempre desequilibrados. Passei por situações que o mau humor me afastou das pessoas – pura casmurrice. De certa forma, não me importava tanto assim se ficasse só. Hoje mudei. Busco contato, alcancei reputação de ser boa praça. Espero ter ultrapassado a condição de ser que viesse a morrer amargurado se soubesse (ou presumisse) que uma das “minhas” filhas não fosse minha. Eu as amo tanto…
Sabe o que conseguiu com tudo que nos passou com a sua desconfiança? Que Capitu se tornasse cada vez maior do que você. Por algum sortilégio de cigana ou porque Capitu tenha ultrapassado sua condição de mulher resignada a seu papel de esposa silente, ela alcançou status de ícone feminino. Seus olhos de ressaca atravessaram quase dois séculos e continuam a fazer sonhar homens e mulheres.
Ela não era dissimulada, era alguém que sabia o que queria e quis e fez. Para se defender, usou das armas a que muitas mulheres utilizavam à época e ainda hoje, quando supostamente têm maior liberdade. Desculpe, meu caro, mas Capitu não cabia no personagem que gostaria. Pelo menos, você, Bento, teve a capacidade de nos revelar a verdadeira identidade dela através de seus olhares. Não se engane, não era o mesmo que o de Sancha, por ocasião do velório. Era mais profundo…
Creio que com a morte inesperada de Escobar, ela sentiu que um modelo de homem que admirava também morria. Ainda que não tenha se envolvido tão profundamente a ponto de se relacionar sexualmente com o seu amigo, ela via nele a possibilidade de interação que deveria ter consigo. Que eventualmente se prenunciou quando eram crianças. No final, perdurou a sensação de anticlímax.
Enfim, teria uma pergunta a lhe fazer se soubesse que responderia com sinceridade: você realmente amava mais a ela ou a Escobar? O rosto que via em Ezequiel não seria a face que gostaria que lhe acompanhasse amorosamente durante toda a sua vida? No entanto, até seu filho você perdeu durante a trajetória que decidiu desenvolver.
Oh, Bento!… Tão auto enganado, tão digno de pena, tão enganado… Boa noite, oh, insone!